BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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segunda-feira, 24 de junho de 2019

O diário (atualizado) de Bridget Jones


Na virada do milênio, muitas pessoas esperavam por uma grande catástrofe mundial. Outros mais conspiradores e apocalípticos, o fim dos tempos. Os celulares (ainda sem internet) ficaram mais lentos. Ligações eram impossíveis de se completar na noite de 1999 para 2000. Eu estava na praia com amigos e a única coisa que me lembro, naquela noite, foi que, na minha cidade uma grande tempestade alagou uma das principais vias, um córrego transbordou e muitas pessoas ficaram ilhadas. Fora isso, parecia uma passagem de um ano para o outro, como se deita e se levanta. Nada além de champanhes e cervejas para comemorar.

O tempo galopou. Já estamos em 2019. Lá se foram 20 anos do bug do milênio que não houve. Nada parece ter acontecido de especial, não é? Mas não se engane, algo aconteceu, sim. Não foi nenhuma catástrofe, terremoto, tsunami, cataclisma, ou outro fenômeno na natureza que mudou nossas vidas. Não tivemos guerras entre nações. O que avançou, de forma galopante, foi algo que parecia inofensivo, à primeira vista. O advento e crescimento da internet, e suas ramificações, mudaram muito, sim, nossas vidas. Bridget Jones, por exemplo.

Fui ver O Diário de Bridget Jones no cinema, em 2001. Nada a acrescentar naquela comédia romântica, onde a protagonista (Renée Zellweger) era uma atrapalhada e insegura balzaquiana querendo encontrar seu grande amor — sem perfil no Tinder. Saímos do cinema e fomos beber chope sem comentar nada sobre o filme. (À parte, a trilha sonora, que já virou favorita na minha playlist do Spotify.)

Em 2001, aquela figura feminina, britânica (ainda como a deixamos em 1999), não era nada diferente do que se via aqui, nos trópicos. Bridget era a perfeita caricatura daquela mulher insegura que tentava se firmar num romance, já com o peso dos seus 33 anos anos, se sentindo gorda e velha demais para a maternidade e o amor. Ela queria algo que fosse durável, não só sentir, mas ouvir palavras, porque era insegura demais para olhares e gestos. Era uma eterna romântica, vivendo entre dois amores platônicos. E quando eles se manifestaram, ela se perguntou: — Será comigo?

Ao que surte, ela também não precisava de coisas materiais. Ela era uma jovem jornalista rechonchudinha que havia se emancipado, morando num apartamento de fazer inveja a qualquer um, abrindo mão do aconchego da casa dos pais. Ela queria se sentir uma mulher de verdade, emancipada e livre. Quando se recolhia, vinha o vazio da tv ligada (sem atenção), o cigarro e ao fundo All by myself. E nada mais casual que uma funcionária se interessar pelo seu chefe, embora ele a visse só como mais uma mulher que ele não levou para cama, ainda.

Bridget não queria sexo, mas o amor, o homem perfeito e para sempre. Nada piegas àqueles anos, porque era disso que nutriam os corações: amor e o encontro da felicidade. Com todo mundo achando a coisa mais normal do mundo e uma história como de muitas outras garotas da época. — Bridget Jones é minha história de vida. Muitas devem ter pensado nisso. Mas e hoje, como seria uma história de Bridget Jones? Seu estereótipo estaria ultrapassado?

A Bridget Jones, 30 anos de idade, hoje, não teria diário. Ela tem mesmo um stories no Instagram alimentado diariamente com fotos dos seus melhores momentos. Nada de lamúrias, reclamações de estar só. A vida tem que ser mostrada como a vislumbramos, com fotos filtradas em posições que demonstrem um corpo exuberante. Mesmo que tudo esteja dando errado (indo para outro caminho), o importante é a foto na praia onde só mostrem os pés e o mar ao fundo com uma frase de autoajuda para ilustrar o momento. O que importa é se ver como inspiração, curtida ou mesmo invejada por seguidores.

E como se repetem por aí "você precisa se amar". O verbo amar é algo para si e não para repartir com alguém (com Daniel ou Mark). O psicanalista Gikovate (1943-2016) discordava disso. Ele dizia que amar só se conjuga quando há outra pessoa na sua frente, o que se sente por alguém, e intransitivo na raiz. Ninguém é capaz de amar a si próprio, embora já vimos muitas notícias de pessoas que, recentemente, tenham se casado consigo mesma. Uma coisa de endoidecer e cada vez mais comum neste século.

Quando se ama necessariamente se ama alguém. Amar "a si próprio" é só a elevação da autoestima a um estado de prazer e completude. Bridget Jones de 2019 é uma solteirona que não se importa com a condenação do destino: solteirona. Ela olha para os lados e as amigas estão na mesma situação. Olha para outro e vê homens imaturos com 40 anos, morando com os pais, quando não muito, homens de geleia e sem objetivos. Então, ela já não se incomoda mais com nada. Seu WhatsApp bomba a toda hora com amigas mandando nudes e piadas de relacionamentos.

Indo mais para o extremismo, há aquelas que encontraram refúgio no feminismo (fincou raiz neste século). Eis um lugar seguro para se justificar: achar o mundo masculino desnecessário, porque todos os homens mentem; todos os homens são machistas; todos os homens não prestam. Então, é melhor ficar só e ter uma relação fortuita para não enferrujar.

O mundo moderno, visto pela tela de um smartphone, criou a desculpa para o vexame. Ninguém se sente mais inseguro quando se tem uma resposta adequada no Google para suas questões e quedas. Junte-se a isso as inspirações, como, por exemplo, numa cidade do Canadá uma jovem que decidiu viajar o mundo com 20 dólares. Viramos — e Bridget, consequentemente — refém da nossa própria desordem emocional e uma vida cada vez mais virtual no modo de se partilhar. Onde os afetos são substituídos por pets, barras de chocolates e curtidas. A dor, em total controle, nos mantém num estado de coma. Enquanto as filas aumentam nos consultórios de psicanálise.

Quando, ainda no século passado, todos pareciam caminhar para o mesmo lado, porque era evidente e óbvia a vida; hoje, vislumbram e experimentam sentidos antagônicos, opostos, numa sociedade cada vez mais verificada por pautas e discussões em redes sociais. Com o surgimento de diversos outros comportamentos que pareciam superados desde que os sapiens habitaram o planeta, há 70 mil anos. A natureza humana, a biologia e as formas mais tradicionais de comportamento e vida já não servem mais. É preciso lacrar, quebrando regras e paradoxos; é justificável enfrentar o protagonismo para se sentir mais inserido.

Todo dia é um enfrentamento em desconstrução às narrativas que perfuram à lógica. E como já disse alguém por aí: a internet deu voz ao imbecil.

A história de Bridget Jones ainda teve outras duas sequências. Uma em 2004 e outra mais recente em 2016, quando nossa frívola heroína já está com 43 anos e ainda solteira. A acrescentar, uma cena me chamou atenção nesse — espero — último episódio. Bridget ao descobrir que está grávida, sai à procura do pai. Um novo affair ou sua eterna paixão Mark Darcy (Colin Firth)? Quem será o pai da criança?

Na cena que sua bolsa se rompe, Mark a leva à um hospital carregando-a, parte do trecho, no colo. No caminho, eles têm que passar por uma passeata feminista. Nesse ponto, a história da solteirona se encontra (e cruza) com a de uma nova geração de mulheres. Essas que acham homens desnecessários e por isso protagonizam manifestações, desafiando velhos estereótipos e de culto à beleza. É melhor parar por aqui. Bridget não cabe mais nesse mundo.

Um mundo cada vez mais virtual, idiota e limpinho. Onde as pessoas estão preocupadas com canudinhos plástico e alguém inventou um pegador de pizza para não ter que sujar suas mãos. E eu nem falei dos anos de 1980. Quanta saudade...

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / junho de 2019

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Além das montanhas

(Comecei um novo texto sobre o bem e o mal, mas como aquele comediante Costinha, parei o causo no meio para contar outro que me pegou mais inspirado. Depois eu volto.)

Eu ainda subia em árvores quando estreou nos cinemas o filme Horizonte Perdido” (muitos anos já se passaram), e, como muitos outros, só fui ver tempos depois, quando adquiri grandeza, entendimento e gosto apurado. O filme é homônimo do livro de 1933, do britânico James Hilton. Acabei de ler o livro, mas o filme já  havia me trazido antes perguntas (algumas sem respostas); tudo que me levou numa viagem enigmática a um lugar distante e perdido nas montanhas, ao tempero de belas canções de Burt Bacharach. Lua azul (Karakal).

(O livro tem uma narrativa mais detalhada e um final diferente do filme. As minhas questões, porém, são as que o filme me deixou.)

Três anos atrás, quando vasculhava uns filmes completos no YouTube (esses de domínio público), deparei com o Horizonte Perdido. Vi as primeiras cenas, sem saber do que se tratava, e de cara já gostei da música. Baixei o filme, com uma qualidade ruim, diga-se de passagem, mas assisti atento e emocionado com sua mensagem sutil; depois a contribuição das belezas de Olivia Hussey (Romeu e Julieta) e Liv Ullmann. Há algo surpreendente. E uma pergunta incomoda ao espectador: foi sonho ou realidade?

Depois da queda do avião, um grupo de cinco pessoas (no livro são quatro) fica perdido nas montanhas nevadas do Himalaia. Ali, longe da civilização, Conway e seus companheiros estão entregues à sorte. Mas, antes que pudesse bater o desespero, são surpreendidos por uma expedição que passava (ocasionalmente?) por ali. Depois de lhes darem alento, aqueles andarilhos oferecem agasalhos e sapatos adequados para a neve. Mais do que isso, aquele guia, num gesto acolhedor, também lhes oferece abrigo num mosteiro, muito além das montanhas. (Eles não sabiam o que encontrariam.) 

Horas e horas de longas caminhadas e vento forte, eles chegam. Ao avistarem aquela paisagem de floresta muito verde e construções como uma vila medieval — ao avesso de tudo do outro lado da montanha —, percebem que estão num lugar paradisíaco, onde a água cristalina jorra das colinas, o clima é ameno e a vida é lenta como será longa.

Shangri-la era um paraíso, de fato. Naquele mosteiro, num canto esquecido do planeta, iriam perceber uma comunidade apaziguada sem tristeza, roubos, mentiras, perseguições, corrupção, fortunas e muito menos comunicação com a velha civilização — como depois descreveu o monge Tchang. Seria possível aquela vida isolada de tudo?

Mas eu enxerguei mais do que isso no filme. Aquela descrição de paraíso, incrustado no meio das colinas nevadas, remeteu à um vácuo, um fio atando a vida terrena à morte — um universo paralelo. Aquele instante que a vida se esfacela, com o desvendar do outro lado (da montanha) e a opção de viver o eterno ou o risco de voltar e morrer (definitivamente) nas avalanches das cordilheiras e de outras doenças. Shangri-la parece um caminho sem volta.

Richard Conway (Peter Finch), como os demais, ia percebendo aos poucos como Shangri-la era agora sua última fronteira. A dúvida que atormenta, do desejo de voltar à civilização, só revela a vida viciada de mentiras, violência e de abandono que não conseguimos nos libertar. (Para onde vamos não há volta.) Parece que não  fomos programados e não suportamos uma vida em paz, sem desejos, exuberância e o poder do dinheiro. Aquela vida sem desafios, guerras diárias num tempo que não passa de Shangri-la, anunciava uma tediosa jornada. Cadê as notícias ruins?

Assim penso que seja o outro lado da vida (da montanha) — parece o que se propõe o romance. Quando atravessamos, não olhamos para frente e diante de quem estamos, mas olhamos para trás e tudo que deixamos na vida interrompida; achando que podíamos ter vivido mais, ter tido mais, ter viajado mais, sonhado mais. A angústia da não aceitação, que não se tem mais aquele corpo, do outro lado, mesmo sabendo que lá o tempo não passa e não precisamos juntar riquezas como forma de sobreviver. Demoramos a entender que a alma se alimenta de outras coisas.

Já caminhando para o final, Conway é pressionado por seu irmão (ele se apaixonou pela "jovem" Maria) a deixar Shangri-la. Entre a cruz e a espada, ele decide, por fim, partir, deixando aquele sonho que  nunca imaginou ser tão real; e depois esquecer sua paixão por Catherine, a professora que conheceu em Shangri-la. Ele estava mesmo decidido a voltar à realidade da civilização, talvez porque duvidava que tudo o que vivia ali era mesmo verdade. Ao vê-lo partir, o velho Tchang, num ar de passividade e confiança, diz assertivo: "ele vai voltar".

Na caminhada, a neve, o vento varrendo e a avalanche vêm com crueldade, e aquele pequeno grupo se vê em risco. A perder toda pureza do ar e de todas as maravilhas de Shangri-la, Maria envelhece no caminho e morre de fraqueza. Ao vê-la morrer, seu irmão se joga num desfiladeiro e Conway, dias depois, é resgatado, despertando numa cama de um hospital de campanha. Ele teve alucinações falando de um lugar chamado Shangri-la, disse o médico. 

A morte talvez seja mesmo essa passagem, como acreditam algumas pessoas. Uma travessia desse para o outro lado da montanha, como um mundo em paralelo no meio, onde o tempo não passa e a volta é quase impossível. Mas a pergunta que fica sobre o final, quando Conway desperta do seu coma: foi realidade ou sonho? Não tem como saber o que se passou. Conway, então, foge do hospital e sobe as montanhas de neve novamente tentando encontrar o caminho que o leve à Shangri-la, onde está a vida que ele agora quer viver, eterna e com a mulher que amou.

Depois desse "the end", fiquei entalado me perguntando sobre aquele desfecho e até onde nossos sonhos podem nos levar. Toda vez que ouço notícia que um avião desapareceu na sua rota, penso que foi resgatado a um horizonte perdido; num mundo paralelo, onde a vida é calma e sob uma lua azul. Não houve morte, mas resgate. Uma verdadeira Shangri-la, onde o que menos importa é o tempo passar.
 

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2016
   

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A rebentação

Se procurarmos nos fóruns de discussão na rede de computadores, iremos encontrar várias interpretações para o mesmo assunto, onde para você (e para mim) só tem uma resposta, uma convicção e afirmação. Confrontaremos com inúmeras discordâncias e pontos de vistas, porque cada um enxergará sob seu viés. O que nos faz refletir mais.

Basta recorrer a uma análise simples de qualquer obra literária ou filme, verá que cada um tem algo diferente a dizer. Ou aquilo que mais lhe chamou atenção. Atentamos mais aos capítulos e passagens que nos aflige diretamente, porque o natural do subconsciente é registrar, tão somente, aquilo que nossa alma mais necessita se alimentar naquele instante. De uma forma bem simplista e clara.

Às vezes, os livros e filmes passam por nós e anos mais tarde, aquela cena ainda permanece tatuada em nossa memória. Uma hora irá desflorar, e iremos entender o porquê; e tudo se fechará, como uma peça que faltava naquele pensamento nebuloso e confuso.

No filme “Náufrago” de 2001 — mais uma grande obra desenhada por Tom Hanks — iremos nos deparar com várias mensagens. Cada um irá contar aquilo que mais lhe afetou.

A trama narra a história de um executivo de uma empresa de entregas — FedEx —, que era uma espécie de workaholic e pouca importância dava à família, às pessoas e ao convívio social. Sua vida era o trabalho e só. Depois da pane no avião onde viajava, ele se torna o único sobrevivente da queda e vai parar numa ilha, isolada num canto qualquer do planeta. O restante da tripulação morre e ele fica preso a esse mundo pequeno, desabitado e sem vida aparente. O que é vida afinal?

Ali desenvolve habilidades manuais e primitivas para sobreviver a sua diminuta e solitária vida. Suas necessidades agora se baseiam em habitar, se proteger das intempéries, se alimentar, e assim como um homem das cavernas, “descobrir” o fogo, atritando alguns gravetos.

O dilema de Chuck Noland, papel de Tom Hanks, vai além do fisiológico e do subsistente; ele queria sair daquela vida limitada e encontrar novamente sua civilização; o convívio das pessoas, a cidade barulhenta, o trabalho, a família, sua miséria cotidiana... Sobreviver já não era sua sorte. A solidão era cruel e uma companheira incômoda; o que fez de uma simples bola de voleibol seu alter ego, o amigo inseparável com quem conversava muitas vezes e por isso passou a chamá-la de “Sr. Wilson”. Uma forma de ouvir seu interior.

Mas qual é o ponto do filme?

Para mim, está condensado no desafio em construir uma embarcação que pudesse alcançar o alto-mar, a sua salvação. Malgrado, ali havia um busílis não calculado por ele; seu estorvo era a rebentação que quebrava alta e distante da praia; ultrapassar aquelas altas ondas, que sempre o devolvia ao ponto de partida, à praia da sua ilha deserta. Ele tentava e o mar o arremessava de volta. Aquela rebentação era a barreira que o mantinha preso na sua angústia, sua tragédia maior, no seu mundinho defectível e solitário; sair daquela melancolia que o aprisionava por 04 anos se tornava cada vez mais difícil.

Passados aqueles anos, experiente e conhecedor do ambiente que agora vivia, ele pensou: era preciso mais do que construir uma embarcação; era preciso estudar e entender os ventos, as marés, as estações do ano; e num momento único e derradeiro haveria uma chance de quebrar as ondas gigantes. Antes teria de construir uma embarcação segura, que pudesse levá-lo de volta à vida. Em mar aberto, os bons ventos o levariam para longe e assim ser alcançado por uma mão salvadora, em águas brandas. Lançando-se ao mar aberto, como uma vida longa e ampla, a possibilidade de encontrar a salvação era maior. Ele só tinha que vencer aquela rebentação.

Tudo que traçou deu certo, ele venceu as ondas. A vida já não era mais aquela miserável ilha. Ele estava pronto para ser resgatado, as correntes da prisão foram rompidas; e ele agora navegava em mar aberto e calmo, até ser resgatado por um navio cargueiro. E tudo nele se transforma a partir desse ponto, dessa passagem.

Numa situação análoga, a vida tem feito seres humanos presos em ilhas desertas que não conseguem vencer a rebentação, e sair para mar aberto; por medo, por covardia e em muitas vezes por ignorância vivem como eternos aprendizes de si. Aquele ser conforta-se que o mundo é uma ilha mesmo e aqueles que o quiserem, que venham até ele. Alguém se habilita?

Dentro dos trens de metrô onde viajei pela Europa, era esta ilha de gente que se via; em comunicação única e exclusivamente com seu iphone. Rindo solitariamente das fotos que compartilhavam ou das mensagens que abriam; sempre com ninguém presente, como um ser distante e ausente.

Numa conversa de botequim — aprecio e aprendo muito! — falávamos sobre uma mulher que, à luz dos 70 anos, vivia em sua ilha deserta e desabitada. Qualquer convívio fora do seu mundo revelava o seu lado amargo, sombrio, agressivo, infantil, histérico, com proclamo de vítima social e não aceita por ninguém — sem caráter social. Pensei: com a vida quase chegando ao fim e ela ainda não aprendeu? E não aprendeu mesmo.

É premissa, para viver em sociedade, ser cortês, ter paz de espírito, ter sensatez, bom humor, aceitar brincadeiras e muitas vezes não dizer o que pensa sobre tudo que vem à cabeça. O que não é o caso dessa senhora; criança mimada, que o “mundo não quer compreender”, e com ele não aprendeu com seus tropeços e quedas. Algum momento da vida a tornou assim? Creio que sim: uma fala, um gesto de alguém a fez viver na defensiva e ser intolerante aos outros, sem percepção de si. Com longínqua idade para aceitar a transformação, ela não consegue e já não quer mais construir sua embarcação; romper a rebentação que aprisiona em sua ilha egocêntrica. Mundo pequeno e cruel. Quem irá visitá-la na sua melancolia? Comentamos e apontamos, mas, por resignação, acabamos sentindo pena.

O mar da idade, quando se quer alcançar (mesmo aos 70 anos), é aberto e visto num horizonte de paz. Foi uma luta do barco com a rebentação; ou dos braços cansados nadando sobre revolta maré. Vencer as ondas! Almejar pelo mundo civilizado e social; esperar por mãos afáveis, navegar sereno na embarcação que o vento já conduz sem medo; por fim, encontrar terras habitadas por pessoas e não por iphones.

Mas quanto aos maremotos? Asseguro que minha embarcação é robusta para atravessar. Não haverá novo naufrágio, não retornarei à ilha deserta de mim — all by milself. Não comerei o pão que o diabo deixou amassado, porque simplesmente não quero mais tal condenação. A rebentação já passou, e o maior triunfo é encontrar um porto seguro para viver em terra firme e civilizada.

Cast away — o título em inglês de “Náufrago”. Tudo termina com o personagem parado num cruzamento de duas estradas, num lugar também deserto e incerto — sem setas. A escolha agora é do caminho, porque qualquer seja o escolhido, ele estará lá na sublimação, de corpo e agora também com a alma. Velas ao vento.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pão com manteiga


Um dos atores, hollywoodiano e contemporâneo, dos mais talentosos é Tom Hanks. Nos filmes em que atua, não me perco em ler a crítica antes; sento para ver, já sabendo que vai me prender do começo ao fim.

Faz um tempo, li uma entrevista que concedeu às páginas amarelas da semanária Veja. Ao ler o que pensa sobre a carreira, a fama, a vida e seu modo de escolher os filmes em que atua, extrapolei minha admiração, agora também é pela pessoa. Ele é um sujeito modesto, familiar, que até acha um despropósito os cachês que recebe pelos filmes; considera que há outras profissões que mereçam muito mais. Hoje, se dá ao luxo de escolher seus papéis só porque fará um bom personagem, sem se preocupar com o destino do filme; fugindo dos roteiros comerciais e dos mocinhos caricatos, enfadonhos, e assim justifica: “... nunca tive um tipo físico que me permitisse encarnar o Super-Homem”. No final da entrevista, ainda tece rasgados elogios ao diretor brasileiro Fernando Meireles pelo filme “Cidade de Deus”, e confessa: “vi o filme com atraso, há poucas semanas, e estou até agora atônito”.

Dentre os filmes, de sua brilhante carreira, cito o exuberante “Forrest Gump — o contador de histórias” — 1994. Nessa trilha, Hanks é Forrest, uma criatura ingênua, pura, ausente de picardia, cinismo, e com um QI abaixo da média das pessoas ditas normais. Toda sua inspiração e os conselhos que leva para vida são os da própria mãe, a quem sempre citava por suas frases: “A vida é como uma caixa de bombom, você nunca sabe o que vai encontrar”. Forrest narra as suas próprias histórias, ou, se coloca como centro das histórias de “coadjuvantes” ilustres como: Elvis Presley, John Lennon, John Kennedy e Richard Nixon. Sentado num ponto de ônibus, esperando uma condução que parece nunca chegar, Forrest fala e fala...

Da sua infância, vem o primeiro amor, digo, o único amor por Jenny. Uma menina que parece ser a única, além de sua mãe, que o vê como uma pessoa normal; e o aceita com seu jeito desengonçado, tentando andar dentro de um par de botas ortopédicas. Ao falar sobre Jenny e de como a conheceu dentro do ônibus escolar, Forrest enaltece: “Nós éramos como pão com manteiga...” — uma versão em português para peas and carrots. Na sua forma mais simplista e pueril, queria dizer: éramos inseparáveis, um não vivia sem o outro, unha e carne, corpo e alma... A versão dada em português foi o que deu grandeza na descrição do que era sua relação com Jenny.

Pão francês com manteiga é uma delícia; e a manteiga é sempre na medida: nem mais, nem menos. E fica mais gostoso passar nas duas abas do pão, depois dobramos e comemos uma aba por vez, com café e leite. A manteiga sem o pão é detestável, quase nenhuma utilidade, às vezes serve para untar forma de bolo; o pão sem a manteiga é sem gosto, incompleto. Não há valor, um sem o outro. São complementos. Assim, como dizer, arroz com feijão, na nossa culinária. Tudo é mais gostoso e saboroso quando estão juntos: manteiga no pão. O café colonial é farto, nos enche os olhos, mas nos perdemos em tantas variedades; já o pão com manteiga não comemos com os olhos, é o que temos para comer naquela hora, no dia-a-dia e nos saciamos também.

Assim, era na entrega, como Forrest vivia seu amor, que durou a vida toda — ou pelo menos até o final da trama —, sem cobrar de Jenny a reciprocidade. Era incondicional da sua parte. “Posso não ser inteligente, mas sei o que é amar...”, disse ele quando a pediu em casamento. Ele sabia o que estava dizendo, sobre as duas coisas. Após anos sem vê-la, ele a encontra numa vida mambembe, em más companhias e enfiada nas drogas. Mesmo assim, ela o reconhece e respeita, ao enxergar pela única fresta que restou da sua vida, o amor — o único que teve. O tempo poderia passar; o vento esvoaçar as cortinas da sala, bater as portas, mas o amor estava lá, guardadinho, prontinho para viver. Forrest amava como uma criança e agora ela sabia e desejava este amor.

O espírito de Forrest, nesta parca analogia, nos trás à reflexão: onde estão nossos verdadeiros valores? Na fartura ou na simplicidade de viver o dia-a-dia? E como ansiamos, muitas vezes, combinações mais caras, ou com maior valia — pela abundância. Quando, um simples pão com manteiga, também mata a fome — a fome de amor. Talvez, estejamos errando aí, quando buscamos a perfeição nas relações, ambicionando riquezas que as traças comerão um dia. Na gíria futebolística chama-se “jogar o arroz com feijão”; onde se ganha o jogo da vida, sem muitas ambições e jogadas de mestre. Um não é melhor que o outro e o placar a favor é sempre com score baixo. Quando os dois jogam juntos, o amor sempre vencerá. Relacionamentos sem ciúmes, sem intrigas e cobranças, caminhando num mesmo sentido, são fadados a ser por toda a vida. O universo conspira.

Talvez, se forçarmos a memória, encontraremos casais que vivem o “pão com manteiga” — dá para contar nos dedos —, caminhando juntos e construindo tijolo com tijolo, um lar, uma família... Nos seus horizontes projetados, a grande ambição é sempre manter acesa a chama do amor; regando o jardim da vida que os uniu, onde cada um segura em uma das alças do regador, enquanto espargem água sobre as sementes. Tudo num “pão com manteiga”, simples; e como Forrest e Jenny, inseparáveis.

Tom Hanks escolheu fazer Forrest, pelos mesmos critérios que sempre adotou: um personagem marcante; um personagem que deixou plantado em nossas mentes, de QI elevado, a confirmação que para amar só precisamos ter um amor e pureza dentro de si. O filme, ganhou naquele ano 06 Oscar dos 13 concorridos; inclusive o de melhor filme e melhor ator, para Tom Hanks.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2011.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A noite que não terminou

Ao lado do grupo MPB-4, Chico Buarque defende "Roda Viva" na final do festival de 1967, exibido pela TV Record; a canção ficou em terceiro lugar

Estreia amanhã (30/07) em circuito nacional - menos nas cidades interioranas como a minha - o filme "Uma noite em 67". Reproduzo abaixo trecho da matéria que o jornal Folha de São Paulo trás hoje em seu Caderno Ilustrada, com comentários sobre o filme. De fato, é um filme para ver, rever e ter em DVD; para guardar como documentário. Vale a pena. Este Festival foi o divisor de águas e marcou o início de uma nova era na nossa música popular. De lá para cá não fizemos mais tantos artistas de alto nível assim. Uma pena.

(Folha de São Paulo 29/07/2010)
Longa refaz história da MPB a partir da grande final do festival de 1967; arquivos e entrevistas revelam bastidores e acertam contas com o passado.
ANA PAULA SOUSA
MARCUS PRETO
DE SÃO PAULO

É impossível esquecer aquela noite. Ao mesmo tempo, como é difícil recordá-la.
A final do 3º Festival da Música Popular Brasileira, exibida pela Record em 21 de outubro de 1967, ficou congelada na memória do público como um momento único.
Para seus protagonistas, porém, se foi alegria, foi também perturbação. É isso que revela, quatro décadas mais tarde, "Uma Noite em 67", documentário de Renato Terra e Ricardo Calil, crítico de cinema da Folha.
Por meio dos arquivos da TV Record e de depoimentos de quem estava lá, o filme revê um momento que iria se provar fundamental para a forma que assumiria, a partir dali, a música brasileira.
Há Chico Buarque ("Roda Viva"), Caetano Veloso ("Alegria, Alegria"), Gilberto Gil ("Domingo no Parque") e Roberto Carlos ("Maria, Carnaval e Cinzas") a defender suas canções. E há todos eles a rememorar aquela noite.
"Eu era um fantasma no palco", diz Gil, que caiu de cama, em pânico, horas antes da apresentação.

INTIMIDADE
É desses reencontros profundos com o passado que se constitui o filme. Fica claro que os diretores sabiam que muitos, como Caetano e Gil, tiveram suas falas sobre aquela noite banalizadas, tamanha a quantidade de entrevistas dadas a respeito.
Tinham também em mente que outros, como Chico e Roberto, dificilmente baixariam a guarda. "Era fundamental criar uma cumplicidade. Nós nos preparamos muitos e tentamos ser delicados, respeitosos", diz Calil.
Com isso, arrancaram de cada um momentos de graça, emoção e intimidade, como raras vezes se veem na tela.
"Ao ver o filme, assustei-me mais com suas revelações do que em me ver naquela agonia de não poder mostrar uma música", diz Sergio Ricardo que, impedido pelo público de cantar "Beto Bom de Bola", atirou a viola à plateia. O filme traz à luz a cena inteira, e não apenas a explosão. "Me sinto de alma lavada."
Há também um quê de acerto de contas no que sente Marília Medalha, que cantou, com Edu Lobo, "Ponteio", a grande vencedora da disputa de jovens gigantes.
"Fui espoliada após o festival, não só por pessoas da música, mas também por artistas do universo teatral", diz. "Com o AI-5 [1968], o negócio piorou muito. Num show com Vinicius [de Moraes], fui proibida de cantar "Ponteio". Não descobri se era por causa da música ou por saberem que tinha vínculos com presos políticos", diz.
A entrevista com Medalha, como dezenas de outras - entre elas as de Ferreira Gullar, Chico Anysio, Arnaldo Batista, Martinho da Vila-, ficou fora do corte final do filme. Estarão todos no DVD.
A opção de concentrar-se nas cinco primeiras classificadas faz com que cada canção seja vista de ponta a ponta. Por meio dessas imagens, o espectador não só conhece os maiores artistas da MPB quando jovens, como também visita os primórdios da TV. Ali, o cigarro em cena era tão natural quanto o jovem Chico, com 23 anos, apresentar-se de smoking.

Chico revela mágoa com fama de "velho"

Em depoimentos para o documentário "Uma Noite em 67", ícones da MPB revivem as marcas deixadas pelo festival
Edu Lobo liga Tropicália a "roupas diferentes"; Gil diz ter sido levado ao movimento por insistência de Caetano.
De imediato, o maior impacto do documentário "Uma Noite em 67" está nas imagens de acervo da TV Record -as sequências completas de Chico, Caetano, Gil, Mutantes, Roberto, Sérgio, Edu e Marília defendendo suas canções.
Mas, colocadas em contraponto ao material histórico, são as entrevistas feitas especialmente para o filme -recentes, portanto- as responsáveis pelas grandes revelações sobre os personagens.
"O tropicalismo foi a fase agônica da minha vida musical", conta Gil. Para fazer todos os rompimentos -musicais e até pessoais- necessários à criação do movimento precisou que Caetano o puxasse pelas mãos, ele diz.
Edu Lobo, por sua vez, deixa claro que, 43 anos depois, não mudou muito o modo como entende o tropicalismo. Para ele, toda a revolução liderada por Caetano e Gil a partir daquela noite "girou mais em torno da atitude no palco e das roupas diferentes do que da música".
As tais roupas que Edu cita, usadas sobretudo pelos Mutantes e pelos Beat Boys -as bandas de rock que acompanharam Gil e Caetano em seus números-, foram introduzidas nos festivais a partir daquele ano.
Era praxe, até ali, que artistas se apresentassem na TV vestindo smoking.
Revendo sua aparição naquela noite -de smoking-, Chico Buarque diz que, então, não sabia que aquelas mudanças nos figurinos aconteceriam. Ou melhor: sabia, mas tinha esquecido.
Entre risadas, conta que estava sob efeito de álcool quando Caetano lhe falara, tempos antes da primeira eliminatória, sobre a ideia das roupas. Por isso, não chegou a registrar a informação.
Mas o clima da entrevista sai da anedota quando o autor de "Roda Viva" revela ter se sentido "muito sozinho" naquele período.
Pelo contraste com a estética pop tropicalista, percebeu estar imediatamente identificado como "o velho", "o conservador" -tanto em música quanto em atitude.
"É duro ser chamado de velho, ainda mais quando você tem 23 anos", afirma Chico no filme.
Provocado pelos diretores, Caetano concorda. "Era natural que ele se sentisse assim." Até aquela noite, Chico mantinha o posto de unanimidade nacional e nunca havia encontrado qualquer restrição. Foi a primeira vez.
Na manhã do dia seguinte, nenhum deles seria o mesmo. Nem ele, nem o Brasil. (APS E MP)

Militante revê no filme sua "atuação" como fã

NINA LEMOS
COLUNISTA DA FOLHA
"Quando as pessoas vaiavam, estavam vaiando a ditadura, e não as músicas."
A jornalista e militante Rose Nogueira, 65, explica isso enquanto assiste a "Uma Noite em 67" pela primeira vez. Quer dizer, pela segunda, já que ela estava presente no festival onde foi lançado o Tropicalismo, Chico cantou "Roda Viva" e Sérgio Ricardo quebrou um violão.
Ela era uma das moças "de tiara no cabelo, que já vinha com uma peruca" que adoravam Sérgio Ricardo e, claro, achavam Chico Buarque lindo. Rose tinha 20 anos na época. E continua achando Chico "lindo e com uma capacidade de construir poesia como ninguém".
Na tal noite de 67, ela ficou na parte de trás do auditório. E, ao ver o filme, relembra de tudo. "Olha o Sérgio Ricardo pedindo calma. Lembro exatamente disso. E nessa hora em que ele jogou o violão, nossa, fiquei em choque."
Apesar de achar Sérgio Ricardo "um charme", Rose torcia para "Roda Viva". "Está vendo ali? Eu era uma daquelas moças cantando "roda mundo, roda pião"."
A jornalista torcia para Chico em todos os festivais. Mas até hoje se emociona com "Alegria, Alegria".
"Que coisa maravilhosa. Essa hora em que todo mundo grita "eu vou" é emocionante. As pessoas estavam dizendo que não iam desistir. E o Caetano estava lutando com a poesia."
Ela acha que nem Caetano (e nem ninguém no Brasil) fez músicas tão bonitas depois "porque a ditadura veio e acabou com tudo".
As músicas podem não ter melhorado na opinião de Rose. Mas a aparência... "O Caetano era horroroso. Foi melhorando com o tempo. Desculpe, Caetano, mas você hoje é mais bonito."
"O Caetano também foi preso?", pergunta a cozinheira da casa. "Todo mundo foi preso." Até Rose, que um ano depois foi detida e torturada no presídio Tiradentes, onde permaneceu por oito meses. "Depois desse festival tudo mudou."

Brasil se revela por inteiro nos bastidores do festival

Diretores captam um país entre as marcas da província e as antenas da metrópole
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

A última noite do Festival de Música Popular Brasileira de 1967 foi um desses raros momentos que condensam e catalisam as forças vivas de toda uma cultura.
Estavam ali não apenas artistas extraordinários em seu apogeu criativo, mas um caldeirão de elementos díspares numa rara e irrepetível sinergia: o berimbau e a guitarra elétrica, a poesia de vanguarda e o ti-ti-ti das revistas de fofoca, as marcas da província e as antenas da metrópole, o pop e a roça.
Diante desse evento singular, a virtude maior dos diretores Renato Terra e Ricardo Calil foi a de preservar uma certa modéstia e um escrupuloso respeito a todos os protagonistas e coadjuvantes da noite memorável.
O documentário busca transportar o espectador de hoje àquele ambiente sem intervir esteticamente, sem interpor interpretações políticas ou sociológicas, sem, em suma, "perfumar a flor", como diria o poeta João Cabral de Melo Neto.
Todos os depoentes são testemunhas presenciais e todos têm o que dizer. Por vezes ligeiramente contraditórios entre si, esses depoimentos ajudam a iluminar o acontecimento por vários ângulos e a construir os seus sentidos.
PROVÍNCIA X MUNDO
Mas o ponto mais forte do filme são as cenas de bastidores do festival, as entrevistas antes e depois das apresentações, em que transparece, nas perguntas dos repórteres e nas respostas dos artistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes, um alegre descompasso entre uma televisão familiar, provinciana, herdeira do rádio, e uma música revolucionária, sintonizada com o mundo.
Tudo ali diz muito sobre uma época: as roupas, os penteados, a gíria, o humor. O país se revela inteiro em cada fotograma.
Lamentou-se já a ausência de uma fala da cantora Marília Medalha, intérprete da vencedora "Ponteio". Outros testemunhos poderiam ser enriquecedores: de Nana Caymmi, Hermeto Pascoal, Rita Lee. A lista seria interminável, e o filme também.
Material não falta para outros documentários, para extras de DVD ou para uma série de TV, que talvez seja o destino mais adequado para esse tipo de documentário mais jornalístico do que propriamente cinematográfico.
Mas o filme "Uma Noite em 67", por sua força compacta e seu caráter de celebração, vai bem, muito bem na tela grande.

UMA NOITE EM 67
DIREÇÃO Ricardo Calil e Renato Terra
ONDE estreia amanhã no Frei Caneca Unibanco Arteplex, Espaço Unibanco Augusta e circuito
CLASSIFICAÇÃO livre
AVALIAÇÃO bom

Antonio - julho / 2010.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Passione


Em 2008, um crime chocou o país. Durante 04 dias um rapaz de classe média de 22 anos manteve em cativeiro e sobre a mira de um revolver outra jovem, Eloá Pimentel de 15 anos. Depois de várias tentativas de negociações, numa operação frustrada, a polícia resolveu estourar o cativeiro — sem querer julgar o modus operandi da ação —, no mesmo instante Lindemberg deu dois disparos em direção à Eloá; a quem tinha uma paixão platônica e por quem foi negada tal reciprocidade. Eloá faleceu depois no hospital e ele foi parar numa penitenciária onde ainda aguarda por julgamento.

O que havia de mal na vida e no passado daquele jovem atirador? Nada, ele era uma pessoa comum, descobrindo a vida, com seus sonhos, seus desafios e prazeres; mas, por trás daquele cenário de horror, havia sim um sentimento envolvido, algo maior que tudo que ele podia dominar dentro de si e por isso se deixou entorpecer. Quando cair em si, irá perceber que pôs fim também à sua própria vida.

Faz alguns dias outro crime aconteceu na minha cidade, pelos mesmos motivos: paixão. Um jovem de 25 anos matou e esfacelou a ex-namorada e seu algoz; dias depois, ao se entregar numa delegacia confessou friamente que primeiro havia matado o rapaz e depois a matou porque ela foi testemunha ocular e o motivo era ciúmes dela, de quem foi namorado. Tudo friamente.

Em ambos os casos, não havia motivo para tanta crueldade: tirar a vida de alguém. Ou havia? Difícil dizer não estando na pele, mas o desprezo foi determinante nestes casos; e depois a intolerância e não aceitação por derrotas. A justiça interpreta estes crimes como sendo passionais, hediondo, por motivação fútil. Não sou jurista para analisar os meandros que seguirão até o desfecho, mesmo porque a justiça dever ser fria e cautelosa.

Contudo, quero por em questão esse sentimento, muitas vezes doente, que é a paixão; e que para muitos há uma confusão com outro chamado Amor. Lindemberg não tinha amor por Eloá, senão não a teria matado. O que fez praticar aquele crime foi sua paixão obcecada e naquele momento não correspondida. A paixão muitas vezes é possessiva, não concede tréguas e não aceita o “não” como resposta. Aquilo que se sente não pode ser desprezado e pisoteado pelo outro. Penso que, o ato de matar o ser “amado” é um desejo (obscuro) também que junto com ele se vá o sentimento que o aprisiona.

Se procurarmos, iremos encontrar inúmeros casos análogos, de consequência também trágica. Na literatura e na dramaturgia essas histórias tidas como histórias de amor já foram contadas, como em Tristão e Isolda ou na celebre obra shakespeariana de Romeu e Julieta (1591/1595). Aquele drama, sugere que a morte daquele jovem casal foi porque o sentimento de um pelo outro era maior que todas as intrigas e diferenças familiares, e nem a morte os iria separar. Se houvesse o aceite das famílias e se casassem, criassem filhos, talvez compreendessem mais as condições do mundo e não iriam se matar quando um ou outro morresse por morte natural. Na verdade, eles responderam com a própria vida os “nãos” que ela os impôs. Quem de nós um dia já não pôs a ponta da língua em algum veneno da paixão? Eles beberam.

O que me chama atenção nessas tragédias passionais são seus personagens: sempre jovens. Na imaturidade não sabem lidar com as derrotas e decepções. Como já havia dito em outro texto, essa fase da vida é onde mais nos atiramos nos precipícios e mais nos permitimos arriscar. Numa outra tese, asseguro também que, quando ficamos mais velhos e maduros, nos voltamos mais para nosso interior: tomamos remédios para doenças invisíveis, nos precavemos mais por sair à noite ao relento, procuramos alimentos mais saudáveis para o corpo e deixamos outros vícios. Assim, também cuidamos mais dos nossos sentimentos e por isso nos apaixonamos menos, sofremos menos desse “mal” ou aprendemos mais com a vida, como queira. Procuramos viver relações mais maduras, onde o bem partilhado é um sentimento livre, sem pressa e sem cobrança; onde a maior discussão com quem nos relacionamos é sobre qual o melhor filme de Almodóvar ou o melhor poema de Drummond. Nada mais a se preocupar ou se questionar.

Amor e paixão — muitos escritores, filósofos, pensadores já deram suas explicações colocando cada coisa no seu lugar. Serei simplista no meu modo de ver, direi que um é água e outro vinho, e transformar uma coisa na outra é o grande mistério. Transformar a água da paixão no vinho bom do amor é o passo seguro que iremos dar para uma relação com caminhar feliz. Na verdade, a maioria das relações fica somente na água da paixão e seca por aí. Há um escritor que disse que a paixão é mistura de um amor de intensidade máxima com um enorme medo. Possessão, obsessão, ciúmes, descontrole, medo são ingredientes que não cabem na receita do amor; esses são os piores temperos de quem se apaixona; e por tudo isto irá sofrer. Ninguém sofre por amor; sofremos por medo. O amor nos quer seguro, confortável e aconchegante no seu colo; ele também requer paz e harmonia para se permitir.

No poema do português Fernando Pessoa, anotado agora na minha agenda, diz: “Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?” Os poetas falam melhor por nós.

Um exemplo concreto do que ouvi sobre o amor veio também numa forma simples de um homem casado que um dia me contou algo que guardei comigo. De maneira natural e sem qualquer problema conjugal ou familiar, disse: “... o único amor que acredito é do de um pai para um filho e vice-versa”. Explicou: “Quando um filho morre, jamais iremos a um orfanato adotar outro, ou vamos procurar nossa esposa para 'encomendar' outro em substituição aquele. Quando um filho morre nosso amor vai junto, ele vira saudade eterna...”. Fiquei com essa analogia por anos e aqui partilho com todos. De fato, essa é uma bela explicação de amor. Simples, mas verdadeira.

Na relação que se acaba, o difícil é “virar esta página” — como sugere quem está de fora. Nesta hora a palavra é serenidade. Este é o segredo para sairmos sem arranhões. Sempre quando alguém vem me pedir socorro, a primeira coisa que me vem é: serenidade. Só quem não tem não sabe a importância dessa palavra nos dias de hoje. Quem tem serenidade tem paz, esperança, paciência, e espera o amor... Tudo que precisamos para passar as tormentas. Temei, apanhei, cai e me ergui, por fim aprendi a contar até dez e ser sereno. Já contei até mil também, é bom ser assim, pois não brigamos mais com o mundo e com ninguém. As pessoas serenas são mais fáceis de você lidar e decidem melhor. São boas ouvintes e quando falam colocam as palavras no seu devido lugar. Aprenderam por terem o coração e a mente decidindo juntos; ele agora apaziguado bate no seu ritmo, no ritmo de Deus.

Da paixão, como conhecemos e como muitas vezes fomos tomados, nos reservamos agora o direito de viver e deixar viver; respirar seus aromas sem o entorpecimento da insensatez. E dela, somente as palavras doces sejam guardadas como numa linda história de amor: “Direis que aquela luz não é da manhã... ainda não amanheceu. Foi o rouxinol e não a cotovia que vos gritou no ouvido. De noite, canta pousado naquela romãzeira. Acredita meu amor, foi o rouxinol...” (*).

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2010.
(*) William Shakespeare – Romeo and Juliet – Ato III - Cena V

domingo, 2 de maio de 2010

Alice e o espelho


Fui ver Alice no País das Maravilhas do Tim Burton. Maravilha mesmo é o 3D do filme. Fantástico! Aí eu penso: como o cinema evoluiu com tanta tecnologia. Sempre fui vidrado por esta história. Alice era um livro da minha infância, depois veio o desenho de Walt Disney e isso ficou muito bem registrado na minha cabeça. Quando tinha 20 anos, escrevi um poema cujo título faz alusão à Alice e seu companheiro, o espelho. Na verdade, o espelho é seu eu, seu interior (alma) com quem ela fala e desabafa.

Alice e o Espelho

Alice dormiu
E o espelho se abriu
Esparramou no lençol
Uma doce lembrança
Um sonho de moça
E uma tempestade
Caiu lá fora
Então, ela se enfeitou
E penetrou no espelho
Um país em chamas
Um estranho mundo
Navios sem rumo
Um quadro negro
Nenhum amigo
Nem lua cheia
E ela sentiu

Alice saiu
E o espelho a seguiu
Na mobília do hall
A tola lembrança
O embriagado
Seu namorado
Que foi embora
Em vão, deixou o cobertor
E escreveu no espelho
Com um pouco de rouge
Seu nome e o dele
Depois um grito
Algumas lágrimas
E uma estrela
No céu, sozinha
Ela se viu

Alice sorriu
E espelho partiu
Em pedaços se fez
Num passado longínquo
A flor que fizera
De uma primavera
Brotou na aurora
Pois sim, ela se penteou
E falou ao espelho:
- não há no mundo
alguém mais linda.
E sua estrela
Que andava alhures
Voou de volta
Pra sua janela
E ela se abriu.

© Antônio / 1984

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Um Bocejo de Deus



O filme AVATAR — James Cameron (2009) — acumulou, até então, a maior bilheteria da história cinematográfica. Quiçá, o público não tenha se identificado tanto com mais um filme de ficção, pois o conteúdo explorado vai além dos efeitos especiais e figurinos. O que chama atenção no filme é extremismo a que chega a raça humana; com suas mazelas e explorações. A mensagem é passada sem metáforas, ficando bem clara ao público mais antenado. Em síntese, discorre sobre povos de uma galáxia que lutam para defender seu habitat e seu patrimônio da tirania do homem, aquele do planeta Terra. Este, por fim, só quer explorar e retirar do planeta invadido um minério raro unobtanium, que pode ser a chave para solucionar a crise energética da Terra. Bela teoria, se não tivesse um pouco de verdade em tudo, ainda mais por saber bem de quem estamos falando: nós, seres humanos.
Desde as viagens das Apollos — década de sessenta — uma pergunta sempre me perseguiu e creio que muitas outras pessoas: há vida além da terra onde pisam nossos pés? Na minha adolescência li o livro “Eram os Deuses Astronautas?” (1968) — Erich Von Däniken. Fiquei instigado quando vi na TV uma matéria sobre as teses defendidas pelo autor. Embora nunca ninguém tenha provado nada, mas aquilo em acompanhou durante muito tempo. Fiquei ávido que devorei o livro em dois dias. De onde viemos? Para onde vamos? Onde está Deus nesta história? No romance de Erich não há respostas concretas, somente perguntas e constatações.

A NASA (National Aeronautics and Space Administration) desde a sua fundação (1958), tem promovido avanços em suas pesquisas espaciais e seu mais recente desafio é a construção em conjunto com outros países, da Estação Espacial Internacional. Bem, os objetivos dessa corrida espacial como apregoam, com seus gastos exorbitantes, nunca ficou tão claro para mim e acho que para grande maioria. Querem o quê com isso? A mim só tem uma resposta: levar todo mundo para morar “lá em cima”. Elaborar um plano “B” para nossas pobres e miseráveis vidas.

Sempre quando via fotografias de Marte publicadas na imprensa ou na Internet, sentia um gosto amargo e frustrado, e agora sei o por quê. Nenhuma dessas fotos revela que há vida: gente, animais, cidades, florestas, assim como aqui. Até nosso planetinha tem vida, por que não há de ter em Marte? Sei, aí, já me disseram que há outras dimensões de matérias (vida), ou seja, muita coisa para minha cabeça entender. A última que li sobre o planeta foi: HÁ ÁGUA EM MARTE! Não queria só encontrar água, quero vida e de preferência melhor que a nossa. Gente que viva e respire amor às pessoas e ao planeta onde habita; quero uma saída para nós. Construir e morar numa nova estação em outra galáxia ou em outro planeta seria um sonho, uma obra de ficção. Imaginando assim: nós mudaríamos de “bairro” e começaríamos uma nova vida em outro lugar onde ninguém nos conhece. Sairíamos do nosso cortiço passando para uma cobertura duplex. Assim, os 6,5 bilhões de homenzinhos pegariam suas naves particulares com suas mudanças: cachorro, galinha e papagaio e iriam habitar em outra galáxia. Aqui não dá mais pé.

Para! Claro, são devaneios e utopias da minha cabeça. Como sair daqui? Como habitar em galáxias desconhecidas? Esqueçam e parem de sonhar comigo. Não, há outra saída. Temos que resolver tudo por aqui mesmo, no nosso chão. Podemos mudar sim! A condição humana; e começamos acabando com o egoísmo, a pobreza, arrogância, corrupção, a fome.

Sinto necessidade de dizer: o mundo anda muito estranho há tempos, digo, a raça humana anda mal. Corrupção, egoísmo, guerras, mais corrupção, desgovernos, drogas, lixos, desmatamentos, aquecimento global. Ufa! Há muita destruição na terra. Alguém tem que por um freio nisso. A natureza, sábia que é,  tem dado os sinais e mostrado que também não é nem um pouco boazinha conosco. Quando ouço falar em enchentes, terremotos, maremotos, tsunamis fico pensativo: está aí a natureza se manifestando, e quais são nossas verdadeiras culpas? As coisas têm acontecido de maneira sistêmica, e todos já começam a olhar as tragédias, sei lá, como uma chuva passageira de verão —  logo vai passar. Não lhe dão a importância que deveria, e nem querem imaginar o significado de tais acontecimentos. Para mim, penso que nada é por acaso.

Ponho os dois pés no chão e digo que não quero alimentar a vã esperança que a NASA irá nos levar para habitar em Pandora; e não haverá meios de chegarmos até lá, pois ficaremos “Perdidos no Espaço” — lembrando um filme da minha infância. Quero continuar a viver aqui e pensar um mundo melhor com esta gente mesmo, de carne e osso; uma gente com um pouco mais de humanidade e de alma.

Olhando para este mundo incrédulo e que sente prazer em se destruir, coloco: E se Deus de fato existe? E se Ele anda muito irritado conosco? Em menos de três meses a terra tremeu no Haiti, Chile, Turquia, México e agora na China. Cidades destruídas e populações dizimadas. Diante dessas tragédias — não tão corriqueiras em outros tempos — invoco o meu lado espiritual, me volto e concluo: Deus existe! E talvez esteja realmente cansado de nos dar chances e tempo para acordarmos; de erguermos tudo que botamos abaixo e começarmos tudo em Gênesis, no princípio. Contrário, então sentaremos e esperaremos que a NASA nos salve dessa como num verdadeiro filme de ficção.

Toda vez que uma placa tectônica se movimenta por quilômetros, para mim é como um bocejo de Deus. Ele, de fato, anda cansado de nós.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / abril de 2010.