BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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terça-feira, 12 de novembro de 2024

Eu Queria Ser Chico Buarque

Pode soar estranho às pessoas de hoje, mas na minha adolescência — mocidade, como se dizia — eu queria ser Chico Buarque. Tocar como ele, compor como ele e cantar também como ele. (Ele canta mal, eu sei...). Talvez eu seja um dos poucos da minha geração que compreendia aquela relação profunda, poética, prosaica, cotidiana, harmoniosa: letra, música, corpo e alma. Justapostas, sabe? Fragrância lírica das ruas descalças, das peladas, dos balões, das moças. Espreitado e debruçado sobre a janela alta da casa burguesa.

Já faz alguns anos, assisti a um vídeo de Chico com João Pedro Stédile, o chefão do MST. Depois de uma partida de futebol, no seu campo particular, Stédile pediu-lhe que fizesse uma dedicatória num box de DVDs. Disse-lhe que entregaria o ilustre presente, pessoalmente, a Nicolás Maduro.

Aos 80 anos, o grande compositor nem tem mais pernas para correr atrás de bola. Depois de aplaudir, de plateia, seu mentor político ser transformado em presidente de novo, pela terceira vez, partiu em definitivo com sua mulher novinha para Paris. Uma morada dos deuses, no metro quadrado mais caro da cidade, bem longe das mazelas brasileiras.

Súbito, pensei no campo de futebol particular. Virou assentamento do MST? Seria lógico, e é o que sempre se espera de socialistas: repartir, dividir e partilhar seus bens. (Stédile não teve essa ideia?). Nos tenros 20 anos, o jovem Chico escreveu "é a terra que querias ver dividida", versos da canção Funeral de um Lavrador. Noves fora, o Google Earth me contou que o campo ainda está lá, inteirinho no caríssimo Recreio dos Bandeirantes. Sem nenhum sinal de invasão dos sem-terra fluminenses.

Minha profecia, no entanto, me diz, ao pé do ouvido, que os herdeiros já esfregam as mãos. Logo darão um destino provável e financeiro ao terreno: o mercado imobiliário. Faz jus, era a terra que querias ser dividida... Porque a narrativa da justiça social (do pivete, do guri, do malandro, do sem moradia) é atemporal e não pode morrer: e tudo que serve de esteio ao discurso dos velhos burgueses e poetas hipócritas. (Millôr já disse de quem lucra com seu ideal).

Mas para que essa crônica não acabe assim, eu prefiro dedicar-me, cavando na memória, à história bem rimada do Juca, aquele dos anos 60. O pobre seresteiro autuado em flagrante, como meliante, que foi parar numa delegacia, pois sambava bem diante da janela de Maria.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2024

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Pesar de você


Dois dias depois da eleição de Jair Bolsonaro, num ato de protesto em favor da democracia (oi?), Guilherme Boulous arrastou alguns punhados de estudantes — sempre eles — para seu delírio revolucionário; também para dizer que agora eles seriam a “resistência”, como se estivéssemos às portas de um regime de exceção. Entre um discurso e outro, vi alguns jovens (18 anos, por aí) entoando “Apesar de você”, que rolava numa caixa de som.

A música composta em 1970 era uma carta (sem selo e postagem), em versos subliminares, direcionada ao presidente que Chico Buarque não gostava: Garrastazu Médici. Médici era o “você” da música-homenagem. Etecetera e tal laiá laiá...

Quase meio século depois, a música foi exumada e agora é retumbada em atos de protestos dos movimentos de esquerda pelo país. (Na cabeça deles, ainda vivemos aqueles anos. Ou: ninguém escreveu algo melhor para o Brasil de 2018). Mesmo esses jovens (anos 2000), que nunca tinham ouvido, num desconhecimento histórico, passaram a cantar, como um ato contínuo.

Mas, preste atenção na letra. Ela não se assemelha com nada do momento atual do país; momento de mudança, de pôr ordem na casa, de combate à corrupção, de respeito aos símbolos nacionais e à Constituição. Tudo sob os olhares da velha e boa democracia. Uma roupa surrada, puída querendo se vestir numa visão nova de país. Por outro lado, a música se encaixa melhor (mais apropriada) nos 14 anos de Lula/Dilma. O trem fantasma de onde o país saiu e agora quer esquecer.

O caminho que o PT estava conduzindo o país, sob a agenda do Foro de São Paulo ipsis litteris, era autoritário e ditatorial. Não há mais dúvida! Um Estado inchado, corrupto e de poderes plenos ao partido da estrela vermelha. Sob seus pés, uma população miserável, sem emprego, sem educação, indefesa, amedrontada e viciada em assistencialismo. É fato: tudo que eles diziam combater era o que queriam nos servir: a grande pátria latino-americana e socialista. Fomos salvos e despertados pela Lava Jato e por Sérgio Moro, aos 40 minutos do segundo tempo.

Hoje, quando vejo um jovem desses, geração snowflake (rebelde sem causa), cantando o que nem sabe o que representou, eu sinto mesmo um pesar dele; um pesar de você.

 © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

quarta-feira, 26 de julho de 2017

O lixeiro, o escritor e a babá

Quando era um petiz, o compositor Francisco Buarque de Hollanda não aceitava o fato do lixeiro fazer um serviço tão pesado e não ganhar mais que seu pai, que sustentava 7 filhos escrevendo à máquina, dentro de um escritório, com conforto. (Ele não aceitava a vida burguesa, mas não pensava em divisão. Curioso.) Ele queria que sua babá — ele tinha uma — se casasse com o lixeiro, mas ele não ganhava o  suficiente para sustentar uma família, pagar aluguel, contas, etc. Foi o que ela se queixou.

Passados quase 70 anos, a sociedade não "evoluiu" a ponto de abolir o recolhimento de lixo de nossas vidas, tampouco fez o lixeiro ganhar mais que um escritor. O lixeiro continua tão útil quanto um escritor, um jornalista, um compositor de música, um professor, um dançarino, um operário da construção ou um filósofo. (A babá, ao contrário, é um luxo social mesmo.) Cotidianamente, o lixeiro continua a passar em frente do seu prédio na zona sul carioca, recolhendo suas garrafas vazias de vinho importado e latas de caviar — presunção.

Durante sua trajetória de vida, aquele menino, que achava o mundo injusto e desigual,  não quis saber do trabalho braçal; ele foi impelido a ser como seu pai: viver dentro do ar refrigerado, compondo músicas e sustentando seus bens e luxos (e tudo que pudesse manter seu público com o velho discurso socialista). Teve talento para criações e não para carregar peso nos ombros. Era um sonho, um desejo pueril, mas pesou em sua escolha de caminho (de mundo melhor e justo), o fato de ser pertencente a ele. Tudo muda (e faz sentido) quando o interessado e sacrificado somos nós. Não há pensamento socialista que renegue o berço.

A desvalorização, se nós podemos dizer assim, de uns em detrimento a outros é milenar e, consequentemente, lógica na escala social da história da humanidade; o que fez, por milênios, o mundo ter sido  mais escravista. O que também se diferencia as pessoas pelo intelecto, talento, expertise e não por injustiça social. A uns foi dado o talento da ideia do que fazer com as pedras; a outros foi dada a força para carregá-las, transformando as ideias do criador em algo para o sustento da vida de ambos. E assim sempre será.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2017

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Desconstrução

Esta crônica não começou aqui, mas nasceu numa conversa de botequim. Onde se conversa de tudo; e hoje, mais do que nunca, o assunto que supera o futebol é a política.

E não podemos tocar na política sem lembrar dos intelectuais, artistas de hoje (e antes) engajados — palavra muito usada no anos de 1970 — à correntes ideológicas e únicas de esquerda. Não, eu não sou daqueles que preciso saber o que um desses artistas de MPB pensa para tecer meus comentários. A bem da verdade, muitos deles se aproveitam, ainda hoje, da política para existir, ou melhor, difundir sua obra. É o caso da Lei Rouanet, que foi criada sob pretexto de incentivo à cultura dos anônimos, mas virou contrapartida, moeda de troca, aos artistas conhecidos e consagrados defenderem o governo de esquerda, que hoje nos rege, dono da lei, e sob qualquer viés. Como se todos nós fôssemos guiados por eles.

Poderia lembrar de outros aqui, mas o mais engajado sorridente, e quem mais se aproveitou dos governos (militar e de esquerda) foi Chico Buarque. Se projetou no regime militar e se condecorou no governo Lula/Dilma, como mito e símbolo de resistência. Ninguém mais do que ele é, até hoje, aclamado pela imprensa e toda a militância de esquerda como aquele que combateu a "ditadura", com suas músicas e peças de teatro. Combateu? Vamos voltar um pouco no tempo, reler e avaliar parte de sua obra. Uma desconstrução do autor de Construção? Sim, pode ser.

É inegável que Chico tenha sido perseguido pela censura do Regime. Não que suas letras eram balas de canhão a ponto atrair a massa e derrubar o governo — como a música que fez Geraldo Vandré — , mas só porque eram escritas por ele. Ele se fez, e hoje ainda se vende no meio artístico, como símbolo de resistência ao governo militar. Para isso, ousou em algumas letras, criou um pseudônimo e reescreveu algumas letras, trocando palavras, para ter suas músicas liberadas e gravadas.

Em 53 anos de carreira, Chico Buarque compôs, segundo seu site oficial, 343 músicas letradas (às vezes a mesma música com letras diferentes). Dessas músicas, nenhuma delas foi censurada no início de sua carreira até ser reconhecido como artista, de 1964 a 1969. Mesmo após o AI-5 (Dezembro de 1968), ele estava livre para compor e cantar. Sabiá, por exemplo era uma espécie de canção do exílio. Sem problemas nenhum, foi cantada no festival da Globo. Sua música mais tocada naquele final dos anos de 1960, Roda Viva, não sofreu corte nenhum da censura.

Somente em 1970 — e aqui começa tudo —, ele teve a sua primeira música proibida pela censura federal. Apesar de Você foi lançada num compacto simples — meu irmão tem até hoje essa raridade —, que tinha do lado B Desalento. Logo depois, quando perceberam que o "Você" não era nenhuma amante, mulher, etc, os discos foram recolhidos das lojas e a divulgação proibida nos meios de radiodifusão, pelos órgãos de censura. Subliminarmente era uma queixa clara ao governo militar. Muitos a chamam de "Carta ao Médici" ou "Carta ao presidente". Nessa época ele já tinha voltado do seu auto-exílio, em Roma.

Se levarmos em conta o valor de uma música que ficou no imaginário popular, como uma música de protesto (e que marcou um período), podemos dizer que só Apesar de Você e Cálice (1973), foram reconhecidas depois como músicas, com teor de crítica à política, e que sofreram censura ao longo da sua carreira. Isso não representa nem 1% da sua obra musical. Depois, ambas foram gravadas no LP de 1978, ainda dentro do Regime Militar. Foi mais um chororô de ocasião, e como a esquerda sempre interpretou bem nesse papel: vitimização. Para repetir até exaurir: — olha, eles estão me perseguindo. Fui censurado.

Alguém pode argumentar: mas ele teve outras músicas de cunho político censuradas, como Milagre brasileiro, Vence na vida quem diz sim, Tanto mar, etc. Essas não contam? Sim, mas sem a mesma importância. E o que eu digo, são aquelas que, mesmo censuradas, ficaram popularizadas, e sempre aparecerem em destaque na sua obra. Inclusive, depois, foram regravadas por ele mesmo.

As suas músicas censuradas (em partes ou integral), pelos órgãos de repressão do governo militar, eram por simbolizar aspectos negativos da vida social, ou aquilo que afrontava a "moral e bons costumes" da época. Partido Alto, por exemplo, teve palavras trocadas, porque ofendia a própria raça, o brasileiro. Disse o censor, que a avaliou: "Se é engraçado ou uma infelicidade para o autor ter nascido no Brasil, país onde ele vive, e encontra esse povo generoso que lhe dá sustento comprando seus discos, e pagando-o regiamente nos seus shows, afirmo que ele está nos gozando. Opino pelo veto." Depois que substituiu algumas palavras na música, o censor ainda lhe deu outra descompostura: "Como  é que você, que fez uma música como Construção, agora vem com esta, falando de titica e saco cheio." A música foi gravada.

Dos seus discos, nenhum foi mais comentado que Calabar. E aqui abro um espaço para descrever como a censura proibiu a peça e o disco, simultaneamente. Em 1973, Chico Buarque estava com 29 anos, e escreveu músicas lindas para a peça. Depois dos ensaios e pronta para estreia, ele soube que a peça havia sido proibida. Calabar, o elogia da traição soou como uma espécie de resposta à morte do Capitão Lamarca, desertor/traidor do exército brasileiro, por se juntar ao grupo de guerrilha Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); se refugiando, por fim, no sertão da Bahia, onde foi encontrado e morto. Os órgãos de censura ao perceberem no meio a palavra "traição", não pensaram duas vezes em proibir tudo.

Das 11 músicas, do disco Chico canta Calabar (depois virou somente Chico canta), muitas tiveram parte das letras substituídas, ou estrofes retiradas (Tire as mãos de mim) e uma música foi totalmente censurada: Vence na vida quem diz sim. A capa, onde aparecia a palavra "Calabar" pichada num muro, também foi censurada. Na parte interna, no encarte do disco, a foto de soldados fazendo piquenique sobre a bandeira do Brasil também foi censurada. Ou seja, não sobrou quase nada. Apesar de tudo, o disco, com canções escritas por Chico e Ruy Guerra, é um dos melhores de sua carreira. A letra de Vence na vida quem diz sim, na forma como foi entregue à censura federal (anexa à esta crônica), aparece o carimbo de "vetada". Na canção Tire as mãos de mim, a última estrofe não foi gravada. Dizia:
"Por três tostões
Ganhaste um par
Hoje está sós,
Eunuco e coxo
Tire as mãos de mim
Põe as mãos em mim
Vendeste um teu amigo
até o fim
Agora leva o troco"
(A estrofe foi subtraída e não foi gravada. Quando comprei o livro Chico Buarque Letra e Música, não veio com essa estrofe. Mandei um email ao editor que me respondeu que na próxima remessa seria corrigido.)

O período duro e repressivo não durou muito, talvez quatro ou cinco anos e só. Em 1976, Chico escreveu três letras para uma mesma música. Nas três versões da conhecida O que será, a frase "o que não tem governo nem nunca terá" não foi censurada e foi gravada assim. A música inicialmente foi composta para o filme Dona Flor e seus dois maridos.

Nessa época, Chico Buarque, e grande parte da chamada MPB (dos artistas engajados) eram aclamados e muito populares nos meus universitários (ainda são até hoje); do outro lado, a maioria da população ouvia mesmo era Antonio Carlos e Jocafi, Benito Di Paula, Originais do Samba, Secos e Molhados e Os Incríveis cantando Eu te amo meu Brasil. Para o meio politizado, se você não ouvia Chico e a MPB você era alienado. Mas quem se importava com isso, se a vida não era tão repressiva como eles diziam àqueles que não deviam nada ao governo?

Naqueles idos, pelos arredores e calabouços, se falava muito em prisões e torturas. Que artistas haviam sido presos e torturados, citando sempre Geraldo Vandré (?); e que nele fizeram uma lavagem cerebral, etc. (Pois é, somente ele carrega essa pecha da tortura. Ninguém mais. Por quê?) Logo após aquela noite, da sua memorável apresentação no Maracanãzinho, depois de ser ovacionado com Pra dizer que não falei de flores, Vandré foi sentindo o peso de sua música no meio dos militares e no início de 1969, já com o AI-5, ele sumiu. Ele arrumou um jeito e escapou pelas fronteiras do país e ninguém mais o viu. Naquela altura sua música já estava na boca do povo. Ele voltou em 1973 negando a prisão e que havia sido torturado. Nunca mais compôs como antes. Nas entrevistas recentes, ele, aos 81 anos, continua negando peremptoriamente que tenha sofrido qualquer tipo de tortura. Passados tantos anos, quem vai dizer o contrário? Por isso, a esquerda o abandonou. Ele não cabe mais na sua narrativa.

Agora, quem verdadeiramente sofreu tortura moral naquela época foi Wilson Simonal. O negão era como se diz hoje, marrento. Dono de uma voz irretocável, tinha personalidade, talento e um domínio total das grandes multidões. Meu limão, meu limoeiro virou hit no final dos anos de 1960. Era um showman. O que ele não estava nem aí, era com o que acontecia no país: do governo militar e aqueles que queriam derrubá-lo. Ele só queria cantar, andar nos seus carrões, se encher de dinheiro e ter as mulheres que queria. Foi acusado, por seus parceiros de música, de ser um informante do governo. (O que ninguém conseguiu provar até hoje.) Sua carreira acabou ali. Isso, sim, foi tortura. E ninguém, desses, veio lhe pedir desculpas, nem post mortem. Morreu anos mais tarde, alcoólatra, sem nunca conseguir provar sua inocência.

Outro dia, uma seguidora do meu Twitter se surpreendeu,  por eu ser arquiteto, e ter um pensamento tão conservador. (Os arquitetos são, na maioria, revolucionários de esquerda.) São outros tempos ou outros homens? Tempos de realidade e não de utopias (outra crônica). Por mais que a arquitetura tenha seu  broto e processo criativo numa visão utópica de mundo, mas a sua transformação é realidade que se toca, que se vê e se admira como poema concreto. Os sonhos são devotos, revigorantes, mas só o real encontro com a vida nos torna pessoas.

Assim, muitos outros também me questionam, porque passei a vida toda colecionando a obra do Chico Buarque (discos, livros, songbooks, DVDs) e hoje sou crítico. Bem, ao longo a vida a gente aprende muitas coisas. Uma delas é apartar o artista (e sua obra) da pessoa. Dizem que Chico Buarque vai lançar um novo disco em 2017. E dizem, até, que há uma música escrita para o Lula. Sempre esperei muito por seus discos chegarem às lojas. Hoje, nem tanto. Talvez, eu compre para continuar a coleção, mas não será com o mesmo entusiasmo quando comprei o LP "Chico Buarque 1978", ali nos meus 16 anos. Não será mesmo!

E para finalizar essa conversa, cheia de retrospectos, lembro da entrevista célebre do escritor Millôr Fernandes ao programa Roda Viva, da tv Cultura. Uma das perguntas, que veio de telespectadores, se referia da sua suposta briga com Chico Buarque. Millôr não quis polemizar, mas afirmou que não havia brigado, e alfinetou: "os defeitos de Chico Buarque se juntaram comigo. Defeitos que não tenho". E concluiu numa frase imortal: "Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal".

(Você pode dizer que esta crônica é a desconstrução de um mito. É sim. No entanto, a pior das torturas, carregadas de censuras, não estão nos tempos da repressão, onde vinha com o carimbo "vetada", do censor que tinha rosto. A pior são as censuras em tempos de democracia, porque elas vêm da forma mais rasteira e velada.)

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Junho de 2017

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Provou do próprio veneno


Outro dia, uma pessoa quis chamar-me atenção através de uma rede social. Tem isso agora, a exposição de nossos comentários e opiniões reserva às pessoas o direito — sem dar o direito — de invadirem o nosso espaço para tecer comentário, não sobre o assunto que se expõe, mas sobre nossa pessoa. Por uma simples observação.

Como já afirmei em outra crônica, a melhor descoberta da liberdade — e aqui se fala também da expressão — é dissociar ideias, pensamentos, informações e pessoas. Assim como, o sujeito do verbo. A coisa mais fácil é comentar a lógica. É o que procuro fazer. Hoje, faço isso e assim convivo com todos em todos os ambientes, até nos virtuais.

Mas o sujeito do comentário foi petulante e insistiu em querer me rotular, afirmando que, por eu não gostar do comportamento — não da arte — de alguns artistas, que, por suas atitudes têm pensamentos e ideologia esquerdista, eu seria então de direita. Oh my God!

Especificamente, eu dizia da atitude hipócrita de John Lennon (pessoa pública), que após a dissolução do grupo (faz-nos felizes até hoje), começou a erguer bandeiras pela paz e aparecer sem roupa à frente das câmeras de TV (sempre a exposição). Um indivíduo que vivia em guerras internas e individuais, lutando pela paz, parece-me um tanto desvio de personalidade. Isso se chama hoje de marketing pessoal. Outros também fazem o mesmo por aí, como Bono Vox, por quem não tenho nenhuma admiração, exceto por algumas de suas canções.

Cito um trecho de um livro que li sobre Lennon e de como ele viveu a tratar mal seus antigos parceiros, em especial Paul McCartney. Quando Paul foi visitá-lo em Nova Iorque, no Edifício Dakota (o mesmo onde foi assassinado), Lennon o tratou mal já pelo interfone e quase o mandou embora. Ou, o que você está fazendo aqui rapaz? São as guerras internas de um “pacifista”.

A diferença de Paul para John é que o primeiro sempre foi um líder nato. Nos ensaios era quem dava as cartadas e dizia como deveria ser os arranjos. Nas entrevistas, no palco, também era quem falava com o público. Depois da banda, continuou a fazer aquilo que sabia fazer melhor que é sua música, com qualidade. Ninguém, nas redes sociais, irá ver um cartaz com alguma citação de Paul, ele nunca foi de frases. Ele continua atuante aos 70 anos, porque continua a fazer canções como na década de 1960. Sua fala é sua música.

Vejo nesses seres, um tanto de desvio da formação de caráter. Ao mesmo tempo em que pedem a paz no coletivo, vivem guerreando no individual; brigando com o vizinho do andar de cima, ou jogando cadeiras de cima do quarto do hotel, porque excederam nas drogas. Quando vão dar entrevista às câmeras de TV ficam mansos e pedem a paz ao mundo. O lobo em pele de cordeiro é, na essência, um mau-caráter.

Algumas personalidades nacionais, por exemplo, não se deve tocar ou mal dizer. Logo você será tachado disso ou daquilo. Há o que chamo de santíssima trindade da música brasileira. Velhas e novas gerações aprenderam que não se pode comentar nada que desconstrua a biografia de Gil, Caetano e Chico. Por que, antes de tudo, eles enfrentaram bravamente a ditadura militar com sua arte. E hoje?

Observo que, eu não comentaria nas redes sociais sobre Lennon, ou qualquer outro se não fossem públicos, se não estivessem em exposição nos noticiários. E com relação a ele, até hoje se fala. Enfim, a coisa não é de conotação pessoal, mas da figura pública que ele representou e representa até hoje.
O mundo do politicamente correto é patrulheiro. Se você não gosta de Bono Vox, no que diz, fala e se comporta então você é a favor da fome no mundo; você é a favor da opressão que os ricos têm sobre os pobres; você é contra a humanidade e o meio ambiente. Tudo bobagem.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, numa de suas crônicas semanais, citou uma frase que vai de encontro com o comportamento desses “pacifistas”: “fighting for peace is like fucking for virginity" (lutar pela paz é como trepar pela virgindade)”. Bem oportuno, e isso estava escrito na porta de um banheiro em Israel na década de 80. Quem "luta" pela paz e vive em guerras internas e individuais é um oportunista, antes de tudo.

Hoje somos refém dessa praga, como chama Pondé. O politicamente correto tenta corrigir os termos, colocações, comportamentos, direções para que lado devemos seguir, porque toda a humanidade deve caminhar para lá, mesmo sem saber o que irá encontrar. Associa e posiciona o cidadão no mundo sob sua ótica. Se você não está nem aí para as causas ambientais, você não ama seu planeta — tentam lhe pregar. Como se fôssemos robôs e o único teto sobre nossas cabeças é do apartamento onde dormimos; sem olhar para o céu lá fora e por onde andarmos pelo mundo, será sempre o nosso teto. O mundo é minha casa. Deus me livre da prisão desse apê!

Zilda Arns — médica sanitarista morreu no terremoto no Haiti em 2010, quando estava numa missão humanitária. Nem eu, nem ninguém soubemos através dos noticiários que, esta verdadeira pacifista, estava lá, por uma causa. Ela não deu notícia ao mundo. O que fazia, não precisava ter reverência, não precisava aparecer.

A melhor revolução do mundo é aquela interna, de dentro para fora. Cuidar da casa, dos filhos e dar o melhor para suas formações; é o caminho individual que podemos fazer para plantar a semente do mundo, nossa pequena e sadia revolução.

Recentemente, por conclusão da peça de acusação aos réus do Mensalão do governo Lula, o Procurador-Geral da República Roberto Gurgel citou Chico Buarque “Dormia a nossa Pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações” — Vai Passar (1984). Em tudo que deferiu na sua fala, talvez não coubesse melhor citação. Enquanto a Pátria dormia, carros-fortes saiam dos bancos para pagar e manter um esquema de corrupção – o maior já visto, segundo Roberto Gurgel. Com certeza, alguém (esses que andaram dormindo), deva ter pensado, como pode ele citar isso? Chico Buarque não serve à direita. Esta música foi feita para a ditadura e não para os tempos de democracia que vivemos!

Concluo. Em democracia ou em regime de ditadura, a corrupção tem a mesma feição. O compositor escreveu para um e acabou acertando o outro. Como ele sempre se posicionou à esquerda acabou provando do próprio veneno. Esta é outra página infeliz da nossa história, que ainda não desbotou da memória. Estamos passando.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / agosto de 2012.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O ótimo, o medíocre e o idiota. Ou: Agora falando sério, Chico...

Começo escrevendo estas linhas ouvindo na minha vitrola virtual um dos meus álbuns favoritos. O disco “Meus caros amigos” de Chico Buarque, era obrigatoriamente tocado todos os dias lá em casa. Ainda fervilha na memória o som da agulha chiando (xii...) antes de entrar - sem introdução – a voz de Chico: “O que será que será / Que andam suspirando pelas alcovas...”. Em 1976, Chico ainda compunha suas canções de protesto sob metáforas. Muitas dessas músicas, hoje conhecidas, não existiriam se não houvesse a censura. A censura, ao contrário que muita gente imagina, o estimulava a criar.

Naquela época, o fedelho cronista aqui, queria ser Chico Buarque. Fiz alguns versos, mas nunca chegaram nem perto da sua genialidade, é claro. Então fui me ter com o violão e desse disco só saiu “Mulheres de Atenas”, cujos acordes e dedilhados sei décor até hoje. Só não me peçam para interpretá-la, pois sua letra é complexa e tem seis estrofes longas. Nem Chico sabia décor e por isso gravou o especial da TV Bandeirantes, com a letra ao lado. Essa vergonha de tocar violão em publico já me rubrou a face muitas vezes. Não toco.

Poucas pessoas sabem, mas sou assíduo freqüentador do Blog do jornalista político Reinaldo Azevedo. Petistas o detestam, e por eles o detestarem é que ele deve ser bom mesmo e deve ser lido. É uma lógica fácil de compreender, Reinaldo gosta de tratar a verdade como verdade e a mentira como mentira. Num de seus textos recentes, ao ser questionado por um dos leitores sobre a ausência da citação do nome de Chico Buarque, num tal manifesto da “esquerda intelectual” – se é que existem as duas coisas juntas ou separadas – em favor da candidata petista Dilma Rousseff, Reinaldo escreveu: “Há até quem diga que ele é o articulador [do manifesto]. Poder ser. Faria sentido. Chico é um ótimo letrista de MPB, um romancista medíocre e um idiota político. Não é de hoje”. Engoli seco. Ainda no embargo, refleti e depois disse a mim mesmo em voz baixa: ele tem razão... Talvez, eu nunca quisesse admitir, afinal é um ídolo sendo insultado e posto no banco dos réus, onde jamais imaginaria vê-lo. Podemos ser ótimos, medíocres e idiotas na mesma oração da vida. Por que não? Iremos brilhar no lado onde temos mais luz. Reinaldo e sua verdade desta vez me apunhalaram.

Tentei ler algumas das obras literárias que Chico escreveu e parei no meio do caminho, por falta de fôlego e emoção. Sua leitura é cansativa e não tem o lirismo e o capricho de suas canções. Seria como pedir a Machado de Assis escrever letras de músicas. Talvez, o encontrasse no mesmo ponto da mediocridade. Cada um na sua. Por isso, me considero um urbanista aprendiz de palavras e talvez fique no aprendizado a vida toda. Assim, me conservo longe do limite da mediocridade ou da idiotice e serei melhor naquilo que sei fazer bem. Minhas palavras são curtas e não têm a ânsia de romper fronteiras. Por muitas vezes é só um desafogo.

Em 1981, quando uma bomba explodiu no colo de um militar na porta do Riocentro, Chico era o anfitrião daquele show primeiro de maio. Aquela noite ficou marcada como um dos últimos capítulos de um enfretamento ao regime, que perdurou por longos 20 anos no país. Parte da arrecadação do show foi para o MR-8 – um movimento comunista clandestino que resistia àquela ditadura. Chico nunca se declarou engajado a partidos, mas já no período democrático começou a flertar com o PT e continua como um soldado, quando é convocado, ele está lá. Não me lembro também de declarações onde Chico tenha dito que é de “esquerda” ou que é um ateu convicto. Sempre fugiu desses assuntos polêmicos, embora parecesse ser ambos. Naquela época era muito comum comparar Chico a Caetano. Nas questões políticas, hoje fico com Caetano. Ele sempre se posicionou claramente, dizia o que pensava e continua dizendo - sem medo do patrulhamento.

Pô cara! Você é “chicólatra”, não vai com ele nessa? Não vou, e explico por que. Vou com Chico só na música e nas suas letras, onde ele é de fato ótimo. Outro dia parei para pensar no verdadeiro emprego da palavra dissociar e acho que ela seja talvez até mais importante que seu antônimo. Cérebros porosos e mentes ventiladas sabem dissociar informações, como um filtro da construção do nosso intelecto. Assim, como manga com leite, dois e dois são quatro e outras equações de obviedade igual. Sábio é o individuo que dissocia e filtra sob a luz da razão, do discernimento, da justiça e da verdade. Sem cabresto ideológico. Senão, fosse eu um sociólogo/escritor e não urbanista, naturalmente teria que ser de “esquerda”, ateu e andaria com Karl Marx embaixo do braço? Não! Desconstruo. Sou livre e penso como quero, carregado de princípios da minha formação e dissociando o que deve ser. Não pactuo e não dou meu voto de confiança a quem diz e desdiz antes de concluir o parágrafo (Eu odeio, eu adoro numa mesma oração – Chico Buarque). Quem - na política - usa da mentira como método. De certo, Chico, por seus princípios ideológicos, gosta disso. Eu não.

Não mudo uma vírgula de lugar quando trato de valores morais, de ética e de crenças. Já desisti de muitos políticos por isso. Na minha infância, quando me deitava para dormir, era minha mãe quem segurava minha mãozinha e junto comigo fazia “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos, Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos”, depois a Ave Maria e o Pai nosso. Ela era pouco instruída e foi alfabetizada já adulta; nunca foi intelectual nenhuma, nem de esquerda nem de direita, mas ensinou tudo que precisava aprender. Não troco isso por qualquer pensamento idiota, rasteiro e bocó. Uma questão de princípio.

Quando leio crônicas políticas em que começa com polarização de esquerdas e direitas, paro logo de ler. Sempre a mesma ladainha. No cenário atual, não cabe mais isso, como ainda insistem alguns saudosistas. Não há divisão por raças, crenças, credos e posições políticas. Acredito que a melhor divisão - para posicionar o ser humano no mundo - está entre quem é do bem e quem não é. O que de fato faz todo o sentido do equilíbrio das forças do universo. Toda luz só se propaga onde há o breu, o escuro. Um não existe sem o outro. A escuridão só é percebida pela ausência de luz. Com o bem e o mal é assim também. No campo das relações humanas – onde a política atua – seria melhor se colocássemos todos os seus personagens juntos e separássemos os que são do bem e o que não são. O joio do trigo. O resto é balela, propagadas por ideais que os partidos mesmos não mais carregam em si. Hipocrisia pura e ingenuidade dos que adulam e douram a pílula em troca do encalço da verdade. Procuro olhar para dentro, para biografia de quem quer que seja o postulante. Sob ética, decência e competência.

Talvez, Chico esteja ainda fugindo do seu rótulo de “unanimidade nacional”. Se estiver, contribuo me dissociando da sua mediocridade e da sua idiotice, mas continuo preferindo os seus ótimos versos em canções: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim / Leva o vulto teu / Que a saudade é o revés de um parto...”. Saudade do Chico, aquele das canções.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2010.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Como se fosse a primavera

Ainda a primavera...

O novo texto para o blog está quase pronto. Como o texto "Nesta manhã de primavera..."(leia) ainda está "bombando" com muitos acessos, vou adiar por uns dias a postagem do novo texto. Já fins uns ensaios com alguns leitores e a resposta foi muito boa. Acho que irão gostar.
Enquanto isso, assistam o video da canção "Como se fosse a primavera" de Pablo Milanés/Nicolas Guillén. Chico Buarque gravou está música - 1984. Esta música é uma das belas coleções de compositores cubanos. Deles, gosto muito desse: Pablo Milanés, e de Silvio Rodriguez. Na política, Cuba é um atraso, mas seus compositores são muito bons. Por sinal, esses dois não se alinham mais com a forma governamental e regimentar da ilha.
Enquanto aguardam o próximo texto, leiam os antigos. A primavera começou hoje, vamos mudar o foco e o rumo da prosa.




Como Se Fosse a Primavera

Composição: Pablo Milanés/Nicolas Guillén

De que calada maneira
Você chega assim sorrindo
Como se fosse a primavera
Eu morrendo
E de que modo sutil
Me derramou na camisa
Todas as flores de abril
Quem lhe disse que eu era
Riso sempre e nunca pranto?
Como se fosse a primavera
Não sou tanto
No entanto, que espiritual
Você me dar uma rosa
De seu rosal principal
De que calada maneira
Você chega assim sorrindo
Como se fosse a primavera
Eu morrendo
Eu morrendo

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Benvinda




O que mais me agrada nas músicas de Chico Buarque de Hollanda? Difícil dizer, poderia falar de várias, mas hoje vou compartilhar esta música do início de sua carreira (ele tinha 24 anos). Faz algum tempo descobri a grande sacada de “Benvinda”, sim, exatamente como ele escreveu: “Benvinda”, não é “Bem-vinda” (adj. saudação). Chico escreveu esta música para uma de suas mulheres, e não falou nada disso para ninguém. Até meu corretor de texto do Word quis corrigi-la. Imagina! Chico brincou com as palavras mais uma vez. A letra permite que você use as palavras nos dois contextos. Qualquer uma que se usar dará sentido: a saudação e a musa.
Esta apresentação, das mais memoráveis do acervo da nossa MPB, foi no IV Festival da Record de 1968. Chico de paletó listrado ladeado pelos competentes “meninos” do MPB-4, quem toca violão ao lado é Toquinho. Chico faturou o terceiro lugar. Ahhhhhh, infelizmente eu não pude estar lá.

BENVINDA
(Chico Buarque de Hollanda - 1968)

Dono do abandono e da tristeza
Comunico oficialmente
Que há lugar na minha mesa
Pode ser que você venha
Por mero favor
Ou venha coberta de amor
Seja lá como for
Venha sorrindo, ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que o luar está chamando
Que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho

Cheio de anseios e esperança
Comunico a toda a gente
Que há lugar na minha dança
Pode ser que você venha
Morar por aqui
Ou venha pra se despedir
Não faz mal
Pode vir até mentindo, ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que o meu pinho está chorando
Que o meu samba está pedindo
Que eu estou sozinho

Venha iluminar meu quarto escuro
Venha entrando como o ar puro
Todo novo da manhã
Venha minha estrela madrugada
Venha minha namorada
Venha amada
Venha urgente
Venha irmã
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Que essa aurora está custando
Que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho

Certo de estar perto da alegria
Comunico finalmente
Que há lugar na poesia
Pode ser que você tenha
Um carinho para dar
Ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar
Que é tempo ainda, ai
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Ah, que bom que você veio
Que você chegou tão linda
Eu não cantei em vão
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
Benvinda
No meu coração.


@publicado por Antonio

terça-feira, 4 de maio de 2010

Extinguere


“Depois de te perder. Te encontro, com certeza. Talvez num tempo da delicadeza. Onde não diremos nada. Nada aconteceu. E apenas seguirei, como um encantado ao lado teu.” (Chico Buarque)
Tudo o que destruímos não volta mais. Já pensaram nisso? As flores, os bichos, a floresta, as matas, os rios. Pois é, milhares de outras espécies raras ou não raras, hoje correm risco de desaparecer; e na grande maioria tudo pelo descuido e falta de zelo do próprio homem com o meio ambiente. Tudo que se extinguir da face da terra ficará somente na nossa lembrança, como num álbum de retrato amarelo e empoeirado. Passarão mil anos da nossa existência, sentiremos necessidade de alguma forma de tudo aquilo que era essencial ao equilíbrio das forças que mantém nosso planeta em pé; e agora não volta mais, pois não demos a eles a devida importância quando ainda viviam por aqui. Assim, ficarão extintos para sempre das nossas vidas. E nossas vidas mais fragilizadas do que nunca.

O cientista Carlos Nobre da Academia Brasileira da Ciência na sua brilhante palestra “Ainda é tempo”, falou sobre as questões ambientais, a Era Antropoceno, as mudanças climáticas e o papel do homem na preservação do planeta. Diante de tudo que expôs, com muita propriedade, diga-se de passagem, algo me chocou. Sobre a inevitabilidade da extinção de muitas espécies da fauna e flora; disse que três espécies desaparecem do planeta a cada hora. Do latim extinguere, não tinha me atentado para a força da palavra extinguir; que também quer dizer eliminar da existência. Nobre foi claro, quando as espécies são extintas, não haverá mais meios de reproduzi-las como antes, por modo algum. Elas simplesmente acabam para sempre, desaparecem. Aí, eu complemento que somente Deus, na Sua plenitude e grandeza, poderá trazer de volta aquilo que o homem não ajudou - na forma mais justa do uso dos recursos naturais – a preservar direta ou indiretamente, em detrimento às suas ambições e egoísmo sem trégua. Fiquei pensativo com esta conclusão e me voltei para as coisas que também nascem e devem ser cultivadas dentro de nós. Falo é claro, do amor.

Todas as vezes que alguém que amamos se vai, com o tempo, o amor ou o pouco que restou dele, vai se extinguindo dentro de nós, e todos os nossos sentidos e direções vão caminhando, fluindo para que ele nunca mais reine ali; vai desaparecer como um raio, um nevoeiro que se dissipa mar adentro. Matamos aquilo que não é conservado, cultivado e preservado. Como acontece na natureza, nunca mais aquele amor que não cuidamos será reproduzido dentro de nós. No coração há que se ter o cultivo, a preservação, do amor de quem dá e daquele que o recebe. Outros amores poderão nascer quando nova semente for lançada, mas aquele antigo e sem cuidado entrará em processo de extinção, e mais cedo ou mais tarde acabará. Isso quer dizer que, nunca mais seremos o mesmo para aquela pessoa e ela para nós. Também ficará como num álbum de retratos, somente recordações.

Chico Buarque, ao escrever a letra da canção “Todo Sentimento” —1987, revela um amor que se ausenta, que se propõe perder-se para dar um tempo de se reconstruir e renascer; como se o amor por aquela pessoa pudesse ressuscitar num outro tempo, aquele do momento da delicadeza. “Um tempo que refaz o que desfez / Que recolhe todo o sentimento / E bota no corpo uma outra vez”. Chico é soberbo em tudo que escreve.

Em outra de sua canção “Futuros Amantes” — 1993, o amor é colocado como um sentimento que não se apropria do ser, mas uma partícula solta no universo: sem tempo, sem espaço, sem pressa de acontecer. O amor numa visão arquétipa e sem fim. Um tesouro perdido, onde futuras gerações encontrarão e tentarão decifrar seus códigos; assim como hoje arqueólogos preservam ruínas de antigas cidades, tentando entender a origem da humanidade. Na letra de Chico, o Rio de Janeiro é uma cidade engolida pelas águas do mar, depois de uma grande catástrofe que devastou toda terra e seus habitantes. Os povos daquela nova civilização vão em busca da cidade perdida e seus mistérios, no fundo do mar. Encontram fragmentos de cartas e poemas (de amor). Ao descrever este amor — já que amores serão sempre amáveis —, ele sugere que mesmo as futuras gerações mais evoluídas poderão se amar com um amor que ele deixou para sua amada, um velho amor. Como assim dizer, o amor não morre, ele é guardado. Depois de encontrado se instala em outras pessoas. Mesmo que para isso passem milênios, milênios.

Na poesia, na literatura, nas letras das canções tudo é permitido “viajar”, ou como falamos em arquitetura: no papel se aceita tudo. Assim como o amor que se guarda por milênios para florescer em outro ser, ou aquele que é conservado em formol para se reconstruir no tempo da delicadeza. Tudo é poético e aceitável, mas o que vejo aí é, na verdade, a extinção do amor que se esfacelou por desmazelo. Não há como juntar mais os cacos ou ressurgir num futuro, sem ressentimentos. Se aquilo era o aconchego, admiração, o colo quente, a joia rara, a flor mais bela que cresceu dentro de nós, como deixar que se extinga assim?

Como já disse, um novo amor poderá nascer quando assim esvaziarmos o coração e permitimos; mas aquele velho, bem, este já morreu e não irá renascer com a luz de uma nova manhã. Às vezes, por uma simples palavra que se lança num instante de tempestade e desatino, tudo pode virar ruínas e colocar o amor na fogueira do tempo. Nunca mais sentiremos o cheiro e o perfume daquele que amávamos; olhares com admiração não farão mais gentilezas; não esperaremos mais por aquela pessoa com um coração batendo a mil por hora. Isso não existirá mais. Aprenderemos, sim! Pois, algo de bom vai ser extraído daquelas cinzas.

Aprenderemos com o passado, a conservar melhor aquele novo amor que iremos cruzar pelo caminho; conservar para que à mesa da alma nunca falte o alimento essencial: o amor. Para que num novo encontro, o amor seja conservado, cultivado e preservado, pois definitivamente aprendemos a dar importância só quando já não temos mais.

Talvez Carlos Nobre, cientista, não tenha pensado em extinção por este lado, mas eu pensei — olhando para dentro do homem. Digo também que existe a mesma gravidade da inevitabilidade da extinção a que se referiu o cientista, pois em ambos os lados há a presença dele (homem) como agente transformador de um ambiente: na alma e fora dela. Quando ele não preserva às espécies do ambiente onde vive, terá o mesmo descuido com relação também ao amor, no ambiente onde deveria reinar.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2010.