Pode soar estranho às pessoas de hoje, mas na minha adolescência — mocidade, como se dizia — eu queria ser Chico Buarque. Tocar como ele, compor como ele e cantar também como ele. (Ele canta mal, eu sei...). Talvez eu seja um dos poucos da minha geração que compreendia aquela relação profunda, poética, prosaica, cotidiana, harmoniosa: letra, música, corpo e alma. Justapostas, sabe? Fragrância lírica das ruas descalças, dos balões, das moças. Espreitado por alguém debruçado sobre a janela alta da casa burguesa.
Já faz alguns anos, assisti a um vídeo de Chico com João Pedro Stédile, o chefão do MST. Depois de uma partida de futebol, no seu campo particular, Stédile pediu-lhe que fizesse uma dedicatória num box de DVDs. Disse-lhe que entregaria o ilustre presente, pessoalmente, a Nicolás Maduro.
Aos 80 anos, o grande compositor nem tem mais pernas para correr atrás de bola. Depois de aplaudir, de plateia, seu mentor político ser transformado em presidente de novo, pela terceira vez, partiu em definitivo com sua mulher novinha para Paris. Uma morada dos deuses, no metro quadrado mais caro da cidade, bem longe das mazelas brasileiras.
Súbito, pensei no campo de futebol particular. Virou assentamento do MST? Seria lógico, e é o que sempre se espera de socialistas: repartir, dividir e partilhar seus bens. (Stédile não teve essa ideia?). Nos tenros 20 anos, o jovem Chico escreveu "é a terra que querias ver dividida", versos da canção Funeral de um Lavrador. Noves fora, o Google Earth me contou que o campo ainda está lá, inteirinho no caríssimo Recreio dos Bandeirantes. Sem nenhum sinal de invasão dos sem-terra fluminenses.
Minha profecia, no entanto, me diz, ao pé do ouvido, que os herdeiros já esfregam as mãos. Logo darão um destino provável e financeiro ao terreno: o mercado imobiliário. Faz jus, era a terra que querias ser dividida... Porque a narrativa da justiça social (do pivete, do guri, do malandro, do sem moradia) é atemporal e não pode morrer: e tudo que serve de esteio ao discurso dos velhos burgueses e poetas hipócritas. (Millôr já disse de quem lucra com seu ideal).
Mas para que essa crônica não acabe assim, eu prefiro dedicar-me, cavando na memória, à história bem rimada do Juca, aquele dos anos 60. O pobre seresteiro autuado em flagrante, como meliante, que foi parar numa delegacia, pois sambava bem diante da janela de Maria.
© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2024
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