BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
Mostrando postagens com marcador vida. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador vida. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 2 de junho de 2020

Meu "sunscreen"

Ao completar mais um ano de vida (no próximo 09 de julho) — em que pese este momento que estamos vivendo de mundo paralisado —, sento para fazer uma breve análise e retrospectiva da minha vida até aqui. São fragmentos, lembranças, histórias, acontecimentos e percepções que recolho no tempo e no espaço, e tento apontar, agora mais maduro, para um caminho que sinto que vale a pena seguir. Assim, deixo aqui esse receituário de vida — ousadia — para quem quiser. Conselhos? Não. Posturas, quem sabe, por experiências que passei e outras que não vivi, mas a vida me mostrou (com algum arrependimento) em outro tempo. Quiçá, eu volte, daqui alguns anos, com outro olhar. Isso seria a vida perfeita? As receitas nunca são seguidas à risca e não existe vida perfeita num mundo de imperfeições. Mas para mim é a luz mais clara que surge e, como sempre faço, escrevo para mim muito mais que para leitores. Assim sendo, use protetor solar, mas lembre-se que há outras recomendações:

Escolha pessoas boas para estar ao seu lado, compartilhar ideias;
Faça amigos que agregam valores;
Não precisa ter muitos, mas poucos e bons amigos;
Aproveite a juventude, porque ela não tem volta;
Gaste energia, sim, mas tente ser mais maduro que sua geração é;
Beba mais água do que refrigerante;
Beba moderadamente sua cerveja ou vinho;
Coma moderadamente, sem desperdiçar comida;
Não use drogas, nem por experimento;
Respeite os mais velhos, independente se eles são seus parentes;
Dê lugar aos velhos dentro do ônibus, no metrô, na igreja;
Se for homem, seja gentil com as mulheres;
Se for mulher, reconheça o bom homem pelos seus gestos;
Pare tudo na vida para ouvir seus pais, sempre!;
Ame seus pais enquanto ainda vivem;
Sua família será sempre seu refúgio, seu porto seguro;
Dê valor às tradições e aos ensinamentos herdados;
Antes de emitir sua opinião, pense se há verdades nela;
Para distâncias curtas, ande mais a pé do que de condução;
Pratique exercícios ao ar livre;
Aprenda a dançar e a nadar;
Tome os remédios que seu médico lhe receitar;
Cheque sua saúde regularmente;
Faça mais viagens procurando a cultura do lugar e não fotografias;
Se puder, faça uma longa viagem de trem;
Busque a alta cultura. Ainda existem boa literatura e boa música;
Adquira conhecimento, sempre;
Leia livros que possam ajudar a compreender o mundo;
Aprenda um outro idioma. (Eu recomendo o inglês);
Busque a verdade a qualquer preço;
A liberdade é mais importante que o pão, já dizia Nelson Rodrigues;
Veja filmes de romance, desses que tudo termina bem;
Complete e guarde seus álbuns de figurinhas das Copas que assistiu; 
Seja politicamente incorreto, mesmo que o mundo diga ao contrário;
Aprenda a falar em público;
Use o dicionário quando tiver dúvida. Escreva corretamente;
Acredite num Deus único, sagrado, verbo encarnado e salvador;
Ore a Deus todos os dias pelos dons da vida;
No meio de suas orações coloque seus inimigos;
Frequente uma igreja e exercite a sua fé. Você vai sempre precisar dela;
A noite de Natal é a melhor das festas;
Você não vai salvar o mundo, mas pode ajudar alguém próximo;
Não acredite em homens salvadores da humanidade;
Não dê trela a comportamentos só por que são modernos;

(Cansou? Tem mais.)

A felicidade não é o objetivo desta vida;
A vida tem frustrações e você precisa conviver com elas;
Trabalhe com afinco e sem reclamação;
Não pare de estudar e terá melhores oportunidades de emprego;
Se deseja ter seu próprio negócio, seja leal e justo;
Tenha equilíbrio financeiro e não se escravize com dívidas;
Não queira ter mais do que possam suportar seus ganhos;
Use a razão para decidir, sempre;
Não planeje muito seu casamento. Comece com poucas coisas;
Case-se com alguém que ame você na mesma proporção;
Lute pelo seu casamento, mesmo quando tudo parece ruir;
Tenha filhos e os eduque desde o nascimento;
Quando estiver com seus filhos, esqueça o mundo e seus problemas;
Seja para seus filhos o melhor pai/mãe e nunca o melhor amigo;
Encoraje seus filhos para a vida;
Solte da mão de seus filhos quando sentir que eles estão prontos;
Se puder, tenha uma casa com um jardim na frente e quintal;
Cuide e trate dos animais, sem humanizá-los;
A natureza foi criada para servir ao homem e não ao contrário;
Acredite no bem das pessoas;
Vigie sempre o mal ao seu redor;
A despeito do que dizem, dê importância ao passado e suas lições;
Durma sem preocupações. A cada dia já basta a sua;
Acorde sempre cedo, aproveite e faça render o seu dia;
Sei que é lugar comum, mas não acredite em almoço grátis;
Em algum momento, a solidão será sua melhor companhia;
Quanto menos você esperar, irá topar com a morte de alguém querido;
Não se preocupe com o medo. Ele estará em todas as fases da sua vida;
Peça perdão. Perdoe a si mesmo e alcançará a paz;
Por muitas vezes, você não poderá voltar atrás por um arrependimento;
Não discuta, converse;
Você irá magoar alguém em algum momento;
Você será magoado por alguém em outro momento;
Cuidado ao falar dos seus sucessos e dos fracassos;
Perceba a inveja. Lembre-se que ela também é admiração;
Nunca negue suas origens, principalmente se ela for pobre;
Não seja vítima, mas protagonista de sua história;
Lute pela justiça, apoie quem a defende;
A sensação de incompletude? Todos nós nascemos com ela.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista /junho de 2020

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Além das montanhas

(Comecei um novo texto sobre o bem e o mal, mas como aquele comediante Costinha, parei o causo no meio para contar outro que me pegou mais inspirado. Depois eu volto.)

Eu ainda subia em árvores quando estreou nos cinemas o filme Horizonte Perdido” (muitos anos já se passaram), e, como muitos outros, só fui ver tempos depois, quando adquiri grandeza, entendimento e gosto apurado. O filme é homônimo do livro de 1933, do britânico James Hilton. Acabei de ler o livro, mas o filme já  havia me trazido antes perguntas (algumas sem respostas); tudo que me levou numa viagem enigmática a um lugar distante e perdido nas montanhas, ao tempero de belas canções de Burt Bacharach. Lua azul (Karakal).

(O livro tem uma narrativa mais detalhada e um final diferente do filme. As minhas questões, porém, são as que o filme me deixou.)

Três anos atrás, quando vasculhava uns filmes completos no YouTube (esses de domínio público), deparei com o Horizonte Perdido. Vi as primeiras cenas, sem saber do que se tratava, e de cara já gostei da música. Baixei o filme, com uma qualidade ruim, diga-se de passagem, mas assisti atento e emocionado com sua mensagem sutil; depois a contribuição das belezas de Olivia Hussey (Romeu e Julieta) e Liv Ullmann. Há algo surpreendente. E uma pergunta incomoda ao espectador: foi sonho ou realidade?

Depois da queda do avião, um grupo de cinco pessoas (no livro são quatro) fica perdido nas montanhas nevadas do Himalaia. Ali, longe da civilização, Conway e seus companheiros estão entregues à sorte. Mas, antes que pudesse bater o desespero, são surpreendidos por uma expedição que passava (ocasionalmente?) por ali. Depois de lhes darem alento, aqueles andarilhos oferecem agasalhos e sapatos adequados para a neve. Mais do que isso, aquele guia, num gesto acolhedor, também lhes oferece abrigo num mosteiro, muito além das montanhas. (Eles não sabiam o que encontrariam.) 

Horas e horas de longas caminhadas e vento forte, eles chegam. Ao avistarem aquela paisagem de floresta muito verde e construções como uma vila medieval — ao avesso de tudo do outro lado da montanha —, percebem que estão num lugar paradisíaco, onde a água cristalina jorra das colinas, o clima é ameno e a vida é lenta como será longa.

Shangri-la era um paraíso, de fato. Naquele mosteiro, num canto esquecido do planeta, iriam perceber uma comunidade apaziguada sem tristeza, roubos, mentiras, perseguições, corrupção, fortunas e muito menos comunicação com a velha civilização — como depois descreveu o monge Tchang. Seria possível aquela vida isolada de tudo?

Mas eu enxerguei mais do que isso no filme. Aquela descrição de paraíso, incrustado no meio das colinas nevadas, remeteu à um vácuo, um fio atando a vida terrena à morte — um universo paralelo. Aquele instante que a vida se esfacela, com o desvendar do outro lado (da montanha) e a opção de viver o eterno ou o risco de voltar e morrer (definitivamente) nas avalanches das cordilheiras e de outras doenças. Shangri-la parece um caminho sem volta.

Richard Conway (Peter Finch), como os demais, ia percebendo aos poucos como Shangri-la era agora sua última fronteira. A dúvida que atormenta, do desejo de voltar à civilização, só revela a vida viciada de mentiras, violência e de abandono que não conseguimos nos libertar. (Para onde vamos não há volta.) Parece que não  fomos programados e não suportamos uma vida em paz, sem desejos, exuberância e o poder do dinheiro. Aquela vida sem desafios, guerras diárias num tempo que não passa de Shangri-la, anunciava uma tediosa jornada. Cadê as notícias ruins?

Assim penso que seja o outro lado da vida (da montanha) — parece o que se propõe o romance. Quando atravessamos, não olhamos para frente e diante de quem estamos, mas olhamos para trás e tudo que deixamos na vida interrompida; achando que podíamos ter vivido mais, ter tido mais, ter viajado mais, sonhado mais. A angústia da não aceitação, que não se tem mais aquele corpo, do outro lado, mesmo sabendo que lá o tempo não passa e não precisamos juntar riquezas como forma de sobreviver. Demoramos a entender que a alma se alimenta de outras coisas.

Já caminhando para o final, Conway é pressionado por seu irmão (ele se apaixonou pela "jovem" Maria) a deixar Shangri-la. Entre a cruz e a espada, ele decide, por fim, partir, deixando aquele sonho que  nunca imaginou ser tão real; e depois esquecer sua paixão por Catherine, a professora que conheceu em Shangri-la. Ele estava mesmo decidido a voltar à realidade da civilização, talvez porque duvidava que tudo o que vivia ali era mesmo verdade. Ao vê-lo partir, o velho Tchang, num ar de passividade e confiança, diz assertivo: "ele vai voltar".

Na caminhada, a neve, o vento varrendo e a avalanche vêm com crueldade, e aquele pequeno grupo se vê em risco. A perder toda pureza do ar e de todas as maravilhas de Shangri-la, Maria envelhece no caminho e morre de fraqueza. Ao vê-la morrer, seu irmão se joga num desfiladeiro e Conway, dias depois, é resgatado, despertando numa cama de um hospital de campanha. Ele teve alucinações falando de um lugar chamado Shangri-la, disse o médico. 

A morte talvez seja mesmo essa passagem, como acreditam algumas pessoas. Uma travessia desse para o outro lado da montanha, como um mundo em paralelo no meio, onde o tempo não passa e a volta é quase impossível. Mas a pergunta que fica sobre o final, quando Conway desperta do seu coma: foi realidade ou sonho? Não tem como saber o que se passou. Conway, então, foge do hospital e sobe as montanhas de neve novamente tentando encontrar o caminho que o leve à Shangri-la, onde está a vida que ele agora quer viver, eterna e com a mulher que amou.

Depois desse "the end", fiquei entalado me perguntando sobre aquele desfecho e até onde nossos sonhos podem nos levar. Toda vez que ouço notícia que um avião desapareceu na sua rota, penso que foi resgatado a um horizonte perdido; num mundo paralelo, onde a vida é calma e sob uma lua azul. Não houve morte, mas resgate. Uma verdadeira Shangri-la, onde o que menos importa é o tempo passar.
 

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2016
   

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O rio não tem retorno

-

Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida”. Todo mundo já leu inúmeras vezes esta frase por aí, dizendo ser um provérbio (adágio) chinês. Os provérbios não estão apensos a nenhuma publicação; são frases soltas, de feição popular, sem originalidade, mas como uma roupa que se veste justa. São sábios.

Dialético, o antigo provérbio nos converge a sermos purificados e precisos com a vida: onde e para quem apontamos nosso dedo indicador; pensar antes de se dirigir a alguém; e o caminho que escolhemos seguir seja oportuno. Não vá decepcionar a si ou aquele que você ama. Como se conseguíssemos dominar o animal indócil dentro de nós, assim dormir sem estar com sono. Quase sempre, somos bêbados tentando se equilibrar no balaústre de uma ponte sobre o Tâmisa. Somos imperfeitos, desajustados, imprecisos. Mas com bons livros de bolso e bons provérbios tentando nos vestir.

Eu acrescentaria mais uma coisa: as águas correntes, caudalosas, mansas, silenciosas e às vezes turbulentas de um rio. Não há como contradizer: todos os rios não têm volta. Da nascente à jusante eles seguem a se juntar com outros e se derramar onde imaginamos ser seu fim. Sail on by...

Há palavras, pessoas, imagens, cenários, lugares, paisagens, coisas que vão e não voltam. Quando lançadas ou deixadas se perdem em atalhos e becos da vida. Quando percebemos já passou, canalizou por um túnel no tempo e esvaziou aquele instante. A carruagem passou e não voltou; a juventude passou e não voltou; um amor passou e não voltou; a morte passou e não trouxe mais nada, não devolveu a vida. Passou.

Somos pessoas em lugares mutantes e evolutivos. Tantas vidas teriam que ser paralisadas ao mesmo tempo para que nada passasse e tudo ficasse num momento de só deleite e prazer. Isso não existe, porque a vida nos chama a escalar montanhas e buscar meios em subsistir. Há turbulências e desafios. Não vivemos num paraíso onde a felicidade é água jorrando em bicas. Há atividades corriqueiras que faz-nos mudar intimamente, sem percebermos.

Por vezes, somos invocados alcançar emprego, estudo e sucesso tendo que mudar de cidade e região. A vida irá mudar. Os convívios, paisagens e os cenários do cotidiano não serão mais o mesmo. Tudo, por fim, é efêmero e passageiro. A festa da noite eterna, por mais que a esperamos e ansiamos, chegará e acabará com a luz do dia. Hora de juntar tudo e voltar ao caminho.

Havia muitas pedras para carregar e as costas já não suportavam mais. O arrependimento de não poder ter sido melhor do que agora o presente ilumina; a dor e a impotência diante de algo agora distante e sem conserto. O tempo nos devolve memórias e consciências que, no instante que aconteceram, não tivemos — apertamos o gatilho. Os erros do passado, a vontade de retornar ao início e fazer tudo diferente. Arde como brasa quente.

Quando os erros são percebidos num tempo distante, a primeira sensação é querer voltar e consertar tudo. O brinquedo da infância deixado empoeirado numa caixa no porão. Querer encontrar as peças espalhadas, limpar e ver tudo montado, de novo lindo e funcionando. Poder brincar com um passado remontado. Retomar aquela história desde o inicio e contá-la de maneira diferente, mais madura, mais amorosa; sem mesquinharias, ressentimentos e discussões tolas.

Não! Não há como voltar. O rio não tem retorno. As águas de um rio são fatos consumados de uma vida já vivida e entregue. Em águas quentes mornas e frias nos rendemos, nos mergulhamos. Ele sempre seguirá o seu curso, seu destino, desbarrancando margens e tudo que ficou lá atrás; virá arrastando tudo, mesmo que solte dos remos. Às vezes lento, calmo e manso; às vezes turbulento e de árdua navegação. Entre meandros, pedras rasas e toras pelo estreito, mas sempre deslizando da nascente das montanhas. Em penetração de outras águas, ou na imensidão de um oceano (fim da jornada).

Como devolver lágrimas derramadas aos canais de suas glândulas? Não retornam, deixe-se chorar, então. Deixe-se desaguar.

As corredeiras, quedas d’água, por mais insuportáveis que possam ser suas passagens, elas nos conduzirão no percurso; elas existem e uma hora ou outra aparecerá à nossa frente. É hora de segurar firme nas extremidades da embarcação (sem remos) e deixar se levar. O máximo que poderá ocorrer é encontrarmos novamente com águas mansas do nosso caudaloso rio. É assim que ele te leva até o desaguar definitivo em águas oceânicas.

Se não podemos voltar, podemos mudar o sentido da proa. Quando se vai por outra rota, as águas também estão lá para levar para algum lugar no futuro. O foco, os assuntos, as mágoas devem ser dissipadas, mudadas e pisoteadas como uma erva-daninha.

As prisões do passado, longínquo ou recente, colocam em cofres nossos pecados, falhas, medos, covardias e faz-nos com que voltemos a ele, revelando segredos, para pôr ordem e fim naquela história mal terminada e reparar a pintura negra (escura) da alma. Obras pintadas não têm consertos, têm retoques.

No conto de Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”, sucinta a vida dentro de uma canoa. Um pai que deixa a família para viver rio abaixo rio acima, remando: “nessa água que não para, de longas: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro – o rio”. Deixe fluir o rio, como flecha, como palavras ao vento, como desfiladeiro; abrindo caminhos, trincheiras meandros e estreitos. Um rio interior e leviano; e a vida segue a sangue, ferro e profunda. Não há mais infância, não há mais tempo, não há mais resgate. Só são águas, só vejo rio. O meu rio sem pressa de lugar algum...

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Julho de 2013.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O tempo que é tudo

Andar pela rua faz bem. E andar por aí, despretensiosamente e sem rumo, me faz pensar na vida, no big bang, em gêneses e apocalipse, nos homens, nas guerras, na globalização; faz pensar em mim... Buzinas, sons, luzes, cartazes, gente nesse vai-e-vem, entregue em sua catatonia; mergulhada em seu tédio e melancolia sem fim. Uns cruzam meus olhos; outros me tentam ultrapassar com o celular no ouvido. Onde vão parar? Quanto tempo eles terão? A cidade me devora, lembrei-me de uma canção... Andar agora me faz mal, com os porquês que me entopem.

Por um instante, eu só queria ser servido desse entendimento. Eu, como os outros que estão desse lado da vida, não pedi para estar aqui. Vim porque vim; vim sem convite; vim porque a vida deve ser missionária, talvez; vim porque todos têm que passar por aqui — o caminho. Vim de um gene contrário; não como animal ou inseto, mas com um cérebro evoluído. Seja esta a grande angústia e viver a se inquirir. Cá estou e onde está Deus que não vejo? Em tudo que zunia, fui pensar no tempo que temos; no tempo que nos resta. As horas passam; e os segundos, nem se fala...

Tente resumir sua vida em um dia. Você nasce à zero hora e morrerá 24 horas depois. Uma vida de mosca doméstica (elas vivem um pouco mais). Foi o tempo que lhe deu o Criador: somente 24 horas para viver como Ser Humano. O que fará com seu tempo? Agirá da mesma forma com o tempo que pensa ter, da longevidade da morte distante? Quando o cachorro do seu vizinho começar a latir, irá pular o muro e agredi-lo? Interfonará à portaria, pois sua vizinha do andar de cima usa um aspirador de pó bem na hora da sua siesta? Brigará? Roubará? Corromperá? Matará? Mentirá? Fará maldade, ou usará o seu mísero tempo para fazer o que pode ser melhor para você e os que te cercam? Lembre-se, você só tem poucas horas. Talvez fosse melhor ter um cérebro de mosca ou não pensar no fim tão próximo.

O tempo é o causador de tudo que fazemos com nossa vida; achamos controle sobre ele e não temos, na verdade, nenhum; achamos que somos indestrutíveis e iremos sair ilesos pela porta dos fundos, também não somos; achamos que chegaremos à velhice, como bônus da vida, e teremos tempo antes para dizer: perdão pela vida mundana que muitas vezes vivi. A morte parece distante, longe do nosso ideal de vida. Não penso nela, pois é melhor ver o amanhecer a me encher de esperança, do que me deitar com ela; então, deixo que chegue como um ladrão que me arrebata na noite escura.

Vejo, por exemplo, os jovens que morrem em acidentes de trânsito. Morrem porque veem a morte muito distante da aurora da vida; morte não entra nos assuntos das rodas. Mal sabem que essa sombra vive rodeando suas vidas, como um cão faminto - dizem alguns especialistas. Veem a morte mais próxima, sim, do avô que balança em sua cadeira na varanda; já a juventude que goza de plena saúde, de músculos fabricados em academia, é uma viagem sem fim. Só não vão perguntar quantas vezes, aquele pacato velhinho, já esteve à beira do precipício; quantas vezes, ele teve que parar para pensar mais na vida e o que estava fazendo com ela. Chegou até ali porque na linha da vida desviou os perigos, no tempo não estava escrito: hora de morrer. Pode ser que a morte nos encontre quando nós mais a procuramos. O tempo é o causador dessa falha de circuito.

Escreveu Rubem Alves sobre a morte de Ayrton Sena: “Enganam-se os que pensam que Senna competia contra os outros. Os outros também desejavam ser heróis, todos saíram juntos, em procissão, como se numa liturgia, a desafiar a morte”. Quem busca adrenalina não quer competir com ninguém; somente há um tempo, o de vencer; tem controle e se deixou na distância de sua morte; pode encontrá-la numa curva da estrada, na entrega de sua dor, ou na pista de fórmula 1.

O grande clássico das telas nos anos oitenta, Blade Runner — O caçador de androides (1982), traz à reflexão, entre outros recados subliminares, o tempo que temos de vida. Sua trama tem como cenário uma Los Angeles de 2019; onde replicantes e seres humanos quase que se confundem nas semelhanças físicas e também nas emoções. Ao mesmo tempo, em que quatro replicantes da linhagem Nexus 6, vão atrás de seu criador com o objetivo de aumentar seu tempo de vida, um caçador implacável os persegue. Ao deparar com o seu criador (Deus), o replicante beija-lhe os lábios e o mata afundando-lhe os olhos por trás dos seus óculos; o criador negou que lhe pudesse dar mais tempo de vida. Na cena final, no terraço de um edifício, o replicante — personagem de Rutger Hauer — se agacha e sussurra suas últimas palavras: “todos esses momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Antes, ele poupou a vida daquele seu caçador. Um filme para ser lembrando sempre.

A vida de replicantes que vivem somente quatro anos e as nossas, que poderemos viver mais, têm o mesmo mistério do tempo que nos resta e para onde iremos depois. Queremos mais do que nos foi dado. A humanidade e a ciência vivem a buscar alquimias que tentam prolongar a vida humana. É obscuro o mundo que não sabemos se existe depois. Uns dirão que é isso ou aquilo, dimensões infinitas; os de fé dirão que é a eternidade com Deus. Não importa, ninguém quer saber disso agora. Querem viver e muito, correndo atrás do tempo.

Agora meu tempo voa como um puma ligeiro no deserto escaldante; e o tempo de encerrar esta crônica já expirou alguns minutos. Hora de encerrar...

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2011.