BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A estagiária do calcanhar sujo

Este mês foi produtivo aqui no Blog, muitas crônicas. E ainda sobrou um espacinho para uma de Nelson Rodrigues. O nome original é "Os setenta anos de Gilberto Freyre" e está no livro "O Reacionário". Mas por que essa crônica, especialmente? Outro dia, uma seguidora do Facebook perguntou sobre a origem do termo "estagiária do calcanhar sujo". A expressão surgiu nesta crônica, de 1970. O mais interessante de Nelson é que ele continua atual, porque os calcanhares sujos continuam na nossa imprensa, diariamente.

Nem sei por onde começar. Digamos que. Eis a verdade: estou naquela situação de Carlos Drummond de Andrade ao oferecer seu livro a Marques Rebelo. Na dedicatória, escreve o poeta nacional: “A Marques Rebelo —sem palavras —Carlos Drummond de Andrade.” Ao que eu saiba, poesia é uma arte de palavras. E se um poeta não as tem, poderemos talvez chamá-lo de antipoeta. Na melhor das hipóteses: antipoeta.

Felizmente, o bom Carlos estava usando apenas um truque de sua prudência mineira. Não queria elogiar o romancista e o conseguiu. Eu diria que a minha situação é parecida: faltam-me palavras para começar esta crônica. Queria escrever sobre a socialização do homem. Digo mal. Não é bem do homem. O correto seria dizer asocialização do idiota.

Não sei se me entendem e tentarei explicar. Antigamente, o idiota era o primeiro a saber-se idiota; e babava fisicamente na gravata. Não andava, Como agora, em massas, unanimidades, maiorias, assembleias etc. etc. Do berço ao túmulo, ele assumia a sua irreversível miserabilidade de idiota. O mundo dependia de sete, oito, dez ou vinte individualidades, fortes, criadoras, sim, individualidades que pensavam por nós, sentiam por nós, decidiam por nós.

Embora minoritários, os melhores faziam o nosso mundo, inventavam a nossa realidade, ditavam os nossos valores. Até que ocorre o maior acontecimento do século XX que foi, exatamente, a socialização do idiota. Pela primeira vez o idiota se organizava. Ele sempre fora, como indivíduo, o grande impotente. Deixou de ser indivíduo. Impessoalizou-se; dissolveu-se no coletivo. Aqui no Rio, cinco autores fizeram uma única peça. Até o amor que, sempre, sempre, exigira a solidão do casal, o amor, dizia eu, precisou socializar-se também.

Há pouco, trezentos mil jovens se juntaram numa ilha inglesa. Trezentos mil jovens, 150 mil casais. Foi uma bacanal inédita na história humana. Um dos beatles casou-se. Queria fazer sua noite de núpcias na frente das câmaras e microfones. Não bastavam o noivo e a noiva. Era preciso que cinco, seis, sete milhões de telespectadores invadissem a intimidade do casal.

Ai daquele que, num desafio suicida, tenta individualizar-se. Vocês se lembram das greves estudantis da França. Os jovens idiotas viravam carros, arrancavam arrancavam paralelepípedos e incendiavam a Bolsa. E, então, o velho De Gaulle falou aos idiotas: “Eu sou a Revolução.” Que ele fosse a Revolução, era o de menos. O que realmente enfureceu o mundo foi o eu. Era alguém que queria ser alguém. Um dos maiores jornalistas franceses escreveu um furibundo artigo contra aquele espantoso orgulho. Aquele guerreiro, de esporas rutilantes e negro penacho, foi o último eu francês. Os outros franceses são massas, assembleias, comícios, maiorias.

E há o que se finge de idiota para sobreviver. Muitos não entendem por que professores, sociólogos, sacerdotes, cientistas —vivem a fazer rapapés, sim, humilhantes rapapés para os lorpas e os pascácios. Eis um mistério nada misterioso. Ou o sujeito bajula os idiotas ou não terá onde cair morto.

Por que é que estou dizendo tudo isso? Vejamos: outro dia, Gilberto Freyre completou setenta anos. Eu me lembrei de Hugo, Victor Hugo. No seu septuagésimo aniversário, a França parou. Toda Paris desfilou diante do poeta. Rosas, dálias, lírios, as flores mais inimagináveis foram atiradas a seus pés. Naturalmente que a maioria dos manifestantes eram os idiotas, não socializados, não organizados. Mas vejam o abismo que se cavou entre as duas épocas. Hoje, os idiotas, instalados em sua onipotência numérica, não concederiam ao grande homem um vago e reles bom-dia.

E assim Gilberto Freyre fez setenta anos debaixo de um silêncio brutal. Tive o cuidado de ler os jornais. Não vi uma linha. Minto. Vi num dos nossos jornais uma nota, espremida num canto de página. Quem a redigiu teve vergonha de elogiar um dos homens mais inteligentes do Brasil, em todos os tempos. Eis o que eu queria dizer: está em seríssima crise vital o país que não reconhece seus maiores homens.

Um companheiro ia passando e eu o chamei: “Olha aqui o que merece Gilberto Freyre.” O companheiro passou a vista e rosna este comentário; —“Por essas e outras é que o Amazonas tem menos população do que Madureira.”

Não é a primeira vez, nem será a última, em que falo de Gilberto Freyre e do seu exílio. Em nosso tempo, o Brasil tem sido o exílio do extraordinário artista. Os jornais não falam no seu nome, e vale a pena explicar, para os menos informados, esse mistério. A festiva infiltrou-se em toda a imprensa brasileira. Outro dia, passei num velho órgão. Enquanto esperava um colega, vi uma estagiária, dos seus 18, 19 anos, de sandália e calcanhar sujo. Estava lendo e titulando telegramas. Súbito, pega um dos telegramas, amassa-o e o atira na cesta. Diz para os lados: Gilberto Freyre não é autor que se cite.”

Aí está, num simples gesto e numa simples frase, a Operação Cesta. Os membros da festiva fazem uma vigilância feroz. Qualquer notícia que não convenha à esquerda vai para a cesta, sumariamente. sumariamente. Para o leitor, que nada sabe dos bastidores jornalísticos, pode parecer inverossímil o poder de uma estagiária de calcanhar sujo. Inverossimilhança nenhuma. Reparem como o editorial é uma coisa e o resto do jornal outra. A direção opina no editorial. O resto do jornal fica por conta da infiltração comunista.

No caso de Gilberto Freyre, as esquerdas têm-lhe ódio. Portanto, não se pinga uma palavra sobre a sua obra gigantesca. Falei no seu exílio na própria terra. E realmente ele é muito mais notícia lá fora. Escolham qualquer país europeu. Na Itália, França, Inglaterra, Alemanha, sua presença intelectual é muito mais poderosa do que aqui. Sim, o estrangeiro é muito mais sua casa do que o Brasil.

Isso só acontece num país que perdeu a sua consciência crítica. Bem sei que a “rebelião dos idiotas” é um fenômeno universal. Mas na Europa, nos Estados Unidos, todas reconhecem a dimensão mundial de sua figura. Ao saudá-lo, a Universidade de Sussex proclama que, depois de sua obra, o “Brasil tornou-se mais brasileiro”. Ao passo que, em nossa terra, as meninas de calcanhar sujo e os barbudos da festiva querem liquidá-lo pelo silêncio.

Tudo porque, na sua formidável solidão, não transige com as esquerdas. E, ao mesmo tempo, quantas mediocridades têm uma delirante cobertura promocional. Mas vejam: nos seus setenta anos, Gilberto Freyre fez uma obra para sempre. Daqui a cinco anos, os idiotas que hoje o negam ou, pior, que fingem esquecê-lo, vão desaparecer como se jamais tivessem existido. Daqui a duzentos anos, Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo; e sua figura terá a tensão, a densidade, a atualidade da presença física.

Na minha juventude, os literatos patrícios perguntavam uns aos outros: —“Quando sai tua Guerra e paz?” E todos respondiam: “Estou caprichando.” Mas a Guerra e paz não saía. Eu só imaginava o escândalo que seria se, um dia, explodisse, no Brasil, uma súbita Guerra e paz. Até que, há pouco, fui ler todo o Gilberto Freyre. Li e reli. Fiz a enorme descoberta. Sua obra tem o movimento, a profundidade, a variedade do romance tolstoiano. 

O Globo, 28/ 3/ 1970

Postado por Antônio de Oliveira / agosto de 2017

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O ex-covarde

Nota: Trago ao Blog um dos melhores textos de Nelson Rodrigues. Extraí do livro de crônicas que acabei de ler "A cabra vadia". Nelson Rodrigues é delicioso de ler. Sagaz, inteligente, contemporâneo e cheio de bom humor. Suas histórias do cotidiano, misturam persanalidades vivas (da época) com outras imaginárias, como a cabra vadia no terreno baldio, a vizinha gorda e o Palhares (o canalha). Aproveitem Nelson, ele é excelente! 


Nelson Rodrigues

Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.

O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.

Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo".

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".

(14 de Janeiro de 1968)

RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10. 

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro  de 2014.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Ainda Marilyn – Uma crônica antiga

Durante uma noite, quando navegava pela rede, descobri – sem querer - um texto escrito três dias depois da morte de Marilyn Monroe (a pronuncia certa é “monrôu”). Essa crônica, intitulada apenas “MARILYN”, foi publicada no Caderno B do Jornal do Brasil no dia 08 de Agosto de 1962 (ela morreu dia 5). Seu autor é o cronista José Carlos Oliveira. Desconheço seus textos, mas este vem bem de encontro ao que escrevi sobre ela. O mito, a mulher, a sensual Marilyn Monroe.
MARILYN

Antes de mais nada era um corpo, não há dúvida. Um corpo tremendamente perturbador. Um corpo de formas opulentas, sempre na fronteira da obesidade: corpo de mulher-fêmea, acrescido de um defeito particularmente feliz nos joelhos: quando ela andava, só pensava em sexo, sexo, sexo. A pele clara e roliça descia vertiginosamente pelos decotes, deixando entrever a totalidade do corpo envolto em roupas colantes, e então ninguém mais pensava em outra coisa que não fosse sexo. Mas era, além disso, um sorriso maravilhoso, ao mais belo sorriso que jamais houve. Quando Marilyn sorria, a perturbação do espectador aumentava. Ela sorria com a língua entre os dentes – dengosa, maliciosa, pura dádiva. Era a feminilidade em pessoa. A alegria em pessoa.

Ela não teve infância. Nem pai, nem mãe, nem família. Cresceu como enjeitada em sucessivos lares. Não há motivo para atribuir à publicidade a informação obtida no momento supremo da glória: - violaram-na aos sei anos de idade. Há um detalhe praticamente infalível na biografia dessas deusas da beleza, sejam atrizes ou call-girls, de acordo com o inquérito e com os depoimentos de psiquiatras: - nos Estados Unidos, a violação de meninas bonitas ocorre com a assustadora frequência. Humbert Humbert, atormentado pelo encanto da nymphets, não é apenas um momento privilegiado do romance moderno, mas a revelação de um desejo que está presente na aventura íntima do cidadão norte-americano, desejo ara o qual Lolyta provavelmente representa um veículo liberatório eficaz.

Marilyn encontrou na história do cinema pela porta do menor esforço, isto é, tão logo descobriram que tinha corpo. E tão logo decidiu revelar-se na totalidade sua pessoa, isto é, corpo e espírito, sensualidade e tormento, ânsia de felicidade e desconforto no pináculo da fama – humana, frágil, sedenta de afeto, incompreendida e solitária – então, foi deixada em paz. Naquela paz desconfortável, naquela pobreza profunda da vida rodeada de riqueza e mentira. Mas eu pensei muitas vezes que o ser humano é indestrutível, porque toda a vergonha daquela infância e, mais tarde, o selvagem mecanismo que cria e devora os ídolos modernos, nada disso conseguira destruir o maravilhoso e inesquecível sorriso de Marilyn. Agora vejo que estava enganado.

Por José Carlos Oliveira
Jornal do Brasil – 08 de agosto de 1962

Sobre o autor:
José Carlos Oliveira (Vitória, 18 de agosto de 1934 - Vitória, 13 de abril de 1986) foi um escritor brasileiro. Celebrizando-se por suas colaborações diárias no Jornal do Brasil para onde escreveu por mais de duas décadas, tornou-se um dos grandes cronistas brasileiros do século XX, mas praticou também o romance e o memorialismo.

Posta por Antônio - junho 2011