BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Ruas de paralelepípedos

Passei os últimos dois meses envolvido com a política, exclusivamente com a eleição presidencial. Não desgrudei do celular, das mensagens e notícias a toda hora. E as pesquisas? A cada uma que saía, uma agonia tomava conta de mim. Aquilo me consumiu diuturnamente, que minha ira se espalhou pelos terrenos áridos das redes sociais.

Desde o atentado, minha fúria só aumentou que cheguei a pensar: — "não é dessa vez que tiramos o pé da lama. Não é!". Imaginei que aquela faca, pontiaguda, poderia ter cortado também todos os nossas artérias de sonhos de país. No fim, a turbulência passou e  agora estamos limpando a sujeiras das solas dos sapatos para entrar o ano de alma lavada. O saldo foi algumas amizades perdidas nas redes sociais, xingamentos (sem desculpa) e uma vida que segue agora o seu curso. Afinal, o Brasil se sairá bem desse lamaçal. Eu espero.

Apaziguado, tirei os livros da estante, voltei às leituras. Acordei e baixei no meu e-book um livro que ainda não havia lido de crônicas rodrigueana (não sei se existe o neologismo). O "Óbvio Ululante" é um apanhado daquilo que Nelson Rodrigues nos deixou de melhor, fora da dramaturgia. E por que eu falo isso? Ontem, não consegui pregar o olho, e já era tarde. Antes de apagar o abajur, li uma crônica que ele se lembrava de uma paixão de infância. A moça (menina moça) era Lili, uma rechonchuda que morava no caminho da sua escola. Lili apanhava do pai e o pequeno Nelson ouvia seus urros e gemidos da rua. Comecei a pensar, então, na minha infância, que depois puxou pela adolescência. Lembranças e lembranças que não estancavam, retardando ainda mais meu sono.

Não tenho voz e cor da infância. É como um filme de Chaplin: preto e branco, sem voz e com uma trilha sonora de fundo. Minto. Lembro, sim, da cor do meu uniforme escolar: camisa branca, calça boca de sino azul marinho e conga alpargatas. Eu já falei também do tom rosa velho da minha casa, que já foi azul clara, com o número 139 sobre a veneziana. Mas voz nenhuma vem. Assim, eu na minha mais tenra idade (aos 10 e 11 anos), atravessava uma ponte gelada para estudar em outro bairro. Mas nenhum gravador registrou uma sílaba que tenha dito. Súbito, penso que fui um faroleiro na vigília do mar. A solidão do mar noturno e um silêncio de vozes, enquanto ondas gigantes chicoteiam pedras e cais. Eu sentia mesmo era paixão.

Ali, antes dos 10 anos, eu já havia me apaixonado. Depois, já nos 11 anos, e assim foi até a fase adulta. (O homem que nunca se apaixonou, não viveu.) As paixões não tinham desejo sexual, mas silhuetas, admiração e contemplação como paisagens. Elas mudavam de direção, mas eu era o mesmo menino: traquino em bando, e tímido no privado. O olhar era lânguido, e a boca balbuciante e sussurrante. (Talvez por isso não encontre uma frase da minha infância.) Nas paixões platônicas não se têm fala, não têm "eu te amo", não tem olhares penetrados, não tem sorriso encarado. Tudo é calado e só sentido; um coraçãozinho já ardendo e sofrendo.

Na quinta série (ali nos meus 11 anos) havia uma garota. Ela era Mônica. Loirinha dos olhos castanhos arredondados. Encantadora, com uma educação aristocrata e beleza nata. Mas eu não era o único. Havia uma fila de meninos de olhos naquela menina simpática de silhueta delicada. Naquela época, as meninas na escola usavam saias três dedos acima dos joelhos. (Com um espelho pequeno dava para ver a calcinha.) Aquele par de pernas era totalmente permitido pelo regime militar, com a panturrilha branca sobre as meias também brancas.

Um dia, fomos expor numa feira de ciência. Um fotógrafo do jornal nos clicou. No dia seguinte, estávamos na front page. Ela linda, sorrindo, olhando para a lente. Ao lado, duas meninas distraídas. E eu com meu amigo cabelo de fogo ao lado, em pé, fazendo caretas. Guardei aquele recorte, mas hoje não sei mais onde está.

No ano seguinte, sem se despedir, ela já não estava mais na escola. Seus pais haviam se mudado para Goiânia, se não me falha a memória. Foi a notícia que chegou. Ela foi embora, mas eu tinha o recorte do seu sorriso pueril. Logo minha paixão se dissipou no nevoeiro da ponte sobre o rio. Outros encantos surgiram, com outras meninas na escola e suas saias de pernas à mostra. Mas paixão não houve por um tempo, até esquecer o recorte.

Como disse, nas minhas lembranças não há muitas falas. Havia, contudo, uma voz fraca. Era do meu pai me chamando sobre o muro do vizinho. Aos 52 anos, sua voz já era cansada pelo cigarro e as dores no peito. Então, algo me vem sempre quando adentro nesse quarto escuro. Se não há voz, há um cheiro imortal. E ele exala na atmosfera da minha vida, até os novos dias, como um perfume da eternidade. Pode até parecer esquisito, mas a aromática lembrança é uma mistura de batata frita, argamassa e tijolo molhado.

Foi um dia qualquer entre 1973 e 1974. Acho que era 1974 (já tinha 12 anos). Nossa casinha passava por uma reforma. Meu pai puxou a casa até à divisa com o vizinho do lado direito. Construiu um paredão que, para rebocar, precisou erguer andaimes. Lá no alto, a cumeeira, os caibros e terças de um telhado à francesa, de uma água só. Um forro de madeira fechava nossa casa para suportar o frio do inverno. Essa era a obra necessária: espaçar centímetros e acolher.

Fecho os olhos e vejo esse dia. Eu sentado à mesa de tampo laminado azul (diziam fórmica), fazendo um desenho com uma régua de madeira. Uma cortina improvisada dividia aquele ambiente do externo, da parte da obra, do paredão. Tudo era improviso naquela cozinha sem reboco e pintura. O cheiro da obra (argamassa e tijolo) se misturava com cheiro de batata fritas que saia do fogão da minha mãe. (Foi uma época que comíamos batatas quase todos os dias.) A batata era cortada serrilhada, de espessura fina. Era cedo ainda para o jantar, havia luz do dia. O barulho da frigideira era sinfônico.

Eu estava naquela fase dos meus desenhos de futebol. Explico. Aprendi a desenhar os lances de gol vendo as ilustrações de Gepp & Maia, que saiam semanalmente no Jornal da Tarde. Um dia levei um desses desenhos à escola (o gol do título do Palmeiras de 1974), e ganhei, dias depois, um autógrafo do goleiro Leão, que tinha parentes na minha cidade e aparecia por ali de vez em quando. Não me lembro se foi minha professora de português que conseguiu. Virei tão especialista em desenhar gols, que passei também a criá-los também. Desenhava os gols impossíveis, com a bola batendo na trave cinco, seis vezes antes de entrar. E sempre era um gol com titularidade de um Leivinha, de um Ademir da Guia ou Edu. Até um amigo me perguntar: — "Esse gol é mesmo verdadeiro?".
Copa de 1974 - por Gepp & Maia

Aquela tarde/noite ficou como um quadro, um Michelangelo na galeria da minha memória. Quando você entra na grande sala, ele está lá, estampado na parede. A reforma, o desenho, os tijolos sem reboco, minha mãe e a fritura que saia do seu fogão. Aquele dia virou segredo de confessionário, um quadro que eu não desenhei sobre a mesa azul. Ele se fez sozinho em mim.

Fiz esses parágrafos para chorar de saudade... 

Volto às paixões que alimentei pelas garotas da minha adolescência. Eu, como quase todos, me apaixonava pelas meninas da escola. Houve depois uma Maria Rita que usava meia 3/4, que eu torcia para encontrar no caminho, na ponte, e chegar na escola ao seu lado, como quem exibe um troféu. Sem declarar nada, devo ter dito muitas bobagens e coisas de meninos.

Mas houve uma paixão por uma garota — na minha lembrança era uma moça e não uma petiz — que morava perto de casa. Meus olhos a descobriram durante as peladas de rua, porque eu jogava no paralelepípedo na frente do seu portão. Ela morava, melhor, ela surgia numa casa que ficava no alto de um terreno, numa edícula. Uma família pobre como a minha, de três filhos. Era seu irmão quem compunha o meu time de rua. E quando ela saia para ir à padaria, meus olhos travavam até que dobrasse a esquina.

À noite, eu sentava no portão para vê-la vindo da escola, pontualmente às oito e quinze da noite. (Era um horário estranho para aquela escola onde ela estudava. A aula começava às quatro da tarde e ia até às oito, já no jantar.) Ali, no portão, eu fazia plantão, para vê-la desfilando suas bochechas rosadas, segurando os livros e cadernos apertados juntos aos seios já com sutiã. 

Até que um dia, ela desceu a rua ao lado de um rapaz arcado, magro e bem mais velho. O quanto mais velho? Sei lá, uns 17 anos.  Ele era loiro, nariz pontiagudo e tinha o cabelo liso, fino e penteado do lado, caindo na testa. Achei que era só um garanhão, porque não imaginava que ela pudesse se interessar por uma tábua envergada. Mas o medo vinha junto:  e se ela ceder? Todos os dias eu me perguntava: "o que ele tanto fala à ela que eu não consigo dizer?". Passaram alguns dias, aquela deusazinha da rua, de bochecha rosada, desceu a rua com ele com as mãos sobre seus ombros. Ali eu sepultei minhas esperanças e mais uma das minhas paixões se encolheu para sempre. Acho que chorei por dentro, por me achar mais feio que uma tábua envergada.

De nada valeu querer chamar sua atenção, por muitas vezes, com meu futebol de rua, que jogava descalço sobre o paralelepípedo em frente ao seu portão. Ela não me via com olhar nenhum. Eu era mais um daqueles sujinhos da rua. Além de tudo, eu era sardento e tinha cabelo grosso, espetado e sem shampoo. Para piorar, me apelidaram de "gordo", mesmo não sendo. Depois, a arcada dentária tinha diastema. Talvez sejam essas minhas desculpas para não me aproximar. O medo do "não" entalou e morreu comigo.

Guardei ali, nas juntas dos paralelepípedos das antigas ruas, meus dedões estourados de chutar bola descalço. Claro, isso foi antes do surgimento do kichute. E o primeiro apareceu nesses idos, ali pelo meio dos setenta. Era o calçado que estava ao alcance de todo garoto pobre de periferia. Dava para jogar bola no paralelepípedo da rua, na terra do campinho e depois servia para ir à missa de domingo. E havia também o segredo do cadarço. Ninguém amarrava o kichute de forma convencional. Ou era na canela ou era por baixo, dando voltas na sola, com as travas não permitindo que o cadarço se arrastasse no chão. Eu amarrava por baixo. Achava que ficava mais firme nos pés.

Hoje, tenho respeito pelas ruas de paralelepípedos, porque elas guardam em si histórias de crianças, de peladas descalços, de brincadeiras de queimadas, enterros, procissões e paixões. O paralelepípedo é o que decora minha alma de infância. O paralelepípedo é o adorno que emoldura a simplicidade das casas. Não são ruas de passagem; são de imortais peladas, onde deixei meu dedão sangrando por muitas tardes. São ruas da feliz esperança, de paixão pelas meninas de bochechas rosadas. E tudo com o aroma bom da frigideira de batata fritas. Minha infância não teve voz, mas teve muito cheiro bom.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

quarta-feira, 5 de abril de 2017

De volta ao quarto escuro

Algumas crônicas requerem coragem para escrever. Como se uma fratura da alma fosse ficar exposta; um réu confesso de um crime que só você sabe, porque o assassino e o cadáver é você mesmo.

Bem, no caso, não se trata de um crime, mas de velhos segredos (de liquidificador), esconderijos de um poço fundo. Dessas coisas que empurramos para debaixo do tapete do tempo ou, como já disse em outra crônica, aquele quarto escuro no fundo de casa, onde amontoamos nossas memórias e tudo aquilo que negamos do passado: dores, vexames, vergonhas, pobreza, fome e mortes. Há sempre dores na memória prontas para serem reveladas. As dores da fome e da morte são doloridas de lembrar. Então, acobertamos.

Estava esses dias carregando meu Kindle (aparelho de ler livros digitais). Parei na espera do médico, abri, digitei a senha e comecei uma cronica de Nelson Rodrigues. Ele descrevia (confessava) exatamente sobre essas duas negações: fome e morte. Ninguém consegue falar sobre isso, quando tudo ainda está consigo. Só falamos quando já superamos a dor, ela já foi. E Nelson, corajoso, contou de uma infância, do dia que pediu água para beber num botequim. A água não era sua sede, mas sua fome. Era a primeira coisa que punha na boca naquele dia, já às 8h da noite. Dores de fome na infância.

Na mesma contextualização veio a sua lembrança a "Espanhola". Aquela gripe que fez, em 1918 (por todos os cantos por onde se olhava), um amontoado de defuntos. A morte que acostumamos já na infância, e dela aprendemos a não ter medo. Escreveu no final: — "A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. A cidade estava cansada da morte". Coisas de um mundo que essa nova geração (do lado ocidental) não se assemelha e nem sabe que existiu. Somos apartados e poupados do convívio, da cara da morte, da carne exposta. As crianças da classe média, que passam Nutella no pão, mais ainda.

Eu testemunhei a primeira morte, ainda de olhar pueril, com certo espanto e assombro. (Testemunhei, não, eu senti.) Ali pelos meus seis, sete anos. Era um menino paraplégico que havia morrido próximo de mim. Morava duas casas da minha. Primeiro, queria dizer que minha tia já havia perdido alguns filhos recém nascidos. E aquela cena de caixãozinho na sala, parecia comum. Como se a cada ano se esperasse um novo enterro para despachar. E lá ia o cortejo, a pé, para uma sepultura branca e singela, como tudo era na nossa vida.

Ouvia os adultos falarem de morte, e eu sempre no meu assombro sem manifestação. Eu era silencioso e complacente. Havia uma fala entalada em mim, sem nunca pronunciada. Ela teve uma filha, que me lembro, durou mais de um ano de vida. Acho aquilo que levou aquela priminha era uma meningite. Não pude nem chorar, porque criança não entende muito de perda. A criança, em nós, imagina sempre algo confortável, como um anjo. Era um anjo erguido aos céus. Eu imaginava assim: não há dor quando se vê um anjo.

(O que me recolhe mais ainda para dentro do catolicismo, não é só o respeito aos meus pais que me deram sua religião, mas também esse encontro de vida e morte; de compreensão, na fé, que nada termina, mas, sim, se modifica, se amplia numa extensão de alma. Não há explicação racional.)

Volto ao caso do amiguinho — não vou dizer o nome. Era uma amizade de limites. Explico. Ele não podia fazer as coisas que eu fazia: correr atrás de pipa, pular corda, jogar bola, etc. Mas não havia queixa nos seus olhos; eu amava sua companhia e não enxergava nada nas suas limitações, não havia pena. E mesmo sentado na sua almofada xadrez verde, do quintal, ele "batia figurinhas", empinava suas pipas. Tinha habilidades com os dedos para fazê-las ganhar os céus com rapidez. Coisa que eu não tinha.

Havia, eu me lembro, um carrinho de madeira com rodas de borracha, que nós levávamos seu corpo miúdo para onde queríamos. Até para a escola ele ia no carrinho de madeira. Nas outras vezes era carregado no colo como um recém nascido e quando se sentava no chão, era sempre na almofada xadrez. Suas pernas eram finas, sem carne e o joelhos saltados, sobressalentes, só ossos.

Havia algo mais, suas pernas não se esticavam. Franzino, queixo fino, pequeno para os seus 12 anos, ele ia diminuindo quando as dores chegavam. Atrofiava e a dor vinha em compasso, cumprimindo seus ossos. Uma vez teve uma crise. Primeiro, ele reclamou que o café com leite (era mais leite que café) estava com nata e sua mãe tirou com toda paciência. No dia que um médico foi chamado, eu fui para o corredor, dos fundos da casa, espiar da janela. Vi o médico apertar seus joelhos saltados para baixo. A perna não esticava, o joelho não obedecia. A doença estava se agravando.

Quando veio a notícia de sua morte, recebi resignado, sem choro, porque ninguém chorava naquela época. Era esperada sua hora e todos já haviam chorado por dentro, e muito antes. Alguém em casa ainda comentou:  "tiveram que empurrar seu joelho para fechar o caixão". O joelho não obedeceu nem depois da morte, era rígido. Pus a cabeça no portão, e vi pessoas se aglomerando na frente da sua casa. Não sai dali até que o cortejo partisse. A vida seguiu depois e eu guardei aquele menino no meu fundo quarto escuro, nas minhas memórias de dor e morte.

No dia seguinte (e nos outros) estávamos novamente na rua; nos carrinhos de rolimã, atrás das pipas, da bola, piões, cata ventos, balões e estrelas no céu. O vento no rosto e a camisa xadrez tampada com remendos, e calção de brim grosso. Esquecer quem partiu já era parte de nós. Quem nasce na pobreza, nunca escapará de um "não", de uma ferida aberta (sem Merthiolate), que não nos queixamos da ardência e sangramento. Mas, mesmo na escassez, a vida tem também o seu "sim". Sobreviver é o "sim" da miséria.  E, por acreditar que tudo passa, chegamos à vida adulta. Aprendi, desde então, a ter que aceitar a morte nos pequenos homens como eu era — 7 anos. Era destino, fatalidade. Nunca havia culpa. Por trás de muitas delas havia, sim, a pobreza. Se morre, porque, em muitas vezes, se é pobre.

Certa vez ouvi de uma pessoa (uma mulher) que, ter dinheiro e perder tudo é pior que nunca ter tido nada. Quando acostumamos a não ter nada, não nos importamos com as pequenas perdas. Ela falava de si e estava certa no seu modo de pensar. Aquele que é pobre não se compara a ninguém. Exceto a ele mesmo.

Olho, agora, as velhas fotografias, amareladas e o que chama atenção não são nossas feições (pai, mãe, irmãos, primos), mas as paredes que estavam atrás daquelas silhuetas. Vulneráveis paredes, sem reboco e muito menos tinta. Eram tijolos expostos, com argamassa de terra (sem cimento). Os tijolos de uma fome, uma fraqueza, num sinal crível de pobreza. Quanto mais tijolos vistos e terrenos cercados por taquaras amarradas, maior era a pobreza. Nossas fotografias não escondem nada. Radiografam uma memória: éramos pobres.

Se escapamos da morte na infância, devemos à sorte e não a prevenção e cuidados com vacinas e medicamentos. Um médico, um hospital eram coisas distantes da vida de quem morava periférico do mundo. Os pés descalços, o esgoto correndo pela rua de terra, a água de poço, a latrina, etc. Não havia medo de doenças e de nada. Mas havia algo bom: as balas, o bolinho de chuva, o pão doce com mortadela, o ki-suco, o café com leite e farinha de milho. Havia um olhar de esperança e de não se enxergar na pobreza. Ter a percepção de que algo lhe falta, dói mais. Eu não tive. Eu sonhava coisas pequenas de um mundo pequeno.

Certifico, por fim, não vi a fome, como Nelson, mas a quase fome me avizinhou como um trem fantasma. Quando, na memória, tocamos nossas dores e mortes, é como se palavras se desprendessem ao vento do nosso livro aberto. A voz entalada da infância, que agora se solta, além das cortinas e janelas da alma.  O quarto escuro é o velho passado, cansado de tanta dor, pobreza e morte. Agora escancarado, vasculhado na narrativa. O passado fenece quando falta coragem para tirá-lo da escuridão e expor no meio da rua, à luz do mundo.

"O que não se diz apodrece em nós" — Nelson Rodrigues.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Abril de 2017

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Sobrevivente




Sou sobrevivente de um mundo que não usava cinto de segurança;
De um mundo que tinha medo de misturar manga com leite (e Deus com o pecado);
De um mundo que tomava café com açúcar e leite com nata;
De um mundo que bebia água da moringa e da mangueira do jardim;
Sou sobrevivente de um mundo de pés descalços em ruas descalças;
De uma infância de carrinho de rolimã e joelhos ralados com merthiolate;
Ah... quantos aniversários sem bolo e parabéns. De Natal sem presente. Sobrevivi;
Sou sobrevivente do futebol de rua e da “queimada” com bola de meia pesada, na orelha;
Das linhas de cerol lambendo os fios da rede elétrica;
Sou sobrevivente da zoação no pátio da escola. Aquilo que hoje chamam de bullying;
Sou sobrevivente da porrada no portão da escola, das cusparadas na cara;
Sou sobrevivente de um mundo onde ninguém se importava com a fumaça do cigarro;
De um mundo onde, nas quermesses de igreja se soltavam rojões e os cães latiam, porque os cães latem, porra!;
Sou sobrevivente de uma adolescência sem Playstation e Smartphone;
De muitos verões debaixo do sol escaldante, sem filtro solar e com muito "rayito de sol";
De um mundo onde se criava muitos filhos, sem esperar nada do governo;
Sou sobrevivente de um tipo de educação acompanhada de muitas surras de pai e mãe;
De um modelo de disciplina, de aguentar reguadas na cabeça e puxões de orelha da professora;
Sou sobrevivente desse mundo austero, improvisado, sem muitos cuidados e perigoso;
Sobrevivi, sim, a uma noite de bebedeira ao volante, por uma paixão impossível, que o tempo depois curou;
Sobrevivi a todos os riscos que o mundo de hoje não suporta correr, porque acreditam que não há anjos da guarda;
Sobrevivi (por Deus e esses anjos), porque os sobreviventes contarão as histórias da vida de outrora e suas batalhas como lições;
Sobrevivi esses anos e a tudo isso para dizer a esse mundo babaca de agora, de uma gente vitimizada, infantilizada, mimizenta, ranhenta;
Para dizer a essa geração de covardes insanos, à essa geração “sete a um”, nutella, snowflake:

VOCÊS SÃO CHATOS PRA CARALHO!

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Janeiro de 2016

domingo, 18 de março de 2012

Cerzir, coser, remendar


Pique-esconde ou esconde-esconde? Você brincava de quê? Não importa a região onde se mora ou o nome que se dá; era esta — acho que continua sendo — a brincadeira de criança mais gostosa que existia. Há algumas razões para entender: não distingue meninos e meninas; as crianças se escondem em qualquer canto e vão que encontram. E como em qualquer brincadeira de competição, a pilhéria é a vitória: venci pela minha astúcia de não ser encontrado — sente a criança. Recordo-me que havia inúmeros esconderijos dentro de casa, no quintal, ou na rua. Era atrás da porta, embaixo da cama, embaixo da escada, atrás do sofá, dentro do guarda-roupa, dentro do cesto de roupas, atrás da casa, em cima de árvore, atrás do poste de luz... O meu preferido era dentro do móvel da máquina de costurar.

Os nascidos a partir dos anos oitenta não sabem que nossas mães tinham máquina de costurar em casa. Minha mãe tinha e minha avó paterna também. Lá em casa era um móvel de madeira ocre; ao abrir a tampa superior saltava a máquina “Elgin” lá de dentro. Na porta frontal havia um nicho para guardar instrumentos, linhas e trapos. Havia um pedal que movia as polias ligadas por uma correia dentada. Havia também aquelas portáteis e pesadas, que você levava para todo lado. Essas eram movidas à mão e guardadas dentro de uma caixa de madeira com uma tampa arqueada.

Não sei dizer se bem ou mal, mas minha mãe costurava muito. Ela não costurava por cruzeiro nenhum, era só para nós. Ela sentava à tarde e costurava nossas roupas, as novas e as velhas. Às vezes eu me metia a querer aprender algo com ela, fazendo minhas máscaras e capas de zorro. Aprendi a pregar botões de tanto auxiliar minha mãe a passar a linha pela bobina e depois pelo buraco da agulha. Hoje, quando um botão cai, eu mesmo costuro — não esqueci o ofício.

Naquela época, as roupas novas não eram compradas em Shopping Center nenhum. Na maioria das vezes eram de confecção própria da máquina de costurar caseira. Até o uniforme escolar e o jaleco que usava na oficina do colégio era feito por minha mãe. Tudo era ela quem fazia. Lembro-me dos calções que usava (hoje se diz short ou bermuda), esses eram de um tecido grosseiro e resistente (brim), com um elástico na cintura e sem bolso. Bem simples para aguentar um “escorregador”, um carrinho de rolimã, ou um chão de cimento.

Quando o calção rasgava (sempre no traseiro), ela recortava um pedaço de pano de outro tecido, um pouco maior que o rasgo, e forrava por dentro; depois cerzia por fora, com a costura aparecendo. Estava remendado para rasgar de novo. A técnica é parecida como consertar câmera de ar de bicicleta. A diferença é que no cerzido, o remendo era latente e ia por dentro da roupa. Já a costura, era como uma cicatriz na pele.

Faz tempo, eu não ouço a palavra cerzir. Fui ao dicionário para ver se ainda existe. Existe sim: cer.zir (lat sarcire) vtd 1 Coser, remendar (um tecido), de modo que não se note o conserto. 2 Unir, juntar. 3 Entressachar, intercalar. Cerzir era o modo mais prático e barato em manter o que ainda dava para usar, porque o estrago não foi grande e o restante da peça estava inteiro. Fazer remendos, unir o que rasgou. Não havia estética e beleza no cerzido e sim a necessidade e a economia em não ter que comprar outro corte de pano para coser uma nova. Hoje jogamos a roupa fora, ou doamos para quem não faz questão de um rasgado. Cerzir era como levar o par de sapato ao sapateiro para colar uma meia-sola.

Lembrei-me dessas histórias outro dia, quando minha camisa rasgou na maçaneta de uma porta. Estava no trabalho e fui voando para casa trocar. Sem a infância para me proteger do vexame e dar risos, enchi-me da vergonha com a face rubra, pela camisa dilacerada. No caminho fui pensando na minha mãe e no cerzido que ela fazia. E como minha vida mudou de lá para cá. A roupa cerzida não faz mais parte de mim. Não preciso mais cerzir o que rasgou. O que fazer com ela agora? Não temos mais necessidade do remendo e a velha máquina de costurar ficou obsoleta, enferrujada, esquecida no porão da memória. E eu perdi para sempre meu esconderijo favorito.

Cerzir é resgatar. É uma forma que temos de melhor conduzir as coisas que ainda têm conserto; pessoas e roupas que têm valor e podem durar por muitos anos em nossas vidas. O que é bom não pode ser jogado fora, só porque está machucado, ferido ou rasgado. Um coração mesmo dolorido e esfolado ainda pode ser cerzido. Ele voltará a ser novo.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

domingo, 16 de outubro de 2011

Com quem será?


Não existe lugar melhor para levantar assuntos polêmicos do que uma mesa de bar. Ali se deixam opinar; não existe censura ou repressão, e muitas vezes há choros — com revelações surpreendentes. Um verdadeiro divã para psicanalista; e nem precisa de uns goles a mais, as palavras brotam por si só.

Outro dia, numas dessas conversas de botequim, quando falávamos sobre educação e criação de filhos (havia pessoas conhecedoras do assunto), veio a mim uma questão que expus. Por que virou costume em festas de aniversários, além do “parabéns a você”, cantarem o constrangido hino “com quem será”? Digo que é constrangedor, porque os puxadores se esquecem de que estamos ali para homenagear, celebrar e não constranger alguém. Se for mulher ou homem, casado ou solteiro, adulto ou criança; não importa, será escarnecido. Ou, pagará o mico. Para muitos, não passa de uma brincadeira, mas nem sempre é assim. No caso da criança, é uma forma de bullying (intimidação). Por que não?

Quando era criança, nas festas infantis, havia tão somente o “parabéns a você” seguido de um grito uníssono do “pra fulana nada? Tudo! Então como é que é. É pique, é pique, é pique é pique. É hora, é hora... Rachi bum, fulana, fulana!” Pronto, o aniversariante era homenageado, saudado, ovacionado; e não constrangido no dia do seu aniversário.

Quando chegou a era do “com quem será” — não me pergunte quem criou essa tolice —, presenciei algumas festas infantis. A criança, roxa de raiva ao ouvir aquilo, escondeu-se embaixo da mesa; houve casos onde ela saiu correndo, procurando um buraco para se enfiar; em muitos, ela fazia sinal negativo com o dedo; com gargalhadas dos convidados, inclusive dos pais. Isto é penoso demais, é coação. Não só isso, mas a incitação à precocidade, de aos 10 anos de idade, ter que cumprir aquilo que ainda não está no seu script: corresponder-se sentimentalmente e sexualmente com a garotinha que está na ponta da mesa. É pior que o despejo de ovos na cabeça no portão do colégio.

Até os meus 12 anos, ainda tinha hábitos infantis, como empinar pipas, futebol de rua, carrinhos, esconde-esconde, pega-pega; brincadeiras verdadeiramente infantis. Não era cobrado por ser adulto. Mesmo quando entrei definitivamente na adolescência – com um pequeno trauma de deixar a infância, como muitos – fui respeitoso com esse processo. Somente nos meus 15 anos, eu comecei a interessar por alguma menina. Disse interessar, isso não quer dizer que a abordei ou a encostei na parede tentando arrebatar-lhe um beijo. Além do que era tímido.

Psicanalistas irão dizer que a sexualidade já está no ser humano nos primeiros dias de vida. A sexualidade e não o sexo, diga-se de passagem. Como a necessidade de se alimentar ao levar os dedos à boca; são descobertas. Mas estimular o sexo, pulando etapas, poderá gerar um choque na formação do indivíduo. Não sou estudioso, mas é o que penso. Abomino essa precocidade.

Faz um ano li nos noticiários, que o governo brasileiro, não sei precisar qual ministério, queria disponibilizar nas instituições públicas de ensino, máquinas para distribuição gratuita de preservativos. Recentemente, vi que a ideia absurda, ainda está em pauta. Como já disse a amigos, mais uma vez o governo quer entrar em nossas casas para dizer como devemos educar nossos filhos, na vida sexual também.

Poderão alegar o crescente número de adolescentes grávidas. Mas isso não é a melhor maneira de diminuir o risco; sim, pode ter o efeito contrário, estimular o sexo numa idade onde não existe o preparo. Volto ao que já venho afirmando, a família deve sim orientar e educar nesse tema; pais (casados ou divorciados) devem educar seus filhos nas questões e tabus sobre sexo.

Imagina uma máquina dessas na frente de um pré-adolescente, ali nos seus 12 anos de idade. Ele ficará constrangido em ter que apertar o botão da máquina na frente da plateia de amigos. Se apertar, ficará constrangido por ficar com o envelope guardado na mochila por muito tempo; irá querer usar, ou será intimidado por outros a ter que usar. O mesmo ocorrerá com as meninas. No fim, as escolas virarão um atalho obscuro ao sexo precoce e sem limite. Com permissão.

Depois dessa infeliz atitude, não ficarei surpreso, se obrigarem as escolas a terem salas para tratarem necessidades sexuais dos alunos; com luz ambiente e música para relaxar. Isso é pior que “com quem será” nas festas infantis. E haverá pais que ainda acharão graça, como fazem vendo seus filhos sendo constrangidos em frente ao bolo de aniversário.

O sexo, assim como o amor, deverá ser aflorado naturalmente em qualquer indivíduo, como um sol que raia o dia em meio à escuridão. Sem o intrometimento e a imposição das vozes de um “com quem será”. É preciso respeitar as crianças e a infância.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2011

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O presente de Natal


Quando decidimos reformar a casa, pedi licença à memória de meu pai — o arquiteto — e me atrevi a arranjar o projeto. Comecei e saiu. Queria ter sido mais que o arquiteto, queria ser o eterno morador da casa que meu pai construiu. Onde vivi os melhores anos da minha vida.

A arquitetura é para viver, isso já foi um conflito, agora é um conceito que carrego comigo, quando ainda sonhava com a carreira. A peleja da forma versus a função. Nossos mestres insistiam nessa polarização, que brigava um mundo belo com o necessário. Sempre pensei e me pus ao lado de que tudo tem um porquê; mesclando função com a estética: a minha arquitetura. Há que ter vida na arte para que não caia na frieza, insossa — capa de revista. Arquitetura tem alma!

Sem saber disso, meu pai foi idealizador e construtor da nossa casa. Ele, contudo, não teve um projeto discutido e aprovado; nem um par de esquadros, um escalímetro e muito menos dispunha de um Neufert para consultar antes de iniciar a sua obra. Havia, todavia, a necessidade de abrigar a família, dar guarida com alguns milheiros de tijolos de barro. Era tudo o que tinha a mão e no coração.

A casa é meu pai, ele é a casa eterna que morávamos; e somente ele a pôs de pé. O arquiteto da nossa vida. Minha irmã, não entendeu e não a culpo por isso: não ver alma por dentro do barro do tijolo. Havia pressa em retornar à velha casa e também ansiedade. Como cobrá-la a entender de arquitetura enquanto punha água para ferver, se também não sou cobrado por entender de culinária; e o máximo que aprendi sobre esta arte foi fritar um bife acebolado. Ela nunca soube quem foi Mies van der Rohe, ou quem projetou a casa da cascata foi Frank Lloyd Wright — como gomos que saem das pedras com a queda d'água. Nunca também soube, que Gaudí esculpia sua arquitetura nas formas humana e depois de pronta a desenhava: curvas sem fim.

O pedreiro também não entendeu, o pintor se esquivou. Por que o nicho na parede a revelar a parede velha, desbotada? Havia a demão da tinta, a primeira. Ela não é velha; velha é nossa dor. A cor e suas nuances me remetem ao passado: o rosa velho que meu pai pintou antes. Era a última casca de tinta, depois dela era o reboco e os tijolos de barro (sua alma). Aquela cor rosa velho era o paspatur do retrato do arquiteto construtor. Arquitetura só existe para mim se tem memória eterna. E a memória nos trás lágrimas nos olhos. A arquitetura me emociona. O pintor pintou sobre a memória com tinta branca.

Era Natal. Depois da missa do Galo, íamos para casa comer a modesta ceia preparada por minha mãe. Aquela casa pequena de parede cor rosa velho — meu pai a pôs de pé. Era raro o Natal que ele estava conosco. O trabalho, muitas vezes, o consumia até na noite de Natal. Era um preceito, pôr pão na nossa mesa. A cozinha era quente, no forno havia assados que minha mãe preparava. E a criança resistia ao sono à espera da meia noite e assim celebrar: é Natal! Depois da reza, ceávamos e conversávamos um pouco mais, para depois ir para cama. Enquanto desenrolava a conversa, com os olhos caídos de sono, eu contemplava o Menino Jesus no presépio. Era um tempo de luz incandescente e amarela, como fotografia.

Era o nascimento da esperança: como será o próximo Natal? Não havia presentes e nem árvore de bolas coloridas. Montávamos um pequeno presépio sobre a mesinha de madeira que ficava ao lado do aparelho de TV preto e branco. Os presentes vinham antes do Natal. A fábrica onde meu pai trabalhava, era o verdadeiro papai Noel que acreditávamos. Ela nos dava o único presente que ganhávamos no Natal. Nunca falhava, apesar de não poder escolher o que ganhar. Os presentes eram distribuídos conforme a idade e sexo.

Houve um Natal, porém, que o presente não veio. Meu pai adoeceu e a fábrica o afastou. Não fomos à festa de entrega e muito menos tivemos brinquedos. Esqueceram de nós. A desolação era percebida. Como um Natal sem brinquedos? Era verdade, mas não chorei (eu sentia, mas não chorava). O Natal passou sem presente. Como cobrá-lo? Aceitei calado. 
 
Alguns dias se passaram depois do Natal, e uma Kombi estacionou à nossa porta. Eu não acreditava e meus olhos brilhavam. A Kombi estava cheia de brinquedos para nós. Não que todos fossem para nós, mas havia a possibilidade de escolher um entre muitos. Até me esqueci que o Natal já havia passado. As visões que me vêm não me trazem à lembrança a cor da Kombi, se era branca, vermelha ou azul; mas de uma coisa eu não me esqueço: havia muitas bolas gigantes de plástico. Não sei qual foi o brinquedo que escolhi, não me lembro. 
 
Hoje, acredito que o serviço social da empresa, tenha sentido nossa falta no dia da entrega dos presentes e quis, assim, reparar o erro mandando aqueles brinquedos depois. Da minha cabeça, nunca mais saiu esta cena, quando a Kombi estacionou no meio da rua e o motorista perguntou pelo meu pai. Foi um dia feliz.

Acostumei-me a não ganhar muitos brinquedos na infância, e por isso me lembro dos poucos que tive. Como meu irmão escreveu em sua crônica (Você já aprendeu a descascar laranja?), nossa infância nos reservou habilidades de construir, muitas vezes, o nosso próprio brinquedo. Num aniversário — tão raro de se comemorar — eu ganhei um bumbo de plástico e com ele ensaiava uma percussão que mais atormentava do que agradava as pessoas. Lembro-me também de um caminhão basculante, de cabine vermelha e caçamba amarela — este já no Natal. Depois outro: uma mini-mesa de sinuca. 
 
Havia na minha rua, um menino que tinha muitos brinquedos em seu quarto. Brinquedo caros, diga-se. Quando era convidado, eu ia lá brincar de autorama, de forte apache e com um pião prateado gigante que, além de ter som, piscava uma luz vermelha. Eu adorava, embora soubesse que não era meu. Eu só brincava quando ele me deixava pôr a mão.

Eu já tinha 18 anos, quando meu pai partiu. Foi em 23 de dezembro de 1981. Um edema pulmonar o levou na véspera do Natal. Eu estava na sala de espera do hospital, quando o médico trouxe a notícia. Ele foi novo, quieto, sem reclamações, como sempre viveu a vida inteira. Lembro-me, que o único veículo de transporte que ele teve na vida foi uma bicicleta Hércules, que o levava e trazia do trabalho.

Já me perguntaram algumas vezes, se meu Natal passou a ser triste depois desse. Não! Nunca. As crianças estão aí preenchendo com alegria o lugar da tristeza, que às vezes insiste em brotar; e quando elas crescerem e se casarem, outras crianças virão. Crianças trazem alegria; as novenas de Natal, a esperança; a estrela de Belém nunca se apagará; e o Menino Jesus continuará na manjedoura. Como poderei ficar triste quando se anuncia o nascimento?

Para os artistas, não existem obras acabadas, elas são abandonadas por eles pelo caminho — lembrou-me um amigo. Ela foi junto com sua partida. A casa foi o presente que meu pai idealizou e ergueu com as mãos de pedreiro e alma do arquiteto que o nomeei. Ele a queria, talvez, bem mais aconchegante. Ele nos deixou assim seu presente de Natal para que um dia eu pudesse mexer e modificar a sua obra, tornando-a eterna. Com tijolos que ele mesmo assentou. Sua alma está lá. Assim, o Natal, sempre será comemorado sob o telhado que meu pai construiu.

Definitivamente, não existe Natal triste; sempre haverá o Natal, com a lembrança do baú de brinquedos que guardamos em nossa memória, em forma de saudade. FELIZ NATAL!

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / dezembro de 2010.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Balões Cristalizados


Meu professor da FAU — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo — dizia que crianças e adultos têm diferentes percepções em escalas de grandeza. O que ele quis dizer com isso? O que é grande para uma criança, já não tem a mesma dimensão para um adulto. Minha avó paterna — seguindo os velhos hábitos da vida que trazia do campo — todos os anos plantava milho em seu quintal. Depois que fazia sua pequena colheita, aquele quintal virava um campinho de futebol para nós. Na minha cabeça e para meu corpo tudo era imensurável. Hoje, presumo que mal daria para estacionar uns três automóveis.

Quando ficamos adultos, além de perdemos essa escala, que também vem com a imaginação, deixamos outras riquezas para trás. Já repararam que tudo que uma criança faz é serelepe, correndo? É energia pura que depois perdemos com a velhice. Criança é assim: você pede alguma coisa e ela sai correndo disputando corrida uma com a outra ou com ela mesma. E quando há prêmios, corre mais ainda. Depois que ficamos adultos, junto com o peso das pernas e a indolência, tudo se torna mais lento.

Outra riqueza que perdemos quando deixamos a infância é a capacidade de olhar para o céu, enxergar coisas que só crianças veem. Eu via muitas coisas no céu, durante o dia e à noite, muito além das estrelas. Não importava onde estivesse: debruçado na janela, estirado na grama, andando na calçada ou no meio da rua. Eu não tirava os olhos do céu. Ou eram astros, ou eram pipas, ou eram balões.

Depois da exaustão das peladas da rua de paralelepípedos, ficávamos esparramados na calçada com a cabeça sobre a bola, mirando o céu a procura de algo. Em poucos minutos os olhares eram arrebatados. Quais desenhos as nuvens podiam formar? Víamos cavalo-marinho, elefantes, girafas, homens gigantes e, às vezes, se via Deus também; e sempre com aquela cara de bravo. Havia outra visão maluca: à noite, a lua cheia era um ventre de uma mulher com feto. O Cruzeiro do Sul, a Via láctea, as Três Marias, tudo virava desafio. Em que ponto do céu estará hoje? Já os pontos cardeais e a linha do equador, esses eu nunca vi... Ah! Apontar estrelas com o dedo fazia surgir verrugas; às vezes eu apontava, mas recolhia rapidinho.

Akira era um japonês sem rosto, ou aquele que tinha a feição das pipas que fabricava. Uns diziam que tinha 15 anos, outros lhe davam menos. Eu nunca o vi, só sabia que morava a uns dois quarteirões da minha casa. O melhor e mais famoso fabricante de pipas era um fantasma, mas era olhar para o céu eu identificava as suas. Eram pipas majestosas, soberbas, coloridas e bonitas. Quando não havia "caçadas", elas reinavam sozinhas no céu, soberanas aguardando uma peleja; quase que paralisadas, flutuando com sua rabiola gigante parecendo calda de cometa. Eu gostava mesmo era quando ele derrotava seus adversários usando sua mais exuberante invenção: o chicote. Era uma linha com cerol que se estendia além da rabiola. Quando ele partia para cima, nunca perdia uma caçadinha.

Nessas temporadas de pipas eu vivia pela rua. Não sabia fazer uma pipa sequer e às vezes que teimei, saiam pensas e feias. Assim como Hassan, eu sabia mesmo era correr atrás delas quando as linhas eram cortadas. Sob sol ardente, eu corria, corria até rosar e salpicar as bochechas de sardas — essas que no banho eu esfregava para tirar de tanta vergonha que me causavam. Nas minhas contas não me lembro de quantas pipas “cacei” por aí. Acho que foram poucas, em outras eu era contemplado pela sorte quando elas enroscavam no pé de laranjeira no fundo do nosso quintal. Essas vinham de graça, pois não custava a correria e nem as sardas do rosto.

Entrava o mês de junho eu ficava à noite mirando o céu. Agora eram os balões. Quatro ou cinco por noites me acendiam. Balões e estrelas. Havia balões de diversos formatos e ciências: diamante, charuto, pião, caixa e mexerica — que eu me lembro. No caminho até a quermesse da igreja meus olhos não desgarravam do céu, o que me causavam alguns tropeções. Quantos discos voadores devem ter me confundidos e eu nem percebi.

Diferente das pipas, fabricar balões era mais penoso; requisitava mais habilidade e prática. Eu sabia a técnica de tanto observar e dava minha contribuição como um verdadeiro AFB — Auxiliar na Fabricação de Balões. Meus irmãos mais velhos e primos é que eram os verdadeiros artesãos. Balões não se mediam por tamanho, mas sim pelas quantidades de folhas de seda que cabiam. Havia os de dezesseis, vinte quatro folhas e até mais. Sempre em números pares. As folhas de seda eram coloridas e coladas com cola espessa para não deixar o ar quente vazar. A arte final era fazer a mecha de fogo — aquilo que iria fazer o balcão ganhar os céus; e isso custava alguns retalhos de estopa, parafina e querosene. Depois de enrolada, com a parafina semeada no tecido, a estopa era amarrada com arame e embebida no querosene. A mecha ia à boca do balão. Pronto, agora era descer até o quintal e viver.

Lembro do meu último balão. Foi numa noite que havia jogo do Brasil da TV. Quando o jogo acabou e já passava da meia noite, fomos para o quintal. Minha missão naquela operação de lançamento foi segurar uma das pontas. Depois do fogo ateado esperamos o balão inflar. A parafina derretendo, soltava um cheiro e a cor azul de de pingos de fogo que caiam no chão. Ao meu primo mais velho foi dada a incumbência de fazê-lo subir. Ele apoiou levemente a boca do balão com as mãos e com pequenos impulsos para cima lançou até ganhar força e começar a subir. O ar quente dentro do balão e o vento completaram seu esforço. Naquela noite foi lindo, ele subiu, subiu e seguiu sentido leste até desaparecer nas nuvens e não conseguir ver mais. Ficamos felizes. Mais tarde, já debaixo do cobertor, fiquei pensando onde estaria agora o balão, a que altura já chegou? Na minha cabeça os balões não caiam; depois de alcançar a atmosfera terrestre eles cristalizavam.

Já faz alguns anos, os noticiários têm alarmado que fabricar, transportar e soltar balões é crime, pois os balões quando caem provocam queimadas em pastos, plantações e canaviais; e nas áreas urbanas caem sobre casas e até nas linhas de alta tensão. Então, eu te suplico, meu caro leitor: não solte balões! Faça como eu, guarde-os na memória.

Na minha cabeça eles ainda só sobem e não caem, nunca!; e nem incendeiam plantações. São milhares pelo céu da minha infância; nas escalas de grandezas que guardo do meu universo criança e diante dos meus olhos serão como noites sem fim... Balões não caem como estrelas cadentes, eles cristalizam no céu e viram estrelas de cor âmbar; aquelas que dizem ser planetas. Neste ano, quando junho chegar, vou me estirar na relva e mirar para o céu à noite toda, procurando estrelas e balões perdidos; e quando meus olhos forem atraídos para o leste eu verei meu velho balão. Ele estará lá, cristalizado.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2010.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Você já aprendeu a descascar laranja?


Gostaria de compartilhar com vocês a bela crônica escrita pelo meu mano Zeca. Esta crônica está no portal www.cronistas.com.br. Como já se tornou público, acho que o autor não se importaria de publicá-la novamente aqui. Vale a pena ler pelo conteúdo e liçoes de vida nas suas palavras.

Ei Ricardo, você já aprendeu a descascar laranja?

Dias desses estava eu lendo a crônica do Zé Ricardo sobre a descoberta que seu filho, fictício espero, fez dos antigos brinquedos dele, Ricardo. E comecei a pensar sobre as diferenças entre nossas infâncias, em especial dos nossos brinquedos. A minha geração, restrita é claro, ao mundo mais próximo que nos cerca, foi a última que teve o feliz privilegio de fabricar seus próprios brinquedos. Restrinjo essa observação ao mundo mais próximo de mim porque numa extensão maior a industrialização atingiu as pessoas em épocas diferentes. Da mesma forma que na época da minha infância já havia em muitos lugares crianças brincando exclusivamente com brinquedos industrializados, certamente hoje ainda há, em muitas partes do mundo, crianças fabricando seus próprios brinquedos. Eu mesmo, já ganhava brinquedos de loja no Natal, mas somente nessa época. E esses brinquedos duravam no máximo um mês; tempo mais que suficiente porque o interesse por eles, como em qualquer criança de qualquer época, não durava mais que 15 dias. O resto do ano nós mesmos fabricávamos nossos brinquedos. A matéria prima era a encontrada no dia a dia sendo a mais versátil um pedaço de ripa de madeira que podia se transformar num revolver ou num carro, ou mesmo num caminhão. A ferramenta principal era a faca de cozinha de nossas mães que nos intervalos entre as refeições se transformava de simples cortador de carnes e legumes em um cinzel digno de um Michelangelo, esculpindo madeiras e pontas de dedo. Ainda hoje, por conta dos golpes de faca que nem sempre atingia o alvo desejado, conservo com muito orgulho as cicatrizes e a ponta do dedo indicador direito assimétrica. Sendo eu canhoto, quem sofria esses golpes eram os dedos da mão direita. E de nossas hábeis mãos saiam pipas, peões, revólveres, carrinhos; estes bastantes toscos, é verdade, mas muito bem ornamentados pela nossa imaginação. Ah, sim, tinha também o cinto feito de embalagem de cigarro e que não servia para nada, mas era gostoso de fazer. O encanto da coisa era que de cada um deles nós conhecíamos, por assim dizer, a alma. Dê um brinquedo a qualquer criança e certamente, depois de um exame superficial, depois de explorar os limites do brinquedo, o passo seguinte será descobrir o que é que tem dentro do brinquedo. Nós sabíamos. Nossos brinquedos não eram feitos somente de madeira toscamente lavrada, de papel, de linha de costura ou mesmo de restos de folha de plástico. Sim, já havia material plástico, embora não na variedade que existe hoje. Em nossos brinquedos havia também o sangue de nossas mãos, havia o suor das longas horas esmerilhando a ponta do pião no cimento da calçada, havia a nossa criatividade em encontrar maneiras de, com tão pouco recurso, fazer algo que pelo menos se parecesse com o objeto desejado. O prazer que o brinquedo proporcionava depois de pronto era tão efêmero quanto o de qualquer outro; porém o prazer começava antes: iniciava-se na sua concepção e se prolongava pela sua execução. E nessas fases o prazer que sentíamos era, guardadas as proporções, o mesmo que sentiram um Miguelangelo, um Cellini, um Rodin. Assim já dizia Monsier de Montaigne: "... não há prazer conhecido cuja própria procura em si já não constitua uma satisfação. Ela liga-se ao objetivo visado e contribui muito para o resultado de que participa essencialmente. A felicidade e a bem-aventurança da virtude enchem-lhe as dependências e os caminhos desde o portão de entrada até os muros que lhe cercam os domínios". Bonito isso, não é não? Bonito e muito sábio. Todo mundo, especialmente cronistas, deveria ler Montaigne. È muito melhor, muito melhor mesmo, que Paulo Coelho. E não dá câncer. De todos os brinquedos o mais simples de fabricar era a pipa. Um pedaço de bambu, matéria prima relativamente fácil de se encontrar na época, para as varetas, papel de seda, que na falta era substituído por folha de jornal mesmo, grude de farinha de trigo e linha surrupiada da costura de nossa mãe. Tinha alguns de nós que comprava pipa pronta de outros ou comprava varetas prontas no armazém. Eu nunca admiti tal heresia. No máximo eu permitia que alguém participasse da fabricação das minhas. E o mais sofisticado de todos era a carretilha para enrolar linha da pipa. Ah, a carretilha. A única que consegui fazer era muito tosca perto da que alguns dos meninos tinham, encomendada por seus pais a algum marceneiro. Ao mesmo tempo que olhava com inveja essas carretilhas bem elaboradas, sentia por elas um certo desprezo por saber que não tinha sido feito pelo menino. A mesma inveja e o mesmo desprezo que senti pela figurinha carimbada do Mazolla que o pai de um garoto comprou para ele. Que graça tinha? Gloria mesmo seria comprar a bala, que se jogava fora tão ruim era o gosto, e encontrar o troféu dentro. Creio que muitos de vocês não entendem bem do que estou falando. Nem o que é uma carretilha de soltar pipa nem quem foi Mazolla. Perguntem a seus pais ou avós. Certamente, as cicatrizes nos dedos foram plenamente compensadas pelo prazer de ver algo idealizado por nós tornar-se algo real, como qualquer artista. E como recompensa adicional adquirimos certo talento em manusear objetos, ferramentas. Habilidade que foi negada aos meus filhos porque minha esposa, devo confessar que com a minha conivência, zelosa de seu dever de mãe de proteger seus rebentos, nunca permitiu que nenhum deles chegasse sequer perto de uma afiada faca de cozinha. A laranja era já entregue bem descascada a eles. E é por isso que até hoje eles não sabem descascar uma laranja.
Ei Ricardo você já aprendeu...?

José Maria de Oliveira, 56 anos, Engenheiro Mecânico - Natal/RN.