BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Nada será melhor como antes

Deparei com um vídeo de 1984, no crepuscular militarismo. Elba Ramalho cantando "Banho de Cheiro" no Maracanãzinho, no Chacrinha. Aquela sopa tropical, suculenta de felicidade brega com buzinadas e liberdade febril; com uma câmera passeando, grudada nas bundas daquelas deliciosas chacretras. Tudo temperado com muito calor humano de uma plateia periférica; de gente plebe, deslacrada, desmartuphonizada, sem medo e sem máscara. Um mundo real que não veremos jamais. Ah, como eram doces aqueles já velhos e pueris anos. Empalideceu e desmanchou no ar. Até para ser feliz, hoje, você deve satisfação às redes sociais do seu falso mundo.

O texto inicial foi capturado de uma postagem que fiz nas redes sociais. Escrevi já pensando que ele seria um apêndice de uma conversa longa. Ela chegou.

A falta de liberdade me dói. Sim, é dolorosa e quase febril. É uma dor sentida, diária. Abro a janela e vejo as ruas controladas, cheio de cartazes "não toque", "mantenha o distanciamento", "use máscara". Pergunto na minha alma: Cadê o meu mundo? Cadê os meus sonhos de moço? Os lugares restritos, os protocolos ridículos e o direito de ir e vir sendo sobrepujados por um ditador qualquer. Esse é o retrato dos novos dias. Vai voltar ao normal? Não sei dizer.

A entrada dos EUA na segunda guerra é uma das coisas mais emblemáticas para mim. Talvez seja o ponto culminante daquela guerra. E aqui falo, claro, daquele que seria considerando o "dia D".

Convido a quem ainda não acompanha os documentários da Brasil Paralelo, acesse o YouTube, seja membro, ajude essa plataforma a continuar fazendo e exibindo conteúdos para nossas vidas. Digo que é como um oxigênio para nossa existência num mundo tão cheio de falta de ar.

No último documentário, A Primeira Arte, eles nos presentearam não só do conhecimentos dos grandes compositores da história da música, mas nos levaram a emoção. A música é aquilo que emociona e não aquilo que faz nosso corpo se mexer. Eu ouço música parado, ela, mesmo que harmonicamente e ritmicamente nos leve a querer dançar, antes de tudo ela nos faz dançar na alma. E de onde eles vieram? De um tempo onde não se tinha rádio, televisão e muito menos Spotify.

E como quase tudo que aqui em converso, volto ao passado. (Sobre o futuro eu não sei; o presente não precisa dizer, ele está aí. Mas o passado faz todas a pontes de ligações com a linha do tempo).

Ainda que superemos essa fase pandêmica; ainda que superemos o contágio; ainda que superemos o tempo nos hospitais com respiradores; ainda que voltemos a ouvir nossos LPs; ainda que abrimos nossos antigos romances; ainda que tudo isso, nada será melhor como antes.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Abril de 2021.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Eu Queria Ser Chico Buarque

Pode soar estranho às pessoas de hoje, mas na minha adolescência — mocidade, como se dizia — eu queria ser Chico Buarque. Tocar como ele, compor como ele e cantar também como ele. (Ele canta mal, eu sei...). Talvez eu seja um dos poucos da minha geração que compreendia aquela relação profunda, poética, prosaica, cotidiana, harmoniosa: letra, música, corpo e alma. Justapostas, sabe? Fragrância lírica das ruas descalças, dos balões, das moças. Espreitado por alguém debruçado sobre a janela alta da casa burguesa.

Já faz alguns anos, assisti a um vídeo de Chico com João Pedro Stédile, o chefão do MST. Depois de uma partida de futebol, no seu campo particular, Stédile pediu-lhe que fizesse uma dedicatória num box de DVDs. Disse-lhe que entregaria o ilustre presente, pessoalmente, a Nicolás Maduro.

Aos 80 anos, o grande compositor nem tem mais pernas para correr atrás de bola. Depois de aplaudir, de plateia, seu mentor político ser transformado em presidente de novo, pela terceira vez, partiu em definitivo com sua mulher novinha para Paris. Uma morada dos deuses, no metro quadrado mais caro da cidade, bem longe das mazelas brasileiras.

Súbito, pensei no campo de futebol particular. Virou assentamento do MST? Seria lógico, e é o que sempre se espera de socialistas: repartir, dividir e partilhar seus bens. (Stédile não teve essa ideia?). Nos tenros 20 anos, o jovem Chico escreveu "é a terra que querias ver dividida", versos da canção Funeral de um Lavrador. Noves fora, o Google Earth me contou que o campo ainda está lá, inteirinho no caríssimo Recreio dos Bandeirantes. Sem nenhum sinal de invasão dos sem-terra fluminenses.

Minha profecia, no entanto, me diz, ao pé do ouvido, que os herdeiros já esfregam as mãos. Logo darão um destino provável e financeiro ao terreno: o mercado imobiliário. Faz jus, era a terra que querias ser dividida... Porque a narrativa da justiça social (do pivete, do guri, do malandro, do sem moradia) é atemporal e não pode morrer: e tudo que serve de esteio ao discurso dos velhos burgueses e poetas hipócritas. (Millôr já disse de quem lucra com seu ideal).

Mas para que essa crônica não acabe assim, eu prefiro dedicar-me, cavando na memória, à história bem rimada do Juca, aquele dos anos 60. O pobre seresteiro autuado em flagrante, como meliante, que foi parar numa delegacia, pois sambava bem diante da janela de Maria.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2024

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Dediquem-se à rasteira, rapazes

Há tempos venho procurando essa crônica de Graciliano Ramos (em pseudônimo). Nessas linhas, naquele começo de século XX, ele dava conselhos aos brasileiros se queriam mesmo introduzir o FUTEBOL nas práticas dos esportes nacionais. O fato curioso é que, o futebol já era praticado na Europa, mas no Brasil ainda engatinhava. Dei um título meu à crônica, mas ela foi publicada a primeira vez em "O Índio", em 1921.

Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra. É uma lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente. Com exceção talvez de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês.

Pois quê! A cultura física é coisa que está entre nós inteiramente descurada. Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes em língua de preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de alguns cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos uns com os outros, quando somos crianças, não temos nenhum exercício. Somos, em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável.

A parte de nosso organismo que mais se desenvolve é a orelha, graças aos puxões maternos, mas não está provado que isto seja um desenvolvimento de utilidade. Para que serve ser a gente orelhuda? O burro também possui consideráveis apêndices auriculares, o que não impede que o considerem, injustamente, o mais estúpido dos bichos. (...). Fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes - uma lástima! Pálpebras caídas, beiços caídos, braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós um ser desengonçado, bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou popular: "Me deixa..." Precisamos fortalecer a carne, que a inação tornou flácida, os nervos, que excitantes estragaram, os ossos que o mercúrio escangalhou.

Consolidar o cérebro é bom, embora isto seja um órgão a que, de ordinário, não temos necessidade de recorrer. Consolidar o muque é ótimo. Convencer um adversário com argumentos de substância não é mau. Poder convencê-lo com um grosso punho cerrado diante do nariz, cabeludo e ameaçador, é magnífico. (...)

Para chegar ao soberto resultado de transformar a banha em fibra, aí vem o futebol.

Mas por que o futebol?

Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.

No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-nos que o futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.

Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país é necessário, não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão.

O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído. (...)

Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos.

As grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente, é sertão. As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; não somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda ou galego.

Nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam liamba. (...)

Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.

Desenvolvam os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem sabem pronunciar.

Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira.

A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!

Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro - e a rasteira nos salva.

Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.

Cultivem a rasteira, amigos!

E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde S. Exa. o senhor presidente da República até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.

Muito útil, sim senhor.

Dediquem-se à rasteira, rapazes.

 Publicado por © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / maio de 2024.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Ruas de paralelepípedos

Passei os últimos dois meses envolvido com a política, exclusivamente com a eleição presidencial. Não desgrudei do celular, das mensagens e notícias a toda hora. E as pesquisas? A cada uma que saía, uma agonia tomava conta de mim. Aquilo me consumiu diuturnamente, que minha ira se espalhou pelos terrenos áridos das redes sociais.

Desde o atentado, minha fúria só aumentou que cheguei a pensar: — "não é dessa vez que tiramos o pé da lama. Não é!". Imaginei que aquela faca, pontiaguda, poderia ter cortado também todos os nossas artérias de sonhos de país. No fim, a turbulência passou e  agora estamos limpando a sujeiras das solas dos sapatos para entrar o ano de alma lavada. O saldo foi algumas amizades perdidas nas redes sociais, xingamentos (sem desculpa) e uma vida que segue agora o seu curso. Afinal, o Brasil se sairá bem desse lamaçal. Eu espero.

Apaziguado, tirei os livros da estante, voltei às leituras. Acordei e baixei no meu e-book um livro que ainda não havia lido de crônicas rodrigueana (não sei se existe o neologismo). O "Óbvio Ululante" é um apanhado daquilo que Nelson Rodrigues nos deixou de melhor, fora da dramaturgia. E por que eu falo isso? Ontem, não consegui pregar o olho, e já era tarde. Antes de apagar o abajur, li uma crônica que ele se lembrava de uma paixão de infância. A moça (menina moça) era Lili, uma rechonchuda que morava no caminho da sua escola. Lili apanhava do pai e o pequeno Nelson ouvia seus urros e gemidos da rua. Comecei a pensar, então, na minha infância, que depois puxou pela adolescência. Lembranças e lembranças que não estancavam, retardando ainda mais meu sono.

Não tenho voz e cor da infância. É como um filme de Chaplin: preto e branco, sem voz e com uma trilha sonora de fundo. Minto. Lembro, sim, da cor do meu uniforme escolar: camisa branca, calça boca de sino azul marinho e conga alpargatas. Eu já falei também do tom rosa velho da minha casa, que já foi azul clara, com o número 139 sobre a veneziana. Mas voz nenhuma vem. Assim, eu na minha mais tenra idade (aos 10 e 11 anos), atravessava uma ponte gelada para estudar em outro bairro. Mas nenhum gravador registrou uma sílaba que tenha dito. Súbito, penso que fui um faroleiro na vigília do mar. A solidão do mar noturno e um silêncio de vozes, enquanto ondas gigantes chicoteiam pedras e cais. Eu sentia mesmo era paixão.

Ali, antes dos 10 anos, eu já havia me apaixonado. Depois, já nos 11 anos, e assim foi até a fase adulta. (O homem que nunca se apaixonou, não viveu.) As paixões não tinham desejo sexual, mas silhuetas, admiração e contemplação como paisagens. Elas mudavam de direção, mas eu era o mesmo menino: traquino em bando, e tímido no privado. O olhar era lânguido, e a boca balbuciante e sussurrante. (Talvez por isso não encontre uma frase da minha infância.) Nas paixões platônicas não se têm fala, não têm "eu te amo", não tem olhares penetrados, não tem sorriso encarado. Tudo é calado e só sentido; um coraçãozinho já ardendo e sofrendo.

Na quinta série (ali nos meus 11 anos) havia uma garota. Ela era Mônica. Loirinha dos olhos castanhos arredondados. Encantadora, com uma educação aristocrata e beleza nata. Mas eu não era o único. Havia uma fila de meninos de olhos naquela menina simpática de silhueta delicada. Naquela época, as meninas na escola usavam saias três dedos acima dos joelhos. (Com um espelho pequeno dava para ver a calcinha.) Aquele par de pernas era totalmente permitido pelo regime militar, com a panturrilha branca sobre as meias também brancas.

Um dia, fomos expor numa feira de ciência. Um fotógrafo do jornal nos clicou. No dia seguinte, estávamos na front page. Ela linda, sorrindo, olhando para a lente. Ao lado, duas meninas distraídas. E eu com meu amigo cabelo de fogo ao lado, em pé, fazendo caretas. Guardei aquele recorte, mas hoje não sei mais onde está.

No ano seguinte, sem se despedir, ela já não estava mais na escola. Seus pais haviam se mudado para Goiânia, se não me falha a memória. Foi a notícia que chegou. Ela foi embora, mas eu tinha o recorte do seu sorriso pueril. Logo minha paixão se dissipou no nevoeiro da ponte sobre o rio. Outros encantos surgiram, com outras meninas na escola e suas saias de pernas à mostra. Mas paixão não houve por um tempo, até esquecer o recorte.

Como disse, nas minhas lembranças não há muitas falas. Havia, contudo, uma voz fraca. Era do meu pai me chamando sobre o muro do vizinho. Aos 52 anos, sua voz já era cansada pelo cigarro e as dores no peito. Então, algo me vem sempre quando adentro nesse quarto escuro. Se não há voz, há um cheiro imortal. E ele exala na atmosfera da minha vida, até os novos dias, como um perfume da eternidade. Pode até parecer esquisito, mas a aromática lembrança é uma mistura de batata frita, argamassa e tijolo molhado.

Foi um dia qualquer entre 1973 e 1974. Acho que era 1974 (já tinha 12 anos). Nossa casinha passava por uma reforma. Meu pai puxou a casa até à divisa com o vizinho do lado direito. Construiu um paredão que, para rebocar, precisou erguer andaimes. Lá no alto, a cumeeira, os caibros e terças de um telhado à francesa, de uma água só. Um forro de madeira fechava nossa casa para suportar o frio do inverno. Essa era a obra necessária: espaçar centímetros e acolher.

Fecho os olhos e vejo esse dia. Eu sentado à mesa de tampo laminado azul (diziam fórmica), fazendo um desenho com uma régua de madeira. Uma cortina improvisada dividia aquele ambiente do externo, da parte da obra, do paredão. Tudo era improviso naquela cozinha sem reboco e pintura. O cheiro da obra (argamassa e tijolo) se misturava com cheiro de batata fritas que saia do fogão da minha mãe. (Foi uma época que comíamos batatas quase todos os dias.) A batata era cortada serrilhada, de espessura fina. Era cedo ainda para o jantar, havia luz do dia. O barulho da frigideira era sinfônico.

Eu estava naquela fase dos meus desenhos de futebol. Explico. Aprendi a desenhar os lances de gol vendo as ilustrações de Gepp & Maia, que saiam semanalmente no Jornal da Tarde. Um dia levei um desses desenhos à escola (o gol do título do Palmeiras de 1974), e ganhei, dias depois, um autógrafo do goleiro Leão, que tinha parentes na minha cidade e aparecia por ali de vez em quando. Não me lembro se foi minha professora de português que conseguiu. Virei tão especialista em desenhar gols, que passei também a criá-los também. Desenhava os gols impossíveis, com a bola batendo na trave cinco, seis vezes antes de entrar. E sempre era um gol com titularidade de um Leivinha, de um Ademir da Guia ou Edu. Até um amigo me perguntar: — "Esse gol é mesmo verdadeiro?".
Copa de 1974 - por Gepp & Maia

Aquela tarde/noite ficou como um quadro, um Michelangelo na galeria da minha memória. Quando você entra na grande sala, ele está lá, estampado na parede. A reforma, o desenho, os tijolos sem reboco, minha mãe e a fritura que saia do seu fogão. Aquele dia virou segredo de confessionário, um quadro que eu não desenhei sobre a mesa azul. Ele se fez sozinho em mim.

Fiz esses parágrafos para chorar de saudade... 

Volto às paixões que alimentei pelas garotas da minha adolescência. Eu, como quase todos, me apaixonava pelas meninas da escola. Houve depois uma Maria Rita que usava meia 3/4, que eu torcia para encontrar no caminho, na ponte, e chegar na escola ao seu lado, como quem exibe um troféu. Sem declarar nada, devo ter dito muitas bobagens e coisas de meninos.

Mas houve uma paixão por uma garota — na minha lembrança era uma moça e não uma petiz — que morava perto de casa. Meus olhos a descobriram durante as peladas de rua, porque eu jogava no paralelepípedo na frente do seu portão. Ela morava, melhor, ela surgia numa casa que ficava no alto de um terreno, numa edícula. Uma família pobre como a minha, de três filhos. Era seu irmão quem compunha o meu time de rua. E quando ela saia para ir à padaria, meus olhos travavam até que dobrasse a esquina.

À noite, eu sentava no portão para vê-la vindo da escola, pontualmente às oito e quinze da noite. (Era um horário estranho para aquela escola onde ela estudava. A aula começava às quatro da tarde e ia até às oito, já no jantar.) Ali, no portão, eu fazia plantão, para vê-la desfilando suas bochechas rosadas, segurando os livros e cadernos apertados juntos aos seios já com sutiã. 

Até que um dia, ela desceu a rua ao lado de um rapaz arcado, magro e bem mais velho. O quanto mais velho? Sei lá, uns 17 anos.  Ele era loiro, nariz pontiagudo e tinha o cabelo liso, fino e penteado do lado, caindo na testa. Achei que era só um garanhão, porque não imaginava que ela pudesse se interessar por uma tábua envergada. Mas o medo vinha junto:  e se ela ceder? Todos os dias eu me perguntava: "o que ele tanto fala à ela que eu não consigo dizer?". Passaram alguns dias, aquela deusazinha da rua, de bochecha rosada, desceu a rua com ele com as mãos sobre seus ombros. Ali eu sepultei minhas esperanças e mais uma das minhas paixões se encolheu para sempre. Acho que chorei por dentro, por me achar mais feio que uma tábua envergada.

De nada valeu querer chamar sua atenção, por muitas vezes, com meu futebol de rua, que jogava descalço sobre o paralelepípedo em frente ao seu portão. Ela não me via com olhar nenhum. Eu era mais um daqueles sujinhos da rua. Além de tudo, eu era sardento e tinha cabelo grosso, espetado e sem shampoo. Para piorar, me apelidaram de "gordo", mesmo não sendo. Depois, a arcada dentária tinha diastema. Talvez sejam essas minhas desculpas para não me aproximar. O medo do "não" entalou e morreu comigo.

Guardei ali, nas juntas dos paralelepípedos das antigas ruas, meus dedões estourados de chutar bola descalço. Claro, isso foi antes do surgimento do kichute. E o primeiro apareceu nesses idos, ali pelo meio dos setenta. Era o calçado que estava ao alcance de todo garoto pobre de periferia. Dava para jogar bola no paralelepípedo da rua, na terra do campinho e depois servia para ir à missa de domingo. E havia também o segredo do cadarço. Ninguém amarrava o kichute de forma convencional. Ou era na canela ou era por baixo, dando voltas na sola, com as travas não permitindo que o cadarço se arrastasse no chão. Eu amarrava por baixo. Achava que ficava mais firme nos pés.

Hoje, tenho respeito pelas ruas de paralelepípedos, porque elas guardam em si histórias de crianças, de peladas descalços, de brincadeiras de queimadas, enterros, procissões e paixões. O paralelepípedo é o que decora minha alma de infância. O paralelepípedo é o adorno que emoldura a simplicidade das casas. Não são ruas de passagem; são de imortais peladas, onde deixei meu dedão sangrando por muitas tardes. São ruas da feliz esperança, de paixão pelas meninas de bochechas rosadas. E tudo com o aroma bom da frigideira de batata fritas. Minha infância não teve voz, mas teve muito cheiro bom.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2018

sexta-feira, 8 de março de 2024

Por que sou contra o dia das mulheres

Primeiro que todo ESQUERDISTA adora comemorar esse dia. Na verdade, eles adoram tudo que segrega, que separa e dissolve o tecido social; numa forma de jogar uns contra os outros. Dividir para conquistar. Suas mulheres lembradas nesse dia são sempre as mesmas: Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Dilma, Betty Friedan, etc. Esquecendo-se, porque não cabe na narrativa, da figura feminina mais importante do século XX, que foi Margareth Thatcher. Só isso já é um bom motivo para ser contra.

Mulheres tiveram, sim, muitas lutas e conquistas por direitos civis ao longo da história. As sufragistas inglesas (inicio do século XX) é um exemplo, e seguiram outras. Tempos difíceis com lutas e mortes. Hoje, pode-se dizer que as lutas já não existem, e o que existe é um mimimi feminista.

Você pode dizer que há machismo na sociedade e bla bla bla. O fato é que a sociedade ocidental se construiu assim: por séculos, aos homens foi dado: o poder, a política, a organização da sociedade e a guarda familiar; às mulheres: a obediência, o zelo do lar, os cuidados e a educação de filhos.

Isso é milenar, histórico, como também será histórico esse novo tempo, onde as mulheres, conduzidas por um sistema, estão no mercado de trabalho que antes eram só do staff masculino. E isso não se deve a nenhum movimento FEMINISTA, mas à capacidade individual de cada uma; se deve ao espaço cedido por um homem.

Mulheres à frente de negócios, na liderança existem pelo seu dinamismo, seus méritos e conquistas individuais. E essas mulheres (estão na liderança de qualquer coisa), não atribuem a ninguém ou algum organismo social suas conquistas. Elas alcançaram o topo por sua capacidade e talento. Simplesmente elas são o que são e sem ódio ao sexo oposto. E muitas delas, no fundo, queriam estar em casa.

Em suma, homens e mulheres dividem suas tarefas diárias, há milênios. Não precisa lembrar que, desde antes da arca de Noé, já havia essa divisão cunhada pelo Criador. As mulheres são melhores em algumas tarefas e homens são melhores em outras. Isso é biológico e da gene humana. É da criação.

O DIA DA MULHER, por assim dizer, é o dia em que ela conquista, na sua luta individual, algo porque estudou, se esforçou, sobressaiu e liderou. O dia da mulher é o dia também daquela que escolheu ser só mulher, na sua essência: zelar pelo lar, cuidar do marido e educar os filhos. O dia da mulher é o dia de Margareth Thatcher, que cozinhava, passava, enquanto dava ordens mandando bombas sobre os argentinos nas Malvinas. Não obstante, o dia das mulheres é qualquer dia do ano ou todos os dias do ano. Para que um dia só?

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / março de 2018