Se procurarmos nos fóruns de discussão na rede de computadores, iremos encontrar várias interpretações para o mesmo assunto, onde para você (e para mim) só tem uma resposta, uma convicção e afirmação. Confrontaremos com inúmeras discordâncias e pontos de vistas, porque cada um enxergará sob seu viés. O que nos faz refletir mais.
Basta recorrer a uma análise simples de qualquer obra literária ou filme, verá que cada um tem algo diferente a dizer. Ou aquilo que mais lhe chamou atenção. Atentamos mais aos capítulos e passagens que nos aflige diretamente, porque o natural do subconsciente é registrar, tão somente, aquilo que nossa alma mais necessita se alimentar naquele instante. De uma forma bem simplista e clara.
Às vezes, os livros e filmes passam por nós e anos mais tarde, aquela cena ainda permanece tatuada em nossa memória. Uma hora irá desflorar, e iremos entender o porquê; e tudo se fechará, como uma peça que faltava naquele pensamento nebuloso e confuso.
No filme “Náufrago” de 2001 — mais uma grande obra desenhada por Tom Hanks — iremos nos deparar com várias mensagens. Cada um irá contar aquilo que mais lhe afetou.
A trama narra a história de um executivo de uma empresa de entregas — FedEx —, que era uma espécie de workaholic e pouca importância dava à família, às pessoas e ao convívio social. Sua vida era o trabalho e só. Depois da pane no avião onde viajava, ele se torna o único sobrevivente da queda e vai parar numa ilha, isolada num canto qualquer do planeta. O restante da tripulação morre e ele fica preso a esse mundo pequeno, desabitado e sem vida aparente. O que é vida afinal?
Ali desenvolve habilidades manuais e primitivas para sobreviver a sua diminuta e solitária vida. Suas necessidades agora se baseiam em habitar, se proteger das intempéries, se alimentar, e assim como um homem das cavernas, “descobrir” o fogo, atritando alguns gravetos.
O dilema de Chuck Noland, papel de Tom Hanks, vai além do fisiológico e do subsistente; ele queria sair daquela vida limitada e encontrar novamente sua civilização; o convívio das pessoas, a cidade barulhenta, o trabalho, a família, sua miséria cotidiana... Sobreviver já não era sua sorte. A solidão era cruel e uma companheira incômoda; o que fez de uma simples bola de voleibol seu alter ego, o amigo inseparável com quem conversava muitas vezes e por isso passou a chamá-la de “Sr. Wilson”. Uma forma de ouvir seu interior.
Mas qual é o ponto do filme?
Para mim, está condensado no desafio em construir uma embarcação que pudesse alcançar o alto-mar, a sua salvação. Malgrado, ali havia um busílis não calculado por ele; seu estorvo era a rebentação que quebrava alta e distante da praia; ultrapassar aquelas altas ondas, que sempre o devolvia ao ponto de partida, à praia da sua ilha deserta. Ele tentava e o mar o arremessava de volta. Aquela rebentação era a barreira que o mantinha preso na sua angústia, sua tragédia maior, no seu mundinho defectível e solitário; sair daquela melancolia que o aprisionava por 04 anos se tornava cada vez mais difícil.
Passados aqueles anos, experiente e conhecedor do ambiente que agora vivia, ele pensou: era preciso mais do que construir uma embarcação; era preciso estudar e entender os ventos, as marés, as estações do ano; e num momento único e derradeiro haveria uma chance de quebrar as ondas gigantes. Antes teria de construir uma embarcação segura, que pudesse levá-lo de volta à vida. Em mar aberto, os bons ventos o levariam para longe e assim ser alcançado por uma mão salvadora, em águas brandas. Lançando-se ao mar aberto, como uma vida longa e ampla, a possibilidade de encontrar a salvação era maior. Ele só tinha que vencer aquela rebentação.
Tudo que traçou deu certo, ele venceu as ondas. A vida já não era mais aquela miserável ilha. Ele estava pronto para ser resgatado, as correntes da prisão foram rompidas; e ele agora navegava em mar aberto e calmo, até ser resgatado por um navio cargueiro. E tudo nele se transforma a partir desse ponto, dessa passagem.
Numa situação análoga, a vida tem feito seres humanos presos em ilhas desertas que não conseguem vencer a rebentação, e sair para mar aberto; por medo, por covardia e em muitas vezes por ignorância vivem como eternos aprendizes de si. Aquele ser conforta-se que o mundo é uma ilha mesmo e aqueles que o quiserem, que venham até ele. Alguém se habilita?
Dentro dos trens de metrô onde viajei pela Europa, era esta ilha de gente que se via; em comunicação única e exclusivamente com seu iphone. Rindo solitariamente das fotos que compartilhavam ou das mensagens que abriam; sempre com ninguém presente, como um ser distante e ausente.
Numa conversa de botequim — aprecio e aprendo muito! — falávamos sobre uma mulher que, à luz dos 70 anos, vivia em sua ilha deserta e desabitada. Qualquer convívio fora do seu mundo revelava o seu lado amargo, sombrio, agressivo, infantil, histérico, com proclamo de vítima social e não aceita por ninguém — sem caráter social. Pensei: com a vida quase chegando ao fim e ela ainda não aprendeu? E não aprendeu mesmo.
É premissa, para viver em sociedade, ser cortês, ter paz de espírito, ter sensatez, bom humor, aceitar brincadeiras e muitas vezes não dizer o que pensa sobre tudo que vem à cabeça. O que não é o caso dessa senhora; criança mimada, que o “mundo não quer compreender”, e com ele não aprendeu com seus tropeços e quedas. Algum momento da vida a tornou assim? Creio que sim: uma fala, um gesto de alguém a fez viver na defensiva e ser intolerante aos outros, sem percepção de si. Com longínqua idade para aceitar a transformação, ela não consegue e já não quer mais construir sua embarcação; romper a rebentação que aprisiona em sua ilha egocêntrica. Mundo pequeno e cruel. Quem irá visitá-la na sua melancolia? Comentamos e apontamos, mas, por resignação, acabamos sentindo pena.
O mar da idade, quando se quer alcançar (mesmo aos 70 anos), é aberto e visto num horizonte de paz. Foi uma luta do barco com a rebentação; ou dos braços cansados nadando sobre revolta maré. Vencer as ondas! Almejar pelo mundo civilizado e social; esperar por mãos afáveis, navegar sereno na embarcação que o vento já conduz sem medo; por fim, encontrar terras habitadas por pessoas e não por iphones.
Mas quanto aos maremotos? Asseguro que minha embarcação é robusta para atravessar. Não haverá novo naufrágio, não retornarei à ilha deserta de mim — all by milself. Não comerei o pão que o diabo deixou amassado, porque simplesmente não quero mais tal condenação. A rebentação já passou, e o maior triunfo é encontrar um porto seguro para viver em terra firme e civilizada.
Cast away — o título em inglês de “Náufrago”. Tudo termina com o personagem parado num cruzamento de duas estradas, num lugar também deserto e incerto — sem setas. A escolha agora é do caminho, porque qualquer seja o escolhido, ele estará lá na sublimação, de corpo e agora também com a alma. Velas ao vento.
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012