Andar pela rua faz bem. E andar por aí, despretensiosamente e sem rumo, me faz pensar na vida, no big bang, em gêneses e apocalipse, nos homens, nas guerras, na globalização; faz pensar em mim... Buzinas, sons, luzes, cartazes, gente nesse vai-e-vem, entregue em sua catatonia; mergulhada em seu tédio e melancolia sem fim. Uns cruzam meus olhos; outros me tentam ultrapassar com o celular no ouvido. Onde vão parar? Quanto tempo eles terão? A cidade me devora, lembrei-me de uma canção... Andar agora me faz mal, com os porquês que me entopem.
Por um instante, eu só queria ser servido desse entendimento. Eu, como os outros que estão desse lado da vida, não pedi para estar aqui. Vim porque vim; vim sem convite; vim porque a vida deve ser missionária, talvez; vim porque todos têm que passar por aqui — o caminho. Vim de um gene contrário; não como animal ou inseto, mas com um cérebro evoluído. Seja esta a grande angústia e viver a se inquirir. Cá estou e onde está Deus que não vejo? Em tudo que zunia, fui pensar no tempo que temos; no tempo que nos resta. As horas passam; e os segundos, nem se fala...
Tente resumir sua vida em um dia. Você nasce à zero hora e morrerá 24 horas depois. Uma vida de mosca doméstica (elas vivem um pouco mais). Foi o tempo que lhe deu o Criador: somente 24 horas para viver como Ser Humano. O que fará com seu tempo? Agirá da mesma forma com o tempo que pensa ter, da longevidade da morte distante? Quando o cachorro do seu vizinho começar a latir, irá pular o muro e agredi-lo? Interfonará à portaria, pois sua vizinha do andar de cima usa um aspirador de pó bem na hora da sua siesta? Brigará? Roubará? Corromperá? Matará? Mentirá? Fará maldade, ou usará o seu mísero tempo para fazer o que pode ser melhor para você e os que te cercam? Lembre-se, você só tem poucas horas. Talvez fosse melhor ter um cérebro de mosca ou não pensar no fim tão próximo.
O tempo é o causador de tudo que fazemos com nossa vida; achamos controle sobre ele e não temos, na verdade, nenhum; achamos que somos indestrutíveis e iremos sair ilesos pela porta dos fundos, também não somos; achamos que chegaremos à velhice, como bônus da vida, e teremos tempo antes para dizer: perdão pela vida mundana que muitas vezes vivi. A morte parece distante, longe do nosso ideal de vida. Não penso nela, pois é melhor ver o amanhecer a me encher de esperança, do que me deitar com ela; então, deixo que chegue como um ladrão que me arrebata na noite escura.
Vejo, por exemplo, os jovens que morrem em acidentes de trânsito. Morrem porque veem a morte muito distante da aurora da vida; morte não entra nos assuntos das rodas. Mal sabem que essa sombra vive rodeando suas vidas, como um cão faminto - dizem alguns especialistas. Veem a morte mais próxima, sim, do avô que balança em sua cadeira na varanda; já a juventude que goza de plena saúde, de músculos fabricados em academia, é uma viagem sem fim. Só não vão perguntar quantas vezes, aquele pacato velhinho, já esteve à beira do precipício; quantas vezes, ele teve que parar para pensar mais na vida e o que estava fazendo com ela. Chegou até ali porque na linha da vida desviou os perigos, no tempo não estava escrito: hora de morrer. Pode ser que a morte nos encontre quando nós mais a procuramos. O tempo é o causador dessa falha de circuito.
Escreveu Rubem Alves sobre a morte de Ayrton Sena: “Enganam-se os que pensam que Senna competia contra os outros. Os outros também desejavam ser heróis, todos saíram juntos, em procissão, como se numa liturgia, a desafiar a morte”. Quem busca adrenalina não quer competir com ninguém; somente há um tempo, o de vencer; tem controle e se deixou na distância de sua morte; pode encontrá-la numa curva da estrada, na entrega de sua dor, ou na pista de fórmula 1.
O grande clássico das telas nos anos oitenta, Blade Runner — O caçador de androides (1982), traz à reflexão, entre outros recados subliminares, o tempo que temos de vida. Sua trama tem como cenário uma Los Angeles de 2019; onde replicantes e seres humanos quase que se confundem nas semelhanças físicas e também nas emoções. Ao mesmo tempo, em que quatro replicantes da linhagem Nexus 6, vão atrás de seu criador com o objetivo de aumentar seu tempo de vida, um caçador implacável os persegue. Ao deparar com o seu criador (Deus), o replicante beija-lhe os lábios e o mata afundando-lhe os olhos por trás dos seus óculos; o criador negou que lhe pudesse dar mais tempo de vida. Na cena final, no terraço de um edifício, o replicante — personagem de Rutger Hauer — se agacha e sussurra suas últimas palavras: “todos esses momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Antes, ele poupou a vida daquele seu caçador. Um filme para ser lembrando sempre.
A vida de replicantes que vivem somente quatro anos e as nossas, que poderemos viver mais, têm o mesmo mistério do tempo que nos resta e para onde iremos depois. Queremos mais do que nos foi dado. A humanidade e a ciência vivem a buscar alquimias que tentam prolongar a vida humana. É obscuro o mundo que não sabemos se existe depois. Uns dirão que é isso ou aquilo, dimensões infinitas; os de fé dirão que é a eternidade com Deus. Não importa, ninguém quer saber disso agora. Querem viver e muito, correndo atrás do tempo.
Agora meu tempo voa como um puma ligeiro no deserto escaldante; e o tempo de encerrar esta crônica já expirou alguns minutos. Hora de encerrar...
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2011.