BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Ruas de paralelepípedos

Passei os últimos dois meses envolvido com a política, exclusivamente com a eleição presidencial. Não desgrudei do celular, das mensagens e notícias a toda hora. E as pesquisas? A cada uma que saía, uma agonia tomava conta de mim. Aquilo me consumiu diuturnamente, que minha ira se espalhou pelos terrenos áridos das redes sociais.

Desde o atentado, minha fúria só aumentou que cheguei a pensar: — "não é dessa vez que tiramos o pé da lama. Não é!". Imaginei que aquela faca, pontiaguda, poderia ter cortado também todos os nossas artérias de sonhos de país. No fim, a turbulência passou e  agora estamos limpando a sujeiras das solas dos sapatos para entrar o ano de alma lavada. O saldo foi algumas amizades perdidas nas redes sociais, xingamentos (sem desculpa) e uma vida que segue agora o seu curso. Afinal, o Brasil se sairá bem desse lamaçal. Eu espero.

Apaziguado, tirei os livros da estante, voltei às leituras. Acordei e baixei no meu e-book um livro que ainda não havia lido de crônicas rodrigueana (não sei se existe o neologismo). O "Óbvio Ululante" é um apanhado daquilo que Nelson Rodrigues nos deixou de melhor, fora da dramaturgia. E por que eu falo isso? Ontem, não consegui pregar o olho, e já era tarde. Antes de apagar o abajur, li uma crônica que ele se lembrava de uma paixão de infância. A moça (menina moça) era Lili, uma rechonchuda que morava no caminho da sua escola. Lili apanhava do pai e o pequeno Nelson ouvia seus urros e gemidos da rua. Comecei a pensar, então, na minha infância, que depois puxou pela adolescência. Lembranças e lembranças que não estancavam, retardando ainda mais meu sono.

Não tenho voz e cor da infância. É como um filme de Chaplin: preto e branco, sem voz e com uma trilha sonora de fundo. Minto. Lembro, sim, da cor do meu uniforme escolar: camisa branca, calça boca de sino azul marinho e conga alpargatas. Eu já falei também do tom rosa velho da minha casa, que já foi azul clara, com o número 139 sobre a veneziana. Mas voz nenhuma vem. Assim, eu na minha mais tenra idade (aos 10 e 11 anos), atravessava uma ponte gelada para estudar em outro bairro. Mas nenhum gravador registrou uma sílaba que tenha dito. Súbito, penso que fui um faroleiro na vigília do mar. A solidão do mar noturno e um silêncio de vozes, enquanto ondas gigantes chicoteiam pedras e cais. Eu sentia mesmo era paixão.

Ali, antes dos 10 anos, eu já havia me apaixonado. Depois, já nos 11 anos, e assim foi até a fase adulta. (O homem que nunca se apaixonou, não viveu.) As paixões não tinham desejo sexual, mas silhuetas, admiração e contemplação como paisagens. Elas mudavam de direção, mas eu era o mesmo menino: traquino em bando, e tímido no privado. O olhar era lânguido, e a boca balbuciante e sussurrante. (Talvez por isso não encontre uma frase da minha infância.) Nas paixões platônicas não se têm fala, não têm "eu te amo", não tem olhares penetrados, não tem sorriso encarado. Tudo é calado e só sentido; um coraçãozinho já ardendo e sofrendo.

Na quinta série (ali nos meus 11 anos) havia uma garota. Ela era Mônica. Loirinha dos olhos castanhos arredondados. Encantadora, com uma educação aristocrata e beleza nata. Mas eu não era o único. Havia uma fila de meninos de olhos naquela menina simpática de silhueta delicada. Naquela época, as meninas na escola usavam saias três dedos acima dos joelhos. (Com um espelho pequeno dava para ver a calcinha.) Aquele par de pernas era totalmente permitido pelo regime militar, com a panturrilha branca sobre as meias também brancas.

Um dia, fomos expor numa feira de ciência. Um fotógrafo do jornal nos clicou. No dia seguinte, estávamos na front page. Ela linda, sorrindo, olhando para a lente. Ao lado, duas meninas distraídas. E eu com meu amigo cabelo de fogo ao lado, em pé, fazendo caretas. Guardei aquele recorte, mas hoje não sei mais onde está.

No ano seguinte, sem se despedir, ela já não estava mais na escola. Seus pais haviam se mudado para Goiânia, se não me falha a memória. Foi a notícia que chegou. Ela foi embora, mas eu tinha o recorte do seu sorriso pueril. Logo minha paixão se dissipou no nevoeiro da ponte sobre o rio. Outros encantos surgiram, com outras meninas na escola e suas saias de pernas à mostra. Mas paixão não houve por um tempo, até esquecer o recorte.

Como disse, nas minhas lembranças não há muitas falas. Havia, contudo, uma voz fraca. Era do meu pai me chamando sobre o muro do vizinho. Aos 52 anos, sua voz já era cansada pelo cigarro e as dores no peito. Então, algo me vem sempre quando adentro nesse quarto escuro. Se não há voz, há um cheiro imortal. E ele exala na atmosfera da minha vida, até os novos dias, como um perfume da eternidade. Pode até parecer esquisito, mas a aromática lembrança é uma mistura de batata frita, argamassa e tijolo molhado.

Foi um dia qualquer entre 1973 e 1974. Acho que era 1974 (já tinha 12 anos). Nossa casinha passava por uma reforma. Meu pai puxou a casa até à divisa com o vizinho do lado direito. Construiu um paredão que, para rebocar, precisou erguer andaimes. Lá no alto, a cumeeira, os caibros e terças de um telhado à francesa, de uma água só. Um forro de madeira fechava nossa casa para suportar o frio do inverno. Essa era a obra necessária: espaçar centímetros e acolher.

Fecho os olhos e vejo esse dia. Eu sentado à mesa de tampo laminado azul (diziam fórmica), fazendo um desenho com uma régua de madeira. Uma cortina improvisada dividia aquele ambiente do externo, da parte da obra, do paredão. Tudo era improviso naquela cozinha sem reboco e pintura. O cheiro da obra (argamassa e tijolo) se misturava com cheiro de batata fritas que saia do fogão da minha mãe. (Foi uma época que comíamos batatas quase todos os dias.) A batata era cortada serrilhada, de espessura fina. Era cedo ainda para o jantar, havia luz do dia. O barulho da frigideira era sinfônico.

Eu estava naquela fase dos meus desenhos de futebol. Explico. Aprendi a desenhar os lances de gol vendo as ilustrações de Gepp & Maia, que saiam semanalmente no Jornal da Tarde. Um dia levei um desses desenhos à escola (o gol do título do Palmeiras de 1974), e ganhei, dias depois, um autógrafo do goleiro Leão, que tinha parentes na minha cidade e aparecia por ali de vez em quando. Não me lembro se foi minha professora de português que conseguiu. Virei tão especialista em desenhar gols, que passei também a criá-los também. Desenhava os gols impossíveis, com a bola batendo na trave cinco, seis vezes antes de entrar. E sempre era um gol com titularidade de um Leivinha, de um Ademir da Guia ou Edu. Até um amigo me perguntar: — "Esse gol é mesmo verdadeiro?".
Copa de 1974 - por Gepp & Maia

Aquela tarde/noite ficou como um quadro, um Michelangelo na galeria da minha memória. Quando você entra na grande sala, ele está lá, estampado na parede. A reforma, o desenho, os tijolos sem reboco, minha mãe e a fritura que saia do seu fogão. Aquele dia virou segredo de confessionário, um quadro que eu não desenhei sobre a mesa azul. Ele se fez sozinho em mim.

Fiz esses parágrafos para chorar de saudade... 

Volto às paixões que alimentei pelas garotas da minha adolescência. Eu, como quase todos, me apaixonava pelas meninas da escola. Houve depois uma Maria Rita que usava meia 3/4, que eu torcia para encontrar no caminho, na ponte, e chegar na escola ao seu lado, como quem exibe um troféu. Sem declarar nada, devo ter dito muitas bobagens e coisas de meninos.

Mas houve uma paixão por uma garota — na minha lembrança era uma moça e não uma petiz — que morava perto de casa. Meus olhos a descobriram durante as peladas de rua, porque eu jogava no paralelepípedo na frente do seu portão. Ela morava, melhor, ela surgia numa casa que ficava no alto de um terreno, numa edícula. Uma família pobre como a minha, de três filhos. Era seu irmão quem compunha o meu time de rua. E quando ela saia para ir à padaria, meus olhos travavam até que dobrasse a esquina.

À noite, eu sentava no portão para vê-la vindo da escola, pontualmente às oito e quinze da noite. (Era um horário estranho para aquela escola onde ela estudava. A aula começava às quatro da tarde e ia até às oito, já no jantar.) Ali, no portão, eu fazia plantão, para vê-la desfilando suas bochechas rosadas, segurando os livros e cadernos apertados juntos aos seios já com sutiã. 

Até que um dia, ela desceu a rua ao lado de um rapaz arcado, magro e bem mais velho. O quanto mais velho? Sei lá, uns 17 anos.  Ele era loiro, nariz pontiagudo e tinha o cabelo liso, fino e penteado do lado, caindo na testa. Achei que era só um garanhão, porque não imaginava que ela pudesse se interessar por uma tábua envergada. Mas o medo vinha junto:  e se ela ceder? Todos os dias eu me perguntava: "o que ele tanto fala à ela que eu não consigo dizer?". Passaram alguns dias, aquela deusazinha da rua, de bochecha rosada, desceu a rua com ele com as mãos sobre seus ombros. Ali eu sepultei minhas esperanças e mais uma das minhas paixões se encolheu para sempre. Acho que chorei por dentro, por me achar mais feio que uma tábua envergada.

De nada valeu querer chamar sua atenção, por muitas vezes, com meu futebol de rua, que jogava descalço sobre o paralelepípedo em frente ao seu portão. Ela não me via com olhar nenhum. Eu era mais um daqueles sujinhos da rua. Além de tudo, eu era sardento e tinha cabelo grosso, espetado e sem shampoo. Para piorar, me apelidaram de "gordo", mesmo não sendo. Depois, a arcada dentária tinha diastema. Talvez sejam essas minhas desculpas para não me aproximar. O medo do "não" entalou e morreu comigo.

Guardei ali, nas juntas dos paralelepípedos das antigas ruas, meus dedões estourados de chutar bola descalço. Claro, isso foi antes do surgimento do kichute. E o primeiro apareceu nesses idos, ali pelo meio dos setenta. Era o calçado que estava ao alcance de todo garoto pobre de periferia. Dava para jogar bola no paralelepípedo da rua, na terra do campinho e depois servia para ir à missa de domingo. E havia também o segredo do cadarço. Ninguém amarrava o kichute de forma convencional. Ou era na canela ou era por baixo, dando voltas na sola, com as travas não permitindo que o cadarço se arrastasse no chão. Eu amarrava por baixo. Achava que ficava mais firme nos pés.

Hoje, tenho respeito pelas ruas de paralelepípedos, porque elas guardam em si histórias de crianças, de peladas descalços, de brincadeiras de queimadas, enterros, procissões e paixões. O paralelepípedo é o que decora minha alma de infância. O paralelepípedo é o adorno que emoldura a simplicidade das casas. Não são ruas de passagem; são de imortais peladas, onde deixei meu dedão sangrando por muitas tardes. São ruas da feliz esperança, de paixão pelas meninas de bochechas rosadas. E tudo com o aroma bom da frigideira de batata fritas. Minha infância não teve voz, mas teve muito cheiro bom.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

terça-feira, 4 de março de 2014

Houve uma vez no verão

Quem é capaz de se lembrar da sua primeira paixão? Para muitos meninos, como eu fui, foi aquela descontrolada, inimaginável, inatingível e distante do coração; aquela que nos deslumbrou e fez tremer as pernas. A menina mais linda da rua, do bairro, da escola. Ou, quiçá, a professora...

Paixões platônicas são como espinhas no rosto, sempre iremos passar por elas na adolescência. Foram nossos primeiros contatos com esse sentimento que a vida toda nos entorpece e dilacera o coração. É lá, na adolescência, que também descobrimos o sofrimento, simplesmente, porque ele é ingrediente triunfal da paixão.

Era menino, tinha 11 anos quando me apaixonei pela minha professora de português (naquela época se dizia língua pátria). Eu era “triste”, como diziam naqueles idos. Triste, mas no sentido das peraltices, traquinagens, das brincadeiras, piadas e bagunça em sala de aula. Não posso negar, mas era um bom aluno, apesar da fama. Tirava boas notas em quase tudo. Como uma vez em que a professora de história, por punição, me aplicou uma prova oral na frente de todos. No dia marcado, estava eu lá em pé respondendo às perguntas. No final, ela teve que me engolir; respondi todas, sem errar uma. Mas em nada melhorei em sua aula, continuei o mesmo bagunceiro, de sentar na última fileira, na turma do fundão. Talvez, porque ela não me arrancava suspiros e não me hipnotizava. E eu precisava mais...

Mas volto à professora de língua pátria. Lembro-me que na sua aula eu também bagunçava, mas isso foi só no início do ano letivo. Até o dia em que algo surtiu forte em mim e comecei a olhá-la com outros olhos, com os olhos da paixão. Reparava suas panturrilhas, seu sorriso, seus cabelos castanhos e cacheados nas pontas; como andava e sua pele e voz terna. Fiquei encantado. Recém-casada, espiava, ao longe, quando seu marido vinha buscá-la num chevette marrom; eu fitava para ver se eles se beijavam antes de sair com o carro. Ela era jovem e aparentava ter, no máximo, uns 25 anos.

E foi paixão platônica. E foi tanto, que mudei meu comportamento em sua aula e passei admirá-la; consequentemente me tornei o melhor aluno da sala, em língua pátria. Um dia, ela me fez rubrar a face. Ao dar uma repreensão coletiva – coisa rara, pois era sempre boazinha -, ela me citou como um bom exemplo de transformação. Lembro bem das suas palavras, colocando sua mão alva sobre minha cabeça: “olha o Antônio, este menino mudou muito depois que veio aqui pra frente. Ficou prestando atenção mais nas aulas e suas notas melhoraram...”. Mal sabia ela, que não era pelo aprendizado e pela aula a minha atenção toda, e sim pelo coração. Ela estava dentro dele.

Bem, no ano seguinte ela não me deu mais aula, não estava mais nem na minha escola. Havia sido transferida. Era início de um ano desenxabido, é claro, mas tudo passou... Depois só fui encontrá-la – e pela última vez - três anos depois, num evento num ginásio poliesportivo, quando todas as escolas municipais se encontravam para uma gincana. Quando um amigo me disse, que ela estava na arquibancada, atrás de nós, eu olhei para o alto. Ela me viu, me reconheceu e me acenou mandando um beijo no ar. Foi o beijo mais doce que voou até mim naqueles 14 anos. Ela foi minha Dorothy e eu me senti como Hermie. Ela se foi e eu também.

Estou lembrando agora do filme “Summer of '42”, ou em português “Verão de 42” ou “Houve uma vez no verão”. Revi recentemente e tive sensações esquisitas. Como o menino tem sobre si este tabu do sexo e como será seu primeiro amor, sua primeira vez. Em mim, assim como em Hermie, veio a paixão junto com o desejo. Mas Hermie já tinha passado deste ponto. Ele via em Dorothy a mulher dos seus sonhos. Enquanto seus amigos só queriam a primeira transa; ele triturava, túrbido, o trágico tabu sexual com o que sentia por ela. Hermie a via com os olhos do coração, a mais linda paixão que pudesse sentir, embora houvesse distâncias enormes e um abismo entre eles. Ela, uma moça já vivida e casada e ele, um pirralho de calças curtas e tenra idade. Quando ela se foi, depois de ter passado com ele uma noite daquele verão, ele ficou quebrantado, sofrido, jogado. Sua primeira transa seria lembrada com forte paixão, e aquilo doeu. Assim como eu, nunca mais a viu, mas a história da paixão ficou forjada para sempre.

Eu já tinha 15 anos e estudava em outro colégio, quando me apaixonei por uma menina da minha sala. Eu sabia Física e ela não. Era minha serventia e truque para sentar com ela e ensiná-la, embora houvesse uma fila de marmanjos querendo aquele lugar na sua estreita carteira. Minha desilusão foi descobrir, no final, que ela não gostava de mim e me largou no meio da festa para ir embora a pé com meu melhor amigo; e depois, para tornar mais trágica a história, no dia seguinte descobri que os dois namoravam. Naqueles dias cinzentos perdi a fome e a vontade de viver, assim, me confidenciei com outro amigo: "nunca mais vou gostar de ninguém...". Como se isso fosse possível e eu pudesse mandar no universo do coração.

Muitos verões passaram na minha vida, mas nunca iguais àqueles que me apaixonei na minha adolescência. Penso que, hoje, se esses meninos soubessem o que é sentir paixão pela professora de língua pátria, não teriam outros vícios... Eles não se mostram românticos, não se olham, não se declaram, não choram, não sonham ao ouvir "Rock N'roll lullaby"; e, assim, pensar na mais doce e rara das paixões. Aquela que a gente se entrega, carrega e sofre num coração de adolescente. Este era Hermie; assim fui também eu.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2014.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Paixões de Outono


Já me manifestei em outra crônica - Nesta manhã de primavera... - minha predileção pelas estações com climas mais amenos. O verão e o inverno são estações rudes, extremistas e irritantes para o corpo: muito quente ou muito frio; interferindo também em nossas decisões. Ouso dizer: o clima influencia mais em nossas vidas que a astrologia – para aqueles que acreditam. As mudanças climáticas apaziguam ou incomodam, na medida que sentimos; mexe com nosso corpo, altera o sono, mexe com o apetite, com o humor; e estes respondem com decisões sobre a vida.

Isto também está nesta estação que se inicia – o outono. Nestes dias, com este friozinho, mangas longas e banhos mornos, nos remetem ao aconchego, ao casulo, à cabana; faz-nos mais carentes de colo e de cafuné na cabeça – como é bom... O calor já se foi e já não dá mais praia, o carnaval já passou, as folhas caem e o ano, de fato, já começou. Tenho esta teoria já faz tempo, de acreditar que o outono é a estação onde mais nos apaixonamos. O pavor com a chegada do inverno e de não ter ninguém no calcanhar, para aquecer nossos pés, torna-nos mais fragilizados e vulneráveis às paixões. Permitimos e nos apaixonamos mais. Em 2005, escrevi um poema sintetizando tudo isso (poema não se explica, já disse Ferreira Gullar). “Paixões de outono” é um convite ao recolhimento, à paixão que bate no peito querendo entrar. Permita-se, então, se vem para ficar - muito além do outono.

Paixões de outono

Outono, outono...
Nunca me dei conta
Como instável era a paixão
Marolas de mar
Balanços das ondas
Suspiros no fim do verão
Passeios à tarde
Taças de vinho ao luar
Rubros no céu de abril
Amores sem dono
Extraídos de um conto
De outono

Outono...
Nunca me dei conta
Dos dias que passei
Em frente aos olhos
Que vi naquele olhar
São coisas de outono:
As noivas de maio
Fogos de junho
Festas de encontros
Rodas de carruagem
Levam histórias, viagens...
Levantam folhas caídas
De igual abandono
De outono...

E nem me dei conta
Do amanhecer de orvalho
Quantas constelações
Estrelas milhares
No jardim daqueles olhos
Vinham em navios
Invadiam noites afora
Saqueavam meu sono
Num encanto
De quase outono

Ah, quando me dei conta
Já hospedava no peito
Mais nova paixão
Navios, estrelas, folhas...
Depois deste outono
Ninguém mais ouse dizer
Que seus olhos
Agora, já não tem mais dono

Antonio - 19/05/2005

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quando as flores eram de verdade

Muitas histórias de amor já foram contadas por romancistas mundo a fora. E quem já não leu um desse folhetins na vida, uma história curta que fosse? Na maioria delas, descrevem lugares lindos, com encontro e desencontros; citam poemas e cartas; cavalheiros e damas, mocinhos e suas heroínas; buquês de flores com promessas de amor eterno e, porque não, contam também os dramas, as tragédias.

Devo confessar, sou um romântico tentando se corrigir. E se ninguém mais levantar a mão vou dizer que sou o “o último romântico” —  como já escreveu um poeta do cancioneiro popular. Quando vivo esse feitiço, me deixo levar pelas palavras e gestos de carinho quando me dirijo à mulher amada. Meus devaneios passionais vêm como brisas de outono, em sons de conchas de mar, com recheios de doçuras, de estrelas que se ouvem; e lições, que procuro me valer, como um bom vinho ao paladar.

Não receio em olhar para trás e colher da vida os melhores parágrafos, separando do passado as suas mágoas. Procuro ficar com o que foi bom. No final, resta aquela sensação: aprendi muito com isso. Não duvido, mesmo depois da dor, que se cicatrizou, podemos viver outro amor. Que graça tem a vida se nos matarmos de amor? Haverá sempre um novo a caminho, numa esquina do tempo. Tudo depende do comando da vida o quanto damos de colher de chá para que ela aconteça. Sem desesperanças e com muita inspiração.

Tenho saudades de tudo que foi bom — é claro —, da simplicidade da vida de outrora; da leniência do tempo, nas mudanças e tudo mais que me trouxe até aqui. Tempo em que as paixões nos corações arrebatavam; no cinema, namorávamos; nos olhos, olhávamos; nas bocas, beijávamos. Fazia parte do cotidiano encontrar poesias e versos pelos cantos da casa, receber e dar flores; simplesmente porque era delicioso sentir o coração mais efervescente.

Ah, o primeiro amor, como foi bom viver. Era belo quando a moça respondia à carta com uma boca de batom vermelho estampada num papel de carta. Havia aquelas que colecionavam esses papéis; eu mesmo recebi algumas cartas escritas nesses papéis especiais. E quanto aos recadinhos escritos em guardanapo, era o garçom quem entregava à mesa. Nas minhas declarações, “catava milho” tentando escrever numa “Olivetti”; e no final havia aquela frase em letras maiúsculas ou em CAPS-LOCK, como se diz hoje: P.S EU TE AMO! Era bom, quando dispúnhamos de uma caneta, um papel e um amor para pensar e sonhar — mesmo que fosse só platônico. Meus olhares eram tragados pelas atrizes de cinema e as dançarinas da TV; e as tratava como musas das minhas fantasias. Criava os meus romances particulares. Minhas cartas de amor não foram jogadas em garrafas ao mar. Mas por muito tempo elevaram e pairaram meu coração em colos de nuvens.

O mundo do século 21 tornou as pessoas mais individualistas e distantes; pôs asas na comunicação e como tudo também ficou mais sem emoção e inspiração; pôs até macarrão instantâneo na nossa mesa — que mau gosto! O amor agora é virtual, os beijos são “carinhas” com bocas vermelhas que vão anexas aos correios eletrônicos. Rosas em arquivos formatos PPS, poemas em formas diversas de apresentação espalhadas na blogosfera. Tudo virou Ctrl “C” / Ctrl “V” e colocou para debaixo do tapete o bom e velho cortejo com criatividade; aquele que vem do coração, explícito em forma de um buquê de rosas vermelhas ou numa caixa de bombom.

No fim das relações a coisa também enveredou por este caminho, diga-se, mais ligeiro. Segundo a agência Reuters, levar um fora digital é um fenômeno que vem crescendo. Pesquisas feitas na Inglaterra apontam que muitas pessoas hoje preferem as redes sociais e e-mails para terminar seus relacionamentos. Mais de um terço dos pesquisados disse que havia terminado seu relacionamento por e-mail, 13% mudou o status no Facebook sem avisar o parceiro e 6% divulgou a má notícia primeiramente no Twitter. Como se pode ver, a modernidade chegou aqui também e como tenho dito: ser solteiro hoje não é mais estado civil, virou status.

Tudo agora gira a milhões de gigabytes por segundo. Difícil mesmo é ser avesso a essa tecnologia. Não vou mentir, é difícil para mim — e acredito que para muitas pessoas também — resistir a tudo isso; agora, por exemplo, estou escrevendo estas linhas diante de uma engenhoca que meus antepassados jamais imaginariam existir. Necessitamos das ferramentas do mundo moderno, precisamos nos comunicar e entrar neste imbróglio informatizado, virtual e globalizado, mas não façamos virtuais também nossas emoções e sentimentos.

Para piorar, a palavra da moda agora é workaholic. Esses jovens viciados preferem como companhia à mesa do restaurante, não mais a namorada ou o velho amigo para falar de futebol; é comum vermos pessoas com seus computadores ultima geração ao lado do prato de comida. Navegando, navegando onde não há água.

Na minha cidade, percebo uma frequência cada vez menor de pessoas comprando flores. Uma floricultura que ficava aberta 24 horas fechou as portas. As flores agora vão por endereço eletrônico — aquela coisa fria e sem fragrância. As poucas visitas às floriculturas são em dias de finados, pois ainda não descobriram os endereços eletrônicos do “além”.

Em 1980, Roberto Carlos compôs a sua Amante à moda antiga: “Eu sou aquele amante à moda antiga / Do tipo que ainda manda flores...”. Exatos há 30 anos, já era antigo mandar flores. Imagina hoje. Ficou antiquado, démodé, cafona, brega demais. Quando as flores eram de verdade, havia o perfume e a alegria denunciada nos olhos de quem recebia; e não tinha como negar: era mesmo uma prova de amor despida por um gesto simples. Naqueles dias das flores, o ambiente se revigorava, se transportava, era outro. Um dia alguém me disse: "Por que mandar flores, se o final delas é o lixo?" Não quis lembrar que, durante aquele período da sobrevida no vaso, aquelas flores renovaram e aguçaram nos corações o amor, deixou os corações mais próximos, atados por um laço de ternura e carinho.

Outro dia fui buscar uns versos e encontrei esses: “as melhores flores são aquelas colhidas à luz das estrelas e entregues na surpresa da primeira luz da manhã”. Se existe a saudade alheia — como romântico ainda — sinto das flores de verdade. As rosas não falam — cantava Cartola —, agora elas também não exalam mais. Deixo-os com esta reflexão: se um dia Deus criou as flores, hoje o Google criou a forma mais rápida de encontrá-las.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2010.


terça-feira, 13 de julho de 2010

Passione


Em 2008, um crime chocou o país. Durante 04 dias um rapaz de classe média de 22 anos manteve em cativeiro e sobre a mira de um revolver outra jovem, Eloá Pimentel de 15 anos. Depois de várias tentativas de negociações, numa operação frustrada, a polícia resolveu estourar o cativeiro — sem querer julgar o modus operandi da ação —, no mesmo instante Lindemberg deu dois disparos em direção à Eloá; a quem tinha uma paixão platônica e por quem foi negada tal reciprocidade. Eloá faleceu depois no hospital e ele foi parar numa penitenciária onde ainda aguarda por julgamento.

O que havia de mal na vida e no passado daquele jovem atirador? Nada, ele era uma pessoa comum, descobrindo a vida, com seus sonhos, seus desafios e prazeres; mas, por trás daquele cenário de horror, havia sim um sentimento envolvido, algo maior que tudo que ele podia dominar dentro de si e por isso se deixou entorpecer. Quando cair em si, irá perceber que pôs fim também à sua própria vida.

Faz alguns dias outro crime aconteceu na minha cidade, pelos mesmos motivos: paixão. Um jovem de 25 anos matou e esfacelou a ex-namorada e seu algoz; dias depois, ao se entregar numa delegacia confessou friamente que primeiro havia matado o rapaz e depois a matou porque ela foi testemunha ocular e o motivo era ciúmes dela, de quem foi namorado. Tudo friamente.

Em ambos os casos, não havia motivo para tanta crueldade: tirar a vida de alguém. Ou havia? Difícil dizer não estando na pele, mas o desprezo foi determinante nestes casos; e depois a intolerância e não aceitação por derrotas. A justiça interpreta estes crimes como sendo passionais, hediondo, por motivação fútil. Não sou jurista para analisar os meandros que seguirão até o desfecho, mesmo porque a justiça dever ser fria e cautelosa.

Contudo, quero por em questão esse sentimento, muitas vezes doente, que é a paixão; e que para muitos há uma confusão com outro chamado Amor. Lindemberg não tinha amor por Eloá, senão não a teria matado. O que fez praticar aquele crime foi sua paixão obcecada e naquele momento não correspondida. A paixão muitas vezes é possessiva, não concede tréguas e não aceita o “não” como resposta. Aquilo que se sente não pode ser desprezado e pisoteado pelo outro. Penso que, o ato de matar o ser “amado” é um desejo (obscuro) também que junto com ele se vá o sentimento que o aprisiona.

Se procurarmos, iremos encontrar inúmeros casos análogos, de consequência também trágica. Na literatura e na dramaturgia essas histórias tidas como histórias de amor já foram contadas, como em Tristão e Isolda ou na celebre obra shakespeariana de Romeu e Julieta (1591/1595). Aquele drama, sugere que a morte daquele jovem casal foi porque o sentimento de um pelo outro era maior que todas as intrigas e diferenças familiares, e nem a morte os iria separar. Se houvesse o aceite das famílias e se casassem, criassem filhos, talvez compreendessem mais as condições do mundo e não iriam se matar quando um ou outro morresse por morte natural. Na verdade, eles responderam com a própria vida os “nãos” que ela os impôs. Quem de nós um dia já não pôs a ponta da língua em algum veneno da paixão? Eles beberam.

O que me chama atenção nessas tragédias passionais são seus personagens: sempre jovens. Na imaturidade não sabem lidar com as derrotas e decepções. Como já havia dito em outro texto, essa fase da vida é onde mais nos atiramos nos precipícios e mais nos permitimos arriscar. Numa outra tese, asseguro também que, quando ficamos mais velhos e maduros, nos voltamos mais para nosso interior: tomamos remédios para doenças invisíveis, nos precavemos mais por sair à noite ao relento, procuramos alimentos mais saudáveis para o corpo e deixamos outros vícios. Assim, também cuidamos mais dos nossos sentimentos e por isso nos apaixonamos menos, sofremos menos desse “mal” ou aprendemos mais com a vida, como queira. Procuramos viver relações mais maduras, onde o bem partilhado é um sentimento livre, sem pressa e sem cobrança; onde a maior discussão com quem nos relacionamos é sobre qual o melhor filme de Almodóvar ou o melhor poema de Drummond. Nada mais a se preocupar ou se questionar.

Amor e paixão — muitos escritores, filósofos, pensadores já deram suas explicações colocando cada coisa no seu lugar. Serei simplista no meu modo de ver, direi que um é água e outro vinho, e transformar uma coisa na outra é o grande mistério. Transformar a água da paixão no vinho bom do amor é o passo seguro que iremos dar para uma relação com caminhar feliz. Na verdade, a maioria das relações fica somente na água da paixão e seca por aí. Há um escritor que disse que a paixão é mistura de um amor de intensidade máxima com um enorme medo. Possessão, obsessão, ciúmes, descontrole, medo são ingredientes que não cabem na receita do amor; esses são os piores temperos de quem se apaixona; e por tudo isto irá sofrer. Ninguém sofre por amor; sofremos por medo. O amor nos quer seguro, confortável e aconchegante no seu colo; ele também requer paz e harmonia para se permitir.

No poema do português Fernando Pessoa, anotado agora na minha agenda, diz: “Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?” Os poetas falam melhor por nós.

Um exemplo concreto do que ouvi sobre o amor veio também numa forma simples de um homem casado que um dia me contou algo que guardei comigo. De maneira natural e sem qualquer problema conjugal ou familiar, disse: “... o único amor que acredito é do de um pai para um filho e vice-versa”. Explicou: “Quando um filho morre, jamais iremos a um orfanato adotar outro, ou vamos procurar nossa esposa para 'encomendar' outro em substituição aquele. Quando um filho morre nosso amor vai junto, ele vira saudade eterna...”. Fiquei com essa analogia por anos e aqui partilho com todos. De fato, essa é uma bela explicação de amor. Simples, mas verdadeira.

Na relação que se acaba, o difícil é “virar esta página” — como sugere quem está de fora. Nesta hora a palavra é serenidade. Este é o segredo para sairmos sem arranhões. Sempre quando alguém vem me pedir socorro, a primeira coisa que me vem é: serenidade. Só quem não tem não sabe a importância dessa palavra nos dias de hoje. Quem tem serenidade tem paz, esperança, paciência, e espera o amor... Tudo que precisamos para passar as tormentas. Temei, apanhei, cai e me ergui, por fim aprendi a contar até dez e ser sereno. Já contei até mil também, é bom ser assim, pois não brigamos mais com o mundo e com ninguém. As pessoas serenas são mais fáceis de você lidar e decidem melhor. São boas ouvintes e quando falam colocam as palavras no seu devido lugar. Aprenderam por terem o coração e a mente decidindo juntos; ele agora apaziguado bate no seu ritmo, no ritmo de Deus.

Da paixão, como conhecemos e como muitas vezes fomos tomados, nos reservamos agora o direito de viver e deixar viver; respirar seus aromas sem o entorpecimento da insensatez. E dela, somente as palavras doces sejam guardadas como numa linda história de amor: “Direis que aquela luz não é da manhã... ainda não amanheceu. Foi o rouxinol e não a cotovia que vos gritou no ouvido. De noite, canta pousado naquela romãzeira. Acredita meu amor, foi o rouxinol...” (*).

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2010.
(*) William Shakespeare – Romeo and Juliet – Ato III - Cena V