BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O ex-romântico


Neste esquisito, conturbado e desprezível ano de 2020 não temos muito o que extrair. Ele nos condenou definitivamente ao confinamento; ao recolhimento da vida e agora nos faz pensar o quanto nos custa a liberdade. (Os chineses já sabiam disso antes de espalhar o vírus.) Chego neste dezembro como um sobrevivente, como muitos que estão me lendo agora. Nada parecerá como este ano, nada. A cortina está se fechando, mas ninguém viu o espetáculo.

Volto aqui, a este Blog, para tirar a poeira da tela e as teias de aranha do teclado, na perseguição do tema único. Naveguei nas redes sociais este ano, exclusivamente no Twitter, e lá pinguei algumas notas, apanhando ideias e temas cotidianos; cortando palavras e abreviando outras para caber. E o tema único desapareceu, não veio. Não dava para pensar com galopantes acontecimentos diários que me arrastavam para lá e para cá. Um turbilhão.

Agora, acordo com isso na cabeça: falar sobre um "eu" que sobrou deste ano (e está aqui) e um outro que já fui um dia, que deixou de existir; e aqui me abro como uma janela para o amanhã. 

O Blog completou 10 anos, mas muito do que escrevi desde 2010 para cá mudou essencialmente em mim. Digo "ainda bem", porque eu comecei a década bem fechado em meu mundo; um mundo balizado ainda por ilusões, dentro da Matrix, sem percepção e tato da realidade. O romantismo nos condena aos sonhos. A vida é muito real para ser romantizada e não reparar que as guerras nem sempre são entrincheiradas, com tanques nas ruas, mas estão também no campo de batalhas das ideias, das mentes.

Talvez, porque naqueles anos, eu ainda não sentisse tanto as transformações do mundo e elas ainda não me feriam. Acreditava, contudo, nas mudanças naturais, sem interferências como o dia que vira noite e a noite que vira dia. Não percebia os organismos vivos, atuando dentro de uma deep state; obstruindo os caminhos da humanidade e, assim, interferindo no estado natural da vida humana, com o alvo único de desidratar a lógica humana e colocar dúvida na realidade. A prova é este ano de 2020. Os frutos podres estão brotando nas lavouras, de um semear que não vimos acontecer, porque estávamos romantizando demais a vida. Os algozes não dormem e nem mandam rosas. Adiante.

Numa palestra, o historiador (pensador?) Leandro Karnal chamou de sociedade falocêntrica, a sociedade dominada por homens. O que ele quis dizer com isso? O vídeo no YouTube é curto, mas pontual e claro: o ódio ao sexo oposto. Ele disse que o cavalheirismo é um modo de opressão do homem sobre a mulher. (Quis parar de ver desde aí, mas aguentei e fui até o fim. Eram só seis minutos.) Nem Simone de Beauvoir, no alto do seu feminismo, foi tão fundo em lançar na arena homens e mulheres, numa guerra de sexos estimulada por espaços e direitos. Ao trocar um pneu do carro, para uma mulher na estrada, o homem a condena ao fracasso, a sua fragilidade, mostrando sua incapacidade. Isso é o falocentrismo, citado pelo palestrante, como um reinado de machos que, na falsa ideia de proteger, na realidade, oprime. Foi o que disse essa entidade da intelligentsia.

Deixemos Karnal de lado, os direitistas nas redes sociais já debocham das suas teorias, onde parece que filosofa para um auditório do ensino médio. O que tento subtrair é onde ele quer chegar com isso. Ele, e muitos da intelligentsia, pregam a nova sociedade, numa eterna luta de classes, que agora já não é mais burgueses contra proletariados. Vale qualquer luta. "Ressignificar" — palavra progressista e nova — a vida dentro do espírito de uma nova sociedade para um novo homem, que a humanidade terá que experimentar, queira ou não. Bem, não quero fugir do assunto.

Volto para mim. Eu sempre retorno aos filmes que já vi, aos livros e crônicas que já li. A crônica "O ex-covarde" de Nelson Rodrigues — já compartilhei aqui no Blog e você pode ler aqui — é um desses textos que abrem uma janela na alma, rasgam o véu dos olhos. Um divisor de águas da vida. Morria ali um Nelson medroso e nascia um combatente aos pulhas, canalhas e ao sistema. Porque, diferente de muitos, tinha o dom de enxergar o mundo 30, 50 anos de distância.

Neste contexto, refiro a mim como um homem que passou dos 50 anos, que já não cai mais nas ciladas da vida romantizada e de um paraíso terrestre; e que nossas fantasias amorosas se tornarão a magia de um filme hollywoodiano um dia. O cristianismo, com os pés sempre no chão, nunca acreditou ou pregou que o paraíso começa aqui. Há uma vida nos esperando.

Ali, nos meus 14 anos, diferente de muitos dos meus amigos, eu não ouvia muito rock. O disco que furava na minha vitrola era "Horizon", dos Carpenters. O disco começa com Aurora e termina com Eventide. A mesma melodia com letras diferentes. Esse foi meu devaneio, onde o lado romântico borbulhava, com o olhar terno e esperançoso para um mundo que não tinha na vida real, só sonhos. Tudo em mim se encantava como aquela garota da escola, que usava minissaia e meia 3/4 branca.

Sei que vão dizer do meu signo. Que sou romântico por ser canceriano. Eu hoje posso dizer que sou um ex-romântico. Libertei, sai da Matrix para enxergar um mundo como ele é: amargo, com olhares de desconfiança e menos otimista. O mundo é uma receita de melancolia com momentos de felicidade. É preciso ver pela lente da realidade. A verdade, que agora persigo, me diz isso: a vida é dura, labutada e agora controlada por seres invisíveis, vigilantes do nosso dia a dia.

Cansei de ser romântico para ser autêntico. E isso não tem volta. Claro, aqui não mato o homem que há em mim, quando se refere ao objeto do amor. Explico. Outro dia, disse a uma pessoa que o jeito homem de ser, no amor, é muito diferente da idealização romântica. O homem, numa condição plena, ama sua mulher e família dentro do seu trabalho. Ele não é da paixão, das datas comemorativas, das flores. Ele é puramente do trabalho e tudo aquilo que ele se entrega para conservar sua família (seu amor) numa condição de bem estar. É doação, mais que inspiração romântica. 

Os que viveram essa transição da era rudimentar, sem computador, para a internet sabem bem o que é uma coisa e outra. Muito diferente dessa geração que já nasceu com o celular nas mãos. Eles são facilmente manipuláveis, enquanto nós acreditamos em alma, em brinquedos que nós mesmos fizemos. Eles são induzidos a pensar que livre expressão é o mesmo que cometer um crime de expressão, de ofensa. E por isso, vigiam os pais, o ambiente onde trabalham, as falas — censuram. Não percebem a manipulação que sofrem. Posto, eu não me anulo, não adulo, não me adequo e teimo e não ceder.

Mas o que há de tão assombroso neste século XXI? Para mim, a falta de Deus. Isso é o que há de pior. Uma propaganda maciça anticristã associada aos avanços da ciência fizeram do homem, que está aí vagando nesse mundo, um ser que não precisa mais de Deus, porque ele já se sente um. Ao assumir esse papel, é penetrado pelo poder de fabricar seus próprios corpos e mentes, governar o planeta (só olhando para o meio ambiente) e desafiar as leis da vida. A Igreja deixa de ter importância como fio condutor da moral e ética, e a nova geração já está adorando na internet seus novos deuses e guias espirituais. Malgrado, ser longevo, ter saúde não é garantia de que somos melhores. Sem a crença no Sagrado, empobrecemos como seres humanos. Cada vez mais tolos e fracos.

O ano 2000 está só há 20 anos daqui (de nós), mas parece muito mais longe. Isso é o que sinto. As transformações sofridas no mundo, nesse curto espaço de tempo, são bárbaras; piores que uma grande guerra. Theodore Dalrymple, em seus livros, fala dessa vida tóxica já corroendo nossos dias nos anos de 1990. Só um observador do mundo, com uma lupa na alma, poderia notar. A humanidade, ainda não. E agora sai todo mundo catando os cacos do chão, perdidos. Um vaso valioso se quebrou. Quem foi? 

"Tudo em volta induz à loucura, ao infantilismo, à exasperação imaginativa. Contra isso o estudo não basta. Tomem consciência da infecção moral e lutem, lutem pelo seu equilíbrio, pela sua maturidade, pela sua lucidez. Tenham a normalidade, a sanidade, a centralidade da psique como ideal. Prometam a vocês mesmos ser personalidade fortes, bem estruturadas, serenas no meio da tempestade, prontas a vencer todos os obstáculos com a ajuda de Deus e de mais ninguém. Prometam SER e não apenas pedir, obter, sentir, desfrutar. Prometam ser." - Olavo de Carvalho

Rosebud, rosebud... Foi sussurrando essa palavra que mr. Kane terminou sua vida. Um homem de riqueza e poder, como num lamento à vida que deixava, cerrou seus olhos com essa enigmática Rosebud. No fundo, ao fim, toda uma vida exacerbada e de poder, ele resumiu naquele trenó da sua infância roubada. Se alguém ainda acha que pedir comida pelo iFood ou jogar PlayStation são avanços, então não entendeu nada da vida; não sabe o valor intrínseco que há em construir e usar, com liberdade, o próprio carrinho de rolimã. Rosebud. (Veja o filme "Cidadão Kane", 1941, com Orson Welles, e compreenderá que você também procura o seu trenó.)

O romantismo, que vimos nascer no século XVIII, como movimento artístico, literário e comportamental, já virou pó na estante desses novos dias. Hollywood já não produz mais os clássicos de paixões platônicas. Não há mais pinceis em telas nuas; não há mais trilhas sonoras que vão da aurora ao entardecer. Não há mais Shakespeare sobre o criado mudo. Não há mais o amor cortês e o cavalheirismo (com ou sem Karnal). Não há o que sugar do bagaço da fruta. O ser que agora habita é oco, sem alma e sem emoção, como a cara plástica de Mark Zuckerberg.

A vida, sumariamente, como vimos ainda alguns anos, se esfacela, virando nevoeiro na esteira do tempo. O mal continua agindo nas sombras e becos do mundo. Os poucos casais, quando se juntam dentro dos apartamentos, estão sem planos e tristes. Vão inebriados ao pet-shop comprar brinquedos, caminhas e chiqueirinhos de fazer xixi. Quando isso ocorre, com sucesso, é como uma criança que aprendeu a andar para eles. Como ser romântico com tudo isso?

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Dezembro  de 2020.