BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Queima aqui dentro


O domingo de inverno descortinava. O sol já era moço quando a neblina baixou insinuante na minha varanda, ainda sem plantas; e era domingo da final de Copa do Mundo, no Brasil. Café com pão, notícias, futebol, frio, meias... E veio com tanta coisa junto ardendo no peito, como vem saudade em notas musicais pingando numa partitura, desenhando uma velha canção. Minto, vem orquestra.

Às vezes, desperto meio assim, vocacionado para tempos idos. Você vai me perguntar, mas é sempre saudade de alguém. Eu tenho saudade também de lugares, trajes, mobília, costumes, modos, retratos, ambientes, paisagens, aromas; tempos doces e despercebidos quando vividos; que não vimos passar, porque estávamos distraídos sendo felizes; e quando estamos assim, em êxtase, estamos construindo a saudade no futuro. A felicidade presente é a moldura e tudo que contorna a saudade no futuro — lembranças a ser contada ou ser só sentida. Ah! E tenho saudade, é claro, com canções de fundo, como uma trilha sonora.

Não sei dizer, precisamente, quantas vezes já sonhei com a saudade. Uma vez, lá nos meus 15 anos, tive um longo sonho — ainda dormia oito horas sem despertar — que viajava ao passado da rua, do bairro onde morava: olha a casa da minha avó como era, de fachada amarelada e jabuticabeira carregada; olha a rua de terra, com cheiro de chuva; olha a igreja matriz; olha a amoreira orvalhada. Eram nítidas tais visões, sentidas em pele arrepiada. Lembro ter passado aquele dia assim: vagando de um canto ao outro, nostálgico e sobre nuvens.

Mas eis o que queria dizer. A música me toma inteiro por nostalgia, como uma carruagem do velho oeste. Terminei o sábado, vendo uma programação na TV. E por ela, uma canção nostálgica, de uma voz me chamou atenção. E, súbito, me exaltei. Por que a deixei passar esse trem na estação? Por que não ouvi essa moça cantar, quando tinha essa voz? Por que ela sumiu? Por que as lindas canções passam ligeiras, como passarinho que pousa na janela? O que me ocupava tanto a vida, que não senti sua voz penetrar nos meus instintos? Apunhalei-me em vão, já era tarde para viver...

Fui à pesquisa da internet. Ela ainda canta. Aos 40 anos de idade, Patrícia Marx, já não é mais aquela menina precoce, só Patrícia, mas ainda conserva a voz doce de rouxinol, afinadíssima em diapasão. Comemorando 30 anos de carreira (ela começou nos seus 9 anos), ela tentava emplacar um CD/DVD cantando soul musics e baladas que marcaram sua, já longa, carreira. Não estava conseguindo, porque o mundo de hoje não reverencia o seu passado, mas sim, o desrespeita, desaconselha e alija.

Fucei mais e deparei com uma entrevista de 2013, que ela concedeu ao portal G1, falando sobre seu novo álbum. Assim como Guilherme Arantes, ela desabafou dizendo que não tinha mais espaço para cantar. Paga-se pouco e shows são cancelados em cima da hora. Já pensava em um plano B: virar professora de canto lírico. Uma pena. Essa moça tem talento; e não foi à toa, e por graciosidade, que foi eleita a melhor cantora em 1994/95, com 20 anos de idade. Fiquei triste quando terminei de ler a entrevista. Fechei o tablet e me enrolei nas cobertas sem querer ver mais nada. Veio a saudade (como canções) e uma vontade de voltar à 1994 e dizer-lhe: "faça tudo agora, aproveite, porque o futuro te abandonará, será ignorada, desrespeitada. Ele se importará só com lixos culturais que lá existem". Fecho aspas.

Acho que houve exposição máxima e exploração. Ela é daquelas precocidades raras, que descobrem por aí e depois se esquecem, porque isso é o mercado e aquele era o momento: a criança; combinando imagem, ingenuidade, graciosidade e talento nato. Assim foi a carreira de Shirley Temple, Judy Garland e Macaulay Culkin. Crianças talentosas exploradas ao sumo, atoladas no sucesso, e depois jogadas na sarjeta do mundo.

Então me lembrei de Guilherme Arantes. Em 2013, ele também desabafou nas redes sociais. Sentiu que as pessoas (seu público) o cobravam por aparecer mais na mídia, fazer mais shows. Ele disse que também era seu desejo, mas sentiu que não havia mais espaço, mesmo seu último álbum sendo eleito o melhor disco de MPB, pela revista Rolling Stones. Não há espaço no mercado audiovisual e na grande mídia, para um dos maiores cantores e compositores dos anos da minha e da vida de muita gente. No seu desabafo parecia quebrantado e eu fiquei com ele, como agora fiquei com Patrícia.

Senti que precisava "consolá-lo" de alguma maneira, e não me confortaria só escrever algo na sua página no Facebook, como: "Tamo junto cara!". Busquei algumas lojas virtuais e não achei nenhum daqueles discos antigos — não há muito sebos virtuais. Acabei adquirindo dois álbuns recentes e intimistas, onde ele faz uma releitura dos seus grandes hits. Uma mão pequena a quem nossas memórias devem muito.

Tenho uma frase, que recorro sempre, para esses momentos de choque de gerações: "O mundo deveria ter acabado no pico dos anos de 1980. Assim, terminaríamos nossa jornada mais feliz e no auge". Tenho a sensação que nada do que se fez depois foi bom. Tudo foi se esvaindo, se desprendendo, desmilinguindo, esfacelando. Também temo, assim eu li por ai, que a vida real termine nos próximos anos (!). Estaremos, de uma vez, desfazendo o compromisso com uma vida (como ela é); e suportando, como seres rastejantes passivos e infelizes, uma vida virtual, sem trocas de olhares, carinhos e alianças. Que assim não seja! (fazendo já nome-do-Pai). Que Deus faça o melhor antes.

Veio-me agora.  Imagine, assim, um terminal de aeroporto num ponto qualquer do planeta, com voos diretos (sem escala), e um painel anunciando a próxima partida: "PAST"; ou outro apontando: "FUTURE" (O passado é a verdade que vivemos.) Divago. Não, ainda não inventaram alguma viagem que pudéssemos organizar sentimentos com tempos, malas e pessoas afetivas; de poder somar coisas vividas com outras sensações ainda não passadas. Entrar num voo que nos leve onde deixamos o "tudo-de-bom", o pote de ouro do arco-íris e sem desperdício de vida. Além do horizonte perdido das nossas geleiras frias, talvez desvende um paraíso, sem tempo e morte, assim Xangrilá ad aeternum.  E se a morte for isso: visitar, com o tato e todos os sentidos, o que foi bem e bom, que seja esperada com aplausos de um estádio lotado. Cheio de seres humanos alentados, esperançosos, como eu, com vontade de viver só o que vale a pena viver. 

Por enquanto, como diz aquela canção de Patrícia, só queima aqui dentro.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2014.

sábado, 6 de agosto de 2011

A era do rádio


Vi recentemente o novo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris”. Saí do cinema recomendando para todo mundo, me entusiasmei. Allen tem essa coisa de tratar o real e o imaginário sob o mesmo prisma; seus personagens fazem essa transgressão sem nenhum temor – vão e voltam; entram e saem. O que torna a trama uma viagem sem fim. Esta me tocou fundo; entrou  pelo túnel do tempo, com o olhar no passado sob as noites da cidade luz.

No filme, traz à Paris – a fim de colher inspiração – um escritor de roteiros para filmes americanos, Gil Pender, vivido por Owen Wilson; ele está escrevendo seu primeiro romance. Sua noiva Inez lhe faz companhia na viagem, com o propósito de viver noites maravilhosas na cidade luz. Ele é obcecado pelo passado, crendo que tudo que foi feito e quem existiu lá, era bem melhor. Descreve também ser um adorador das chuvas que molham seu corpo, sem nunca se importar em carregar uma “umbrella”. Numa dessas noites de embriaguez, sozinho, ele é convidado a entrar num Peugeot antigo, indo parar numa festa. Na verdade, aquela carruagem de rodas sem cavalos, o conduz de volta à Paris dos anos de 1920, onde irá encontrar com personagens ilustres e pelos quais admirava: Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Cole Porter, Salvador Dali, Scott Fitzgerald... Ainda foi agraciado por conhecer Adriana, a sedutora mulher – uma ilustre desconhecida –, por quem ficou apaixonado. Mas, qual a mensagem do filme?

Esperei quase o final do filme para decifrar, ou perceber a mais clara das mensagens que surdiu. Pode haver uma obsessão, mas nunca poderemos dizer que as melhores coisas da vida ficaram no passado, que vivemos ou não (imaginamos). No passado que voltarmos, outras pessoas que lá vivem, também acharão outros passados melhores - foi meu insight. Ele queria se auto afirmar sobre o que escrevia, dando seus manuscritos a esses personagens, com o intuito de receber elogios e confirmação do grande escritor que deseja ser - justificando suas viagens noturnas. Para ensejar sua aventura, ele se ajeita mesmo é com Gabrielle, a moça que vendia disco vinil na praça; e tal, como ele, não se importava em tomar chuva. Fica a dúvida, se ela era do seu presente, ou veio do futuro para encontrar e amar o grande escritor: Gil Pender.

Já faz tempo, tenho trocado o hábito de ver TV por ouvir rádio, quando me levanto. Gosto de acordar e começar o dia com café e notícia. O rádio ainda é uma companhia e continua a encantar; percebi que ele faz nossa imaginação fluir, penso com ele e personifico as vozes que ouço. No dia, vejo garis que trabalham solitariamente varrendo as ruas e os parques da cidade com o radinho no bolso do macacão – a espantar solidão. A locução do futebol pelo rádio é inigualável, dinâmica e emocionante. O mesmo jogo que vemos pela TV, só tem graça se for completado pelo som do rádio. Como os mais antigos diziam da locução de futebol, o jogo é irradiado. Deduzo, então, que o rádio não é do presente, vem do passado; daquele que não deixamos morrer; daquele passado que sobreviveu ao mundo carregado de mudanças e outros meios mais velozes de comunicação. Como nem a TV - o rádio com imagem -, colocou o rádio no passado distante – obsoleto –, então, nada mais irá substituir o prazer que suas ondas criaram em nós.

Antes da chegada da televisão em nossos lares, era pelo rádio que nossos antepassados adoçavam sonhos e ilusões. Dou minha explicação para o time do Flamengo ter a maior torcida do Brasil: a rádio Nacional era a única rádio que transmitia para o Brasil todo – década de 1940 – e irradiava somente os jogos do campeonato carioca. Junto vinham as notícias, radionovelas e programas de humor.

A rádio Mayrink Veiga – RJ foi precursora do melhor programa humorístico das décadas de 1940 até 1960. Está no anuário de 1950: naquela época, a rádio Nacional detinha as maiores estrelas do rádio como Orlando Silva, Francisco Alves, Silvio Caldas, Emilinha Borba; entre os dez melhores programas, nove eram exibidos pela Nacional, mas somente um programa era da rádio Mayrink Veiga – o humorístico PRK-30 -; com o prefixo de uma emissora "de ondas longas e compridas, curtas e encolhidas". O maior show de humor já feito no rádio no Brasil estreou nas ondas da rádio carioca em outubro de 1944. Para muitos, o maior programa de rádio já feito até hoje. Sendo disputado por outras emissoras, passou, posteriormente, para a rádio Tupi-RJ, de Assis Chateaubriand, até findar em 1964. Foram exatos vinte anos de PRK-30 e de muitas gargalhadas no ar.

Lauro Borges e Castro Barbosa
Tive oportunidade agora de conhecer e ouvir as célebres piadas criadas pelos seus apresentadores Lauro Borges e Castro Barbosa. Tudo ainda muito hilário, cheio de deboche, irreverência, improviso e criatividade. Lauro Borges criou 28 personagens ao longo de sua carreira no rádio. É fato, muitos dos humoristas que hoje conhecemos pela TV, como Chico Anísio, fizeram escola ouvindo PRK-30.

O rádio os imortalizou, como aqueles anos de ouro. Depois, com a chegada da TV, eles foram parar nas emissoras da época e aquela coisa do rádio, da imaginação se perdeu. Lauro Borges se suicidou em 1967, quando descobriu um câncer; Castro Barbosa faleceu em 1975. O humor deve ainda muito a eles. Se pudesse, viveria aquela época, só para ouvir PRK-30, como uma volta no tempo: "Bléim! Ao oubir esta suabe gongada, entra no ar, como se fosse uma barbuletinha dourada a PRK-30!...”.

Entrei num Peugeot antigo agora também, eu sei, mas foi bom...

Voltando a Woody Allen, ele dirigiu outro filme que se chamava “A era do rádio”, mas é só coincidência com o que acabo de narrar. Tudo o que nos faz melhor hoje (não somos frutos de nós mesmos), vem dessa raiz do passado que, por vezes, nos incita a voltar com os olhos e ouvidos mais atentos a tudo que nos trouxe até aqui; e assim podermos ser mais puros, essenciais, compreensivos com o presente e esperançosos com o futuro. Como o personagem do filme, podemos achar que tudo e todos eram realmente melhores no passado; até descobrir que outros viajantes do tempo pensam como nós. Não há nada de errado com a linha do tempo, certo com as lições que trazemos para a vida.

Era como um livro de Ernest Hemingway; poderia ser como um quadro de Picasso, ou como um filme de Luís Buñuel, ou quem sabe, uma música de Cole Porter; mas era a PRK-30, uma obra de arte que o rádio eternizou, sem tempo de padecer. Por noites, não me deixa dormir ou embalam involuntariamente meu sono, até me levar a dar boas gargalhadas pelo canal do inconsciente, dormindo. PRK-30 veio até mim pelo dial do passado, e é tudo de bom!

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / agosto de 2011.