BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A rua onde você morava


A cidade de Liverpool foi parar no centro do mundo quando aqueles quatro garotos — na época ainda não tão cabeludos — resolveram se juntar para compor e tocar suas músicas; e anos depois serem consagrados como a melhor banda de todos os tempos. Eles saíram de lá para serem eternos em nossas vidas, na minha inclusive. Os Beatles também retribuíram com amor à cidade tudo que Liverpool lhes proporcionou. Canções brotaram em seus discos e cultuaram pessoas e lugares que ninguém jamais imaginou existirem. Lugares e caminhos por onde andaram

John Lennon escreveu na letra da canção “In my life”: “há lugares dos quais vou me lembrar por toda a minha vida...”. Já “Eleanor Rigby”, composta por Paul, ganhou uma estátua em Liverpool. A dúvida é: aquela velha senhora solitária existiu ou foi mais uma ficção imaginada na cabeça de Paul? Aquela cidade ficou definitivamente marcada para sempre na vida dos quatro e depois em nós, que, apesar de nunca termos vividos lá, ficamos herdeiros desse saudosismo, das suas memórias. Eu ainda não a conheço, mas antes ir para minha casinha no campo, vou andar por lá...

Alameda Penny Lane é uma estreita rua de Liverpool, com pouco mais de 11 metros de largura e quase 800 de extensão; localizada no subúrbio da cidade, com comércio tipicamente local, misturado entre residências de tijolos à vista com janelões tipo “bay-window”. A magia é que Penny Lane se tornou a via pública mais famosa do mundo, pois nenhuma outra ganhou versos numa canção e ficou imortalizada nos quatro cantos do planeta. O que ela tem de especial? Nada, aparentemente, mas tem um sabor doce de apego, amor e de boas lembranças de um lugar. Foi lá que Paul McCartney bebeu da fonte e descreveu em seus versos o amor por sua terra natal. Paul extraiu dela sua essência, o sumo na rigidez do seu tapete de pedra: um barbeiro chamado Bioletti, um banqueiro, um bombeiro e uma enfermeira; todos vivendo embaixo de um céu azul suburbano — assim diz a canção de Paul. John Lennon contou depois que Penny Lane não é uma rua, sim um bairro distrital e lá morou numa rua chamada Newcastle Road. Depois concluiu: “só eu morei em Penny Lane”.

Como num museu a céu aberto, há muitas visitações hoje em Penny Lane; contam que, os turistas roubavam as placas da rua para levar como suvenir. A Prefeitura não se cansava de substituí-las sempre que alguém cometia o "bom" delito. De um tempo para cá as placas foram substituídas por pinturas nos muros e nas fachadas: PENNY LANE L18. O sonho não acabou — nunca acabará — e Penny Lane será eterno ponto de partida da trajetória dos Beatles e de um amor que para sempre queremos lembrar.

Olho para dentro de mim e não tenho uma rua para chamar de Penny Lane. Todos nós temos uma rua para chamar de sua, como adotamos uma árvore, um bicho, ou um amor de infância. Lamento. Tento imaginar se a rua onde nasci e vivi merecia uma canção ou um poema. Não consigo ver algo que me chame a voltar nela com versos ricos. Nunca houve barbeiros, bombeiros morando lá, nem houve comércios e muito menos casas com janelas bay-window; mas havia algo parecido: estava embaixo de um céu azul suburbano também. Suas casas pouco mudaram e seus moradores também. Nem é minha intenção de torná-la famosa. Minha rua sempre foi modesta e hoje continua lá com seus paralelepípedos seculares — espero nunca serem trocados pelo asfalto que pune as brincadeiras de rua; a resistência daquele pavimento de pedra preserva ainda a característica de bairrismo e localidade.

Ainda lembro-me dela com seu leito de terra, jogávamos futebol e também brincávamos de queimadas — permitindo assim que meninas também brincassem. Havia passagem de carros de boi de quando em vez, algo tão incomum nos dias de hoje. Ali também era o trajeto das procissões de fé daquele povo. Fora isso não tem mais nada a contar; nem quem morava lá era tão importante assim. Havia sim, uma velha senhora que vivia sozinha numa casa de quintal imenso, e tinha como companhia muitos cachorros e outras criações como marrecos e patos. Minha rua não tinha o aspecto urbano e o romantismo de Penny Lane e Paul também nunca passou por lá.

Nas viagens que faço das minhas memórias, tento buscar e vejo agora a rua onde você morava. Talvez seja ela Penny Lane no meu imaginário; aquela que queria ter meu coração partido em mil poemas. A ela dedicaria uma canção se inspiração me viesse ardente no peito: sairiam notas em versos lindos de recordações, como em Penny Lane. Por muitos sonhos, nunca estive lá também, mas meu coração passa por ela quando em mim derrama sua saudade. Neste momento ela está aqui ao meu lado querendo viver, não vou deixá-la partir de mim. Quero chorar com ela, mesmo sem você. Sentir porções de saudade é bom, mas sentirei só dos momentos que vivi ao seu lado, naquela rua. Prometo, serão breves palavras.

Era uma alameda também suburbana, de pouca extensão, uma suave ladeira de piso de pedras brilhantes, com árvores frutíferas na calçada e casas simples sem arquiteto (simples com cadeiras na calçada...); janelas ornadas de flores com suas moças debruçadas, e nos outonos: que a vida nunca passe tão depressa... Das poucas casas, você morava na maior da rua: térrea e esparramada num terreno de quintal longínquo, como eternos campos de morangos. Do outro lado da rua, morava uma senhora que fazia doces caseiros e estendia roupas cantando madrigais que ouvia do coral da igreja; ela abrigava também sua filha, aquela que era sua melhor amiga da rua. Subiam correndo a pequena ladeira de pés descalços, pulando fogueiras de São João e amarelinhas; as brincadeiras de rua eram sua predileção até anoitecer. Na chuva, você se deliciava com o rio que corria no meio-fio. Entre sua casa e o muro, era o sol, que vergonhosamente se escondia nos fins de tarde de inverno; à noite, as estrelas se amontoavam no céu e cintilavam os telhados terra cota; e não muito longe o repicar dos sinos da matriz que despertavam os fiéis nas manhãs de domingo. É assim que meu coração me traz à rua onde você morava. E agora conduzem também os seus olhos de volta aos meus: doces lembranças.

Esta é a sua Penny Lane, a que imaginei e guardei para você no dia do seu aniversário. A sua canção. Uma rua inteira, sem saída, sem medida, sem cidade, sem rancor, sem mágoa, sem tristeza e sem fim; onde o amor habita infinito, como céus azuis e que continua a sua casa no subúrbio da minha alma. Estará para sempre nos meus ouvidos, nos meus olhos — como em Penny Lane.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2010.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Penny Lane em meus olhos


Escrever neste clima de Copa é complicado. Vira e mexe você lembra das vuvuzelas, da jabulani que bateu caprichosamente na trave no chute de Cristiano, no gol de “manga de camisa” de Luis, da cara de poucos amigos de Dunga... O barato é que isso me contagia. Lembro da minha primeira Copa, eu fui comprar cigarros no intervalo de Brasil 1 x 0 Inglaterra. Claro, fui comprar para o meu primo, eu era ainda um fedelho esperto. O que mais me chocou foi ver as ruas desertas, aí eu me perguntava: Onde está todo mundo?
Agora estou escrevendo algo sobre certa rua chamada Penny Lane. Ela foi inspiração de Paul McCartney e onde eles talvez tenham se encontrado pela primeira vez. Sempre é bom lembrar: a primeira Copa, a primeira vez, o primeiro encontro, o primeiro amor. E tudo nunca mais esqueceremos.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Filhotes da Ditadura


Faço um parêntese nos textos líricos e poéticos, para trazer à reflexão um assunto que também faz parte da vida de todos nós: o momento da política nacional. Ando pela rua e vejo um clima totalmente ufanista, reluzente em verde e amarelo; são brasileiros com suas caras pintadas e soltando a voz com a mão elevada peito: sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor! Há explicação, vivemos mais uma Copa do Mundo e o Brasil está lá, mais uma vez, representado pelos seus bravos soldados. De quatro em quatro anos ressuscitamos este “amor” à pátria – o que muitos dizem ser a pátria de chuteiras. Como um amante do futebol, torço sempre pelo Brasil, é claro. Mas lamento que as bandeiras brasileiras sejam retiradas das sacadas dos edifícios e outras pequenas das antenas dos automóveis assim que termina a Copa. Uma pena que esse amor seja efêmero e não contagie também a nação em ocasiões onde somos chamados às decisões políticas. Somos patriotas nas competições esportivas e não somos nenhum pouco em outras disputas por: esclarecimentos, transparência, cobranças, reivindicações e justiça social. Neste ponto, abstemos dos assuntos e procuramos outro com menos incômodo e chateação.

Como tenho falado nas rodas de conversa, em política partidária, não me posiciono para lado algum: nem Arena e nem MDB, nem democrata e nem republicano. Já tentei viver essa tolice. Agora prefiro ser do partido que John Lennon sonhou em “Imagine”: “imagine all the people / sharing all the world...” Assim também penso que, o melhor indivíduo politizado – e eu estou caminhando para isso – é aquele que pensa e decide livremente, colocando seus pensamentos no terreno onde reina a justiça, a ética, a lógica, o bom senso, e sob a luz dos fatos. Isso mesmo, pensar e decidir com minhas próprias convicções. Não acredito em partido político e digo que, eles existem somente para juntar bandos de um lado e de outro como numa partida de futebol da penitenciária; respeito sim, a natureza de quem (indivíduo) constrói sua biografia com dignidade e se utiliza da política, como meio para construir uma nação melhor e mais justa para todos. Já sei, vão dizer: agulha no palheiro. É difícil, pois encontraremos poucos assim, mas ainda sonho com isso. Nós precisamos ser melhores na decência (extraindo de um dos livros de Lya Luft – Múltipla Escolha) e não em escolha partidária. É o que falta. Se ao menos eles tivessem mais decência e ética...

Num desses momentos do passado da política nacional, o então candidato à Presidência da República Leonel Brizola, apregoou a Fernando Collor – seu adversário nas eleições de 1989 - o título de “Filhote da Ditadura”. Filhote quer dizer cria animal e também pode ser também entendido como indivíduo protegido (Larousse). Isso virou deboche, foi lembrado e servido na bandeja em outros cenários e eleições posteriores; e há quem realmente acredite que só a Fernando Collor cai bem este título. Não vou perder tempo em falar dele (ou delle), afinal sua reputação e biografia estão mais que maculadas pela herança que deixou do seu passado político. Já pagou por isso com o impedimento por alguns anos na “geladeira” e longe do exercício de cargos públicos. Também sei que, como na lenda do escorpião, ele sempre seguirá a sua natureza e no momento que lhe convir dará a picada, com seu veneno mortal, até mesmo no dorso de quem o ajudou atravessar a tempestade. É a natureza da política que herdou e agora pactua com os que estão no poder.

Depois de refletir e acompanhar os andaimes da política nacional, pedirei licença para discordar, ou colocar um “ops” nas palavras do falecido Governador. Vejo como os únicos herdeiros e filhotes da ditadura, essa gente que hoje se empoleirou no poder e ali querem perpetuar - a qualquer preço. Bravateiros, corruptos, eles chegaram lá e agora só têm um objetivo: um verdadeiro plano de poder por muitos anos com enriquecimento pelo capital alheio. Chamo-os de filhotes da ditadura, pois eles não existiriam sem ela. A ditadura os tornou visíveis, os tirou dos calabouços e os criou como verdadeiros heróis que nunca foram. Agora, se apropriam de tudo, inclusive da história do país. Não! O Brasil não tem história, eles começaram construir a partir de 2003. É o que pregam. O Brasil pós-golpe de 64 viveu debaixo de um regime militar – diga-se de passagem: um mal necessário. Epa! Necessário, pois no final demos mais importância à liberdade de expressão e aprendemos um pouco do que seja democracia. Eles agora vivem do passado, adulam a ditadura para serem reconduzidos ao presente como verdadeiros defensores da moral e da ética que nunca tiveram. Mas quem diz quem são eles? Ah! São eles mesmos. Atribuem só a si os méritos por vivermos a democracia que o país alcançou. O Brasil iria caminhar para uma democracia, quisesse ou não esta gente. Não quero entrar aqui no mérito de outro posicionamento: se de esquerda, de direita ou centro – isso pouco importa à nação e ao cidadão decente -, se seguidores de Che Guevara e da linha castrista de Cuba. A verdade é que, nenhum desses também viveu para ver a humanidade melhor. Eram carniceiros e adoravam amontoar cadáveres.

Espalhados por aí, há os que o sustentam e defendem esses ditames e esse modo egoísta de governar (para si). Na política rasteira, o que há hoje é um grupo serviçal entranhado nos corredores das universidades, nos meios de comunicação, ONG´s e sindicatos afins; são os que preparam palanques, defendem e multiplicam as ideias, essas que lhes plantaram; são instrumentos manipulados de um partido político, e servem a ele. Esse, por outro lado, lhes impuseram ordens para que pensem como deseja, com suas teorias conspiratórias e espalhando o ódio (ao inimigo). Esses bandeiristas, não são livres para pensar, são serviçais de partidos e rezam sua cartilha, mesmo que toda pregação seja contrária aos seus próprios princípios: morais, religiosos e de caráter. Depois, com o tempo, até se esquecem de quem são e perdendo a própria identidade.

Não sei onde isso tudo irá chegar e se realmente temos que passar por este período letárgico. Espero que não dure muito, já estou cansado. Com tanta reverência e flerte às ditaduras pelo mundo, inclusive na América Latina, não me surpreendo se um dia vermos novamente o país debaixo de outro regime de ditadura, agora orquestrado por eles. O Brasil terá que pagar para ver e seu povo muito mais. Quando iremos poder soltar a voz? Quando iremos viver o verde amarelo em amor e respeito à pátria amada sem o ufanismo de Copa do mundo? Quando teremos um país menos torcedor e mais politizado?

Enquanto esses dias não chegam, eles continuarão enaltecendo o passado de “filhotes” que são e surrupiando nossos sonhos na calada da noite; já o futuro, vai sendo costurado na escuridão, sem a certeza do verde e amarelo que tanto nos orgulha. É isso, a pocilga está sendo cercada em seu próprio intelecto. Agora, alimentem os porcos.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2010.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

É só aguardar...


O futuro chegou! Sim, e com ele novas tecnologias, novas ferramentas - tudo para facilitar nossas vidas. São tantas novidades que não conseguimos nos atualizar. Tudo ficou mais rápido. Afinal, mundo globalizado não pode haver perda de tempo: internet, cartão magnético, celular, chip, ipod, iphone, Google earth, GPS, TV a cabo, tudo deixou o universo mais ligeiro e melhor. Será? Vai chegar o dia em que vão mexer no movimento de rotação da terra para termos dias mais curtos ou mais longos, conforme o gosto e o tempo que se quer dar a vida. É só esperar para ver.

No atendimento ao público, por exemplo, houve avanços e inovações. Hoje já vemos coisas do gênero: área vip, camarote vip, estacionamento vip, caixa preferencial, convênio particular, sala de espera, personalité, SAC e outros. E as frases que você já acostumou a ouvir? “só um minutinho”, “aguarde na linha para ser atendido”, “já vai começar”, “tecle 9 para voltar ao menu...”, “não vai doer”, “já vai passar”, “desculpe-me”, “é só aguardar”.
Pegando por esta linha, já perceberam como anda a saúde no Brasil? Não, não estou falando do SUS, estou falando do pago mesmo; aquele de convênio particular com mensalidades altíssimas que você opta por acomodações diferenciadas e tem tratamentos diferenciados também para a mesma doença. Se você começar a imaginar vai ver como é comum a seguinte situação no nosso cotidiano:
Um casal de classe média levando a filha menor para um atendimento de emergência num hospital particular. A criança só tomou 11 gotas de rivotril. Descuidos dos pais? Sei lá. Sabe aquela coisa: remédio + criança, atração fatal? A criança começou a ter náuseas e vômitos, os pais saem em socorro para o melhor hospital, afinal, tem um convênio particular. Ao chegar ao pronto atendimento, já com gente saindo pelo “ladrão”, são recebidos prontamente por um homem de farda que você nunca sabe qual a sua função, se é vigia, se é recepcionista ou o escambal. Pelo sorriso e gentileza, você vê logo de cara que o atendimento será rápido, pois sua filha está mal. Então o homem orienta:
- Por favor retire a senha ali, depois é só aguardar.
No canto há uma maquininha, onde você aperta um botão e retira uma senha. O número é 68 e no painel logo a frente da recepção eles vêem 59. Como são 03 atendentes, vai ser rápido, afinal o atendimento é particular. Bom, o jeito é ter aquela velha paciência, acalmar a criança e como diz o “vigia”, é só aguardar. Quando finalmente o painel pisca o número 68 indicando o guichê n.º 3. Sentam-se esperando. A atendente não desgruda o olhar da tela do monitor. Claro, tudo para facilitar e agilizar o processo. Tudo muito rápido. Sem olhar para os dois, a atendente diz:
- Só um minutinho.
Levanta e se dirige até o guichê ao lado e começa apontar para a tela do monitor da atendente vizinha como se tivesse ensinando algo que ela não sabe. Depois volta e olhando agora para sua tela diz:
- Por favor, senhor, os documentos.
O pai entrega seus documentos e já sai consultando ali mesmo com a moça:
- Sabe, nossa filha tomou um medicamento...
A atendente nem presta atenção e começa a preencher o cadastro. Sim! Um cadastro mesmo, porque ficha de entrada não se pergunta nome do pai, da mãe, dos avôs, escolaridade (a criança ainda não foi alfabetizada), e-mail, endereço, CEP e por último a pergunta fatal:
- Qual o convênio?
- UNIMED.
- Desculpe-me Senhor, mas aqui neste setor não atendemos este convênio.
- Ah é? – responde o pai.
- O senhor deve se dirigir ao segundo andar; primeira porta a sua direita.
- Tá bom, o.k.
Quando o pai vai saindo com a mãe e a filha no colo a atendente interrompe:
- Senhor, o elevador está em manutenção, à escada é ao lado.
Quando já estão saindo, vem o homem de farda:
- O senhor é o dono veículo estacionado na frente do hospital?
- Sou sim – responde o pai assustado.
- Bem, Senhor, ali não é permitido estacionar. O senhor deverá retirar o veículo. Na rua de trás há vagas.
- Tudo bem, estou indo...
O pai deixa a criança com a mãe e sai correndo tirar o veículo.
A mãe sobe a escada com a criança no colo. É só um lance de escada.
No segundo andar aparenta ser melhor: poucas pessoas e com melhores acomodações na espera, havia até lugar para sentar. Atendimento VIP. O “cadastro” não é tão longo assim, não perguntam nem os nomes dos avós paternos. Alguns minutinhos depois a atendente entrega a senha de atendimento do médico e diz:
- Agora é só aguardar.
Realmente só há duas crianças na fila do plantão da pediatria. Tudo no mesmo andar, sem precisar descer a maldita escada. Vamos lá, calculando dez minutos para cada consulta, daqui a vinte minutos está tudo resolvido.
Neste tempo chega o marido com a camisa molhada e suando em bicas. Não se sabe se foi pela escada que enfrentou, se foi para encontrar uma vaga na rua ou se foi por causa das duas situações.
Trinta minutos depois aparece o número no painel. Finalmente. O médico abre a porta com aquele sorriso e já sai brincando com a criança:
- Olá minha princesinha, que houve com você?
A criança não dá a mínima para o médico e se esconde no ombro da mãe.
Quando o pai vai adiantar o assunto da consulta toca um celular. Era o do médico. Ele diz:
- Só um minutinho.
Era sua mulher do outro lado da linha, acertando os últimos detalhes da sua viagem para um congresso de pediatria no final de semana em Salvador. Alguns minutinhos depois desliga:
- Desculpe-me, era minha mulher. Vamos lá, o que houve com a princesinha?
O pai, já impaciente, dispara a falar. Antes mesmo que concluísse o médico diz:
- Vamos examinar?
Pega a menina no colo, deita numa maca, põe o estetoscópio no peitinho da criança, abaixa as pálpebras, olha a língua e conclui:
- Olha, ela não tem nada, acredito que foi só um susto.
A mãe que entrou muda, com olhar de surpresa, continuou a não dizer nada.
O pai, então:
- Ah é, não tem nada? Só um susto?
O médico:
- Sim, vão prá casa e façam um chazinho de camomila prá ela e coloque-a prá dormir. Amanhã ela já estará melhor. É só aguardar.
Saem do consultório mais aliviados ao saber que nada havia com a “princesinha”, mas com certo desconforto.
A criança já dormia no colo da mãe e não se queixava mais. Sem dizer uma palavra vão embora.
Quando estão passando pelo portão de pedestre que dá acesso à rua, ouvem uma voz chamando:
- Senhor! Senhor!
Era o vigia/recepcionista segurando um papel vindo em direção ao casal.
- O Senhor esqueceu.
- Esqueceu o quê? – indaga o pai, já irritado.
- O senhor esqueceu de preencher o formulário de avaliação do atendimento e sugestões.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2008.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Yeh, yeh, yeh


Um dos trechos fortes e marcantes da música “The Boxer” – Paul Simon é o refrão onde não há letra, ele e Garfunkel cantam somente o “La-ia-lá” (lie-la-lie...). Este trecho é universal, não precisamos entender ou falar inglês para cantar. É onde conseguimos cantar com o disco sem medo de errar, fácil de guardar, fácil de cantar. Numa gravação de 1974, o “La-ia-lá” foi substituído por uma flauta zamponha do Grupo peruano Urubamba, lindíssima também.
Os Beatles usavam muito desse recurso. Tanto é verdade que na década de sessenta no Brasil se dizia que eles eram “os reis do iê, iê, iê”; título em português dado ao filme “A hard days night” de 1964. A expressão “iê, iê, iê” ficou imortalizada e marcou para nós brasileiros o estilo de música que eles faziam na época, que nada mais era que o tal de rock n`roll - com suas variações. A Jovem Guarda se utilizou muito desse estilo Beatles com versões em português das suas músicas. Ronnie Von (que não era da Jovem Guarda) gravou “Girl”; já Renato e seus Blue Caps abusaram, fizeram várias versões dos Beatles. Em 1966, o primeiro filme dos Trapalhões se chamava “Na onda do iê, iê, iê”. É claro que o tal do “iê, iê, iê” queria dizer um modo, um estilo de vida que começava a partir da música dos Beatles. Na raiz da expressão, a onomatopeia beatle surgiu com a música “She loves you”, cujo refrão diz: “She loves you yeh, yeh, yeh / She loves you yeh, yeh, yeh”. Em português, virou “iê, iê, iê”. Numa outra canção “Hey Jude” o “lá, lá, lá” é um convite a cantar junto no final da música: “lá, lá, lá, laia, lá Hey Jude...”. E todo mundo canta.
Este conversê todo surgiu ouvindo no trânsito a canção “Grão de Areia” de Arnaldo Antunes; percebi nitidamente esta proposta onomatopeia de não querer dizer nada num trecho da letra. Arnaldo também é mestre nisso: usar as palavras ocultas. Há momento na letra que não há mais nada o que dizer; nessa hora as palavras se fundem com a melodia. Parece que nada preencherá ou tudo será permitido dizer; é onde o Lá, rá, rá, rá ou lá, lá, lá entra; deixando a imaginação de quem ouve viajar num mundo que ele escolher, na palavra que lhe vier à cabeça.

Grão de Areia(Arnaldo Antunes)
Me deixe sim
Mas só se for
Pra ir ali
E pra voltar

Me deixe sim
Meu grão de amor
Mas nunca deixe
De me amar

Agora as noites são tão longas
No escuro eu penso em te encontrar
Me deixe só
Até a hora de voltar

Me esqueça sim
Pra não sofrer
Pra não chorar
Pra não sentir

Me esqueça sim
Que eu quero ver
Você tentar
Sem conseguir

A cama agora está tão fria
Ainda sinto seu calor
Me esqueça sim
Mas nunca esqueça o meu amor

É só você que vem
No meu cantar meu bem
É só pensar que vem
Lá ra ra rá

Me cobre mil telefonemas
Depois me cubra de paixão
Me pegue bem
Misture alma e coração.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2010.