BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Terreno Baldio

Essa crônica de Nelson Rodrigues pode ser encontrada no livro "A cabra vadia", mas hoje, exclusivamente, decidi postar aqui. É memorável. 

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é  nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de  vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreume a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística. Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo,  comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar.  Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Matarato!”. Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da  vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do  Tico-Tico  nem do  Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”. Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”.

D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”. Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este:  — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro.  D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.

Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz!  Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”. D. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O  arcebispo vermelho  fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O  santo é Guevara. E acompanho a moda”. Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência  da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, presidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva”. 

(publicação original em 14 de março de 1968)

 © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / dezembro de 2018

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A estagiária do calcanhar sujo

Este mês foi produtivo aqui no Blog, muitas crônicas. E ainda sobrou um espacinho para uma de Nelson Rodrigues. O nome original é "Os setenta anos de Gilberto Freyre" e está no livro "O Reacionário". Mas por que essa crônica, especialmente? Outro dia, uma seguidora do Facebook perguntou sobre a origem do termo "estagiária do calcanhar sujo". A expressão surgiu nesta crônica, de 1970. O mais interessante de Nelson é que ele continua atual, porque os calcanhares sujos continuam na nossa imprensa, diariamente.

Nem sei por onde começar. Digamos que. Eis a verdade: estou naquela situação de Carlos Drummond de Andrade ao oferecer seu livro a Marques Rebelo. Na dedicatória, escreve o poeta nacional: “A Marques Rebelo —sem palavras —Carlos Drummond de Andrade.” Ao que eu saiba, poesia é uma arte de palavras. E se um poeta não as tem, poderemos talvez chamá-lo de antipoeta. Na melhor das hipóteses: antipoeta.

Felizmente, o bom Carlos estava usando apenas um truque de sua prudência mineira. Não queria elogiar o romancista e o conseguiu. Eu diria que a minha situação é parecida: faltam-me palavras para começar esta crônica. Queria escrever sobre a socialização do homem. Digo mal. Não é bem do homem. O correto seria dizer asocialização do idiota.

Não sei se me entendem e tentarei explicar. Antigamente, o idiota era o primeiro a saber-se idiota; e babava fisicamente na gravata. Não andava, Como agora, em massas, unanimidades, maiorias, assembleias etc. etc. Do berço ao túmulo, ele assumia a sua irreversível miserabilidade de idiota. O mundo dependia de sete, oito, dez ou vinte individualidades, fortes, criadoras, sim, individualidades que pensavam por nós, sentiam por nós, decidiam por nós.

Embora minoritários, os melhores faziam o nosso mundo, inventavam a nossa realidade, ditavam os nossos valores. Até que ocorre o maior acontecimento do século XX que foi, exatamente, a socialização do idiota. Pela primeira vez o idiota se organizava. Ele sempre fora, como indivíduo, o grande impotente. Deixou de ser indivíduo. Impessoalizou-se; dissolveu-se no coletivo. Aqui no Rio, cinco autores fizeram uma única peça. Até o amor que, sempre, sempre, exigira a solidão do casal, o amor, dizia eu, precisou socializar-se também.

Há pouco, trezentos mil jovens se juntaram numa ilha inglesa. Trezentos mil jovens, 150 mil casais. Foi uma bacanal inédita na história humana. Um dos beatles casou-se. Queria fazer sua noite de núpcias na frente das câmaras e microfones. Não bastavam o noivo e a noiva. Era preciso que cinco, seis, sete milhões de telespectadores invadissem a intimidade do casal.

Ai daquele que, num desafio suicida, tenta individualizar-se. Vocês se lembram das greves estudantis da França. Os jovens idiotas viravam carros, arrancavam arrancavam paralelepípedos e incendiavam a Bolsa. E, então, o velho De Gaulle falou aos idiotas: “Eu sou a Revolução.” Que ele fosse a Revolução, era o de menos. O que realmente enfureceu o mundo foi o eu. Era alguém que queria ser alguém. Um dos maiores jornalistas franceses escreveu um furibundo artigo contra aquele espantoso orgulho. Aquele guerreiro, de esporas rutilantes e negro penacho, foi o último eu francês. Os outros franceses são massas, assembleias, comícios, maiorias.

E há o que se finge de idiota para sobreviver. Muitos não entendem por que professores, sociólogos, sacerdotes, cientistas —vivem a fazer rapapés, sim, humilhantes rapapés para os lorpas e os pascácios. Eis um mistério nada misterioso. Ou o sujeito bajula os idiotas ou não terá onde cair morto.

Por que é que estou dizendo tudo isso? Vejamos: outro dia, Gilberto Freyre completou setenta anos. Eu me lembrei de Hugo, Victor Hugo. No seu septuagésimo aniversário, a França parou. Toda Paris desfilou diante do poeta. Rosas, dálias, lírios, as flores mais inimagináveis foram atiradas a seus pés. Naturalmente que a maioria dos manifestantes eram os idiotas, não socializados, não organizados. Mas vejam o abismo que se cavou entre as duas épocas. Hoje, os idiotas, instalados em sua onipotência numérica, não concederiam ao grande homem um vago e reles bom-dia.

E assim Gilberto Freyre fez setenta anos debaixo de um silêncio brutal. Tive o cuidado de ler os jornais. Não vi uma linha. Minto. Vi num dos nossos jornais uma nota, espremida num canto de página. Quem a redigiu teve vergonha de elogiar um dos homens mais inteligentes do Brasil, em todos os tempos. Eis o que eu queria dizer: está em seríssima crise vital o país que não reconhece seus maiores homens.

Um companheiro ia passando e eu o chamei: “Olha aqui o que merece Gilberto Freyre.” O companheiro passou a vista e rosna este comentário; —“Por essas e outras é que o Amazonas tem menos população do que Madureira.”

Não é a primeira vez, nem será a última, em que falo de Gilberto Freyre e do seu exílio. Em nosso tempo, o Brasil tem sido o exílio do extraordinário artista. Os jornais não falam no seu nome, e vale a pena explicar, para os menos informados, esse mistério. A festiva infiltrou-se em toda a imprensa brasileira. Outro dia, passei num velho órgão. Enquanto esperava um colega, vi uma estagiária, dos seus 18, 19 anos, de sandália e calcanhar sujo. Estava lendo e titulando telegramas. Súbito, pega um dos telegramas, amassa-o e o atira na cesta. Diz para os lados: Gilberto Freyre não é autor que se cite.”

Aí está, num simples gesto e numa simples frase, a Operação Cesta. Os membros da festiva fazem uma vigilância feroz. Qualquer notícia que não convenha à esquerda vai para a cesta, sumariamente. sumariamente. Para o leitor, que nada sabe dos bastidores jornalísticos, pode parecer inverossímil o poder de uma estagiária de calcanhar sujo. Inverossimilhança nenhuma. Reparem como o editorial é uma coisa e o resto do jornal outra. A direção opina no editorial. O resto do jornal fica por conta da infiltração comunista.

No caso de Gilberto Freyre, as esquerdas têm-lhe ódio. Portanto, não se pinga uma palavra sobre a sua obra gigantesca. Falei no seu exílio na própria terra. E realmente ele é muito mais notícia lá fora. Escolham qualquer país europeu. Na Itália, França, Inglaterra, Alemanha, sua presença intelectual é muito mais poderosa do que aqui. Sim, o estrangeiro é muito mais sua casa do que o Brasil.

Isso só acontece num país que perdeu a sua consciência crítica. Bem sei que a “rebelião dos idiotas” é um fenômeno universal. Mas na Europa, nos Estados Unidos, todas reconhecem a dimensão mundial de sua figura. Ao saudá-lo, a Universidade de Sussex proclama que, depois de sua obra, o “Brasil tornou-se mais brasileiro”. Ao passo que, em nossa terra, as meninas de calcanhar sujo e os barbudos da festiva querem liquidá-lo pelo silêncio.

Tudo porque, na sua formidável solidão, não transige com as esquerdas. E, ao mesmo tempo, quantas mediocridades têm uma delirante cobertura promocional. Mas vejam: nos seus setenta anos, Gilberto Freyre fez uma obra para sempre. Daqui a cinco anos, os idiotas que hoje o negam ou, pior, que fingem esquecê-lo, vão desaparecer como se jamais tivessem existido. Daqui a duzentos anos, Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo; e sua figura terá a tensão, a densidade, a atualidade da presença física.

Na minha juventude, os literatos patrícios perguntavam uns aos outros: —“Quando sai tua Guerra e paz?” E todos respondiam: “Estou caprichando.” Mas a Guerra e paz não saía. Eu só imaginava o escândalo que seria se, um dia, explodisse, no Brasil, uma súbita Guerra e paz. Até que, há pouco, fui ler todo o Gilberto Freyre. Li e reli. Fiz a enorme descoberta. Sua obra tem o movimento, a profundidade, a variedade do romance tolstoiano. 

O Globo, 28/ 3/ 1970

Postado por Antônio de Oliveira / agosto de 2017

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Inimiga pessoal da mulher




Não sei se repararam, mas há qualquer coisa de alucinatório no Galeão. Os idiotas da objetividade dirão que se trata de um aeroporto, como outro qualquer. Engano. Há fatos e tipos que só acontecem no Galeão. Vamos supor: — acaba de descer um jato.
Ora, o jato entrou para a nossa rotina visual. Já o vimos às centenas, aos milhares. Mas o importante no jato não é o jato, e sim o seu elenco singularíssimo. Quando ele pousa, ainda saturado de infinito, estejam certos de que tudo é possível. Coloca-se a escadinha e abre-se a pequena porta. E, então, os passageiros começam a sair.
Descem rajás, mágicos, domadores, mímicos, profetas, bailarinos, e até brasileiros. Quanto aos brasileiros, já os conhecemos e passemos aos demais. Falei nas velhas internacionais que qualquer jato traz e qualquer jato leva? E, se duvidarem, até vampiros desembarcam dos prodigiosos aviões. Ou comedores de orelhas ou o índio que devora giletes.
Mas não falei de uma figura que é de uma singularidade ainda mais impressionante do que as citadas. Refiro-me à sra. Betty Friedan, líder feminista norte-americana. Digo “líder feminista” e começam as minhas dúvidas. Sempre escrevo que ninguém enxerga o óbvio, ou por outra: — só os profetas o enxergam. Pois é óbvio que a sra. Friedan não tem nada a ver com a mulher. E pelo contrário: — é uma inimiga pessoal das mulheres.
Não sei se sabem, mas a mulher tem vários inimigos pessoais. Um deles, e dos mais cruéis, são os grandes costureiros. É claro que os pequenos também. Mas dou um destaque especial aos costureiros célebres, que inventam modas, que milhões de mulheres seguem, em todos os idiomas, com uma docilidade alvar. A única coisa que os move, e os inspira, é a intenção evidente e obsessiva de extinguir toda e qualquer feminilidade.
Imagino o escândalo do leitor: — “Mas por quê, ora pinóia?” (“pinóia” é a gíria finada que acabo de exumar). Aí está um mistério nada misterioso. O autor dos vestidos vê a mulher corno a rival que o há de perseguir, do Paraíso ao Juízo Final. E, por isso, o empenho com que trata de transformar a mulher numa figura cômica.
Corno são desinteressantes as mulheres que se vestem bem. E o pior é que os costureiros, com diabólico engenho, atingem em cheio os seus objetivos. Realmente, nunca a mulher foi menos amada. Outro dia, remexendo nos meus velhos papéis, descobri uma crônica de dois anos atrás, em que eu próprio escrevia: — “Nunca a mulher foi tão pouco mulher, nunca o homem foi tão pouco homem”. O raciocínio é simples: — se a mulher é menos mulher, o homem será menos homem.
Há, sim, de um sexo para outro, um tédio recíproco, que já não permite nenhum disfarce. Eu disse, certa vez, que a lua-de-mel começa depois da lua-de-mel. Hoje, diria que a lua-de-mel acaba antes da lua-de-mel. Por outras palavras: — não há mais a lua-de-mel.
O que a sra. Friedan quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. Se vocês espremerem tudo o que ela diz, ou escreve, descobrirão que a nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: — “A mulher é um macho mal-acabado, que precisa voltar à sua condição de macho”. Dirão vocês que estou abusando do direito de interpretar e fazendo um exagero caricatural. Pelo contrário: — estou sendo fidelíssimo ao sentido dos seus textos, de todas as entrevistas que concedeu, em todos os continentes.
Temos aqui em "O Globo" uma repórter adolescente e linda. Mas adolescente e linda pode parecer pouco para a reportagem. Acrescentarei que, além disso, é inteligentíssima. A sra. Friedan recebeu a nossa imprensa em entrevista coletiva. Não sei se foi coletiva. Só sei que recebeu a nossa menina e disse o que lhe veio à cabeça, com uma audácia, com perdão da palavra, cínica.
Para a líder do antifeminismo, a mulher não tem nenhuma dessemelhança com o homem. Nenhuma? Nenhuma. Nem anatômica? Se ela não faz a ressalva, vamos concluir: — nem anatômica. E essa coisa misteriosa e irresistível que nós chamamos “feminilidade”? A entrevistada tem todas as respostas na ponta da língua, e não precisa nem pensar. Responde: — “A feminilidade não existe”.
A sra. Friedan é um ser todo feito de certezas. Jamais lhe ocorre uma única e escassa dúvida. Eis o que afirma: — a “feminilidade” é uma ilusão, ou uma impostura inventada por uma “sociedade de consumo”. Hoje, não há idiota que, aqui ou em qualquer idioma, não explique com a “sociedade de consumo”, todos os mistérios do céu e da terra. Com a tal “feminilidade” a mulher tem que comprar cílios postiços, maquilagem, vestidos, sapatos, lingerie etc. etc.
Shakespeare, no seu Hamlet diz, pela boca de Horácio, que “há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Mas Shakespeare não conhecia a “sociedade de consumo”, que é, hoje, a chave de todas as dúvidas.
A menina de O Globo não se conteve e disse: — “Pois eu me sinto muito feminina”. Segundo presunção dos presentes, a entrevistada não gostou de ser contestada. Com surda irritação, retrucou: — “Você pensa que é 'feminina', mas não passa de uma vítima da 'sociedade de consumo' “.
E, durante toda a entrevista, a boa sra. Friedan se limitou a fazer variações em torno da idéia fixa: — “A mulher tem que deixar de ser mulher”. E mais: — o homem é o macho perfeito e a mulher o “macho mal-acabado”. O ideal é que, no fim de tudo, tenhamos dois machos.
A nossa menina não se intimidou. Disse mais: — “Pois eu sou boneca, e estou muito satisfeita de ser boneca, e não quero outra coisa, senão ser boneca”. No fim, os colegas e a própria sra. Friedan queriam entrevistar “a boneca”.
A “boneca” voltou para a redação com um divertido horror. E o pior vocês não sabem. Quem está por trás da líder antifeminista? Quem prestigia e aplaude a sua cruzada contra a mulher, contra o casamento e contra a família? Uma série de progressistas da Igreja. Esses elementos a tratam a pires de leite como a uma úlcera.
Mas vejam vocês como vivemos numa época em que tudo se faz e tudo se diz. Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: — “A feminilidade não existe”. Diz mais: — que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe e esposa”. Para a pobre senhora a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado. Nem desconfia que sexo, para o ser humano, é amor. Há dez anos, ela não diria isso. E se o dissesse a família trataria de, piedosamente, amarrá-la num pé de mesa; e ela teria que beber água de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira. Hoje, porém, pode sair por aí a dizer, pela Europa, América, Oceania etc. etc., afirmando que a mulher é mulher não porque o seja, não porque Deus a fez, não porque a natureza tivesse raspado a sua barba antes de apresentá-la ao homem. A mulher é mulher — afirma a sra. Friedan — porque a “sociedade de consumo” assim o quis. Entendem? Não Deus ou a natureza, mas a “sociedade de consumo”.
Mas e os sacerdotes que estão metidos com a santa senhora e a promovendo? Meu Deus, no mundo em geral e no Brasil em particular só um vendaval de patetas está varrendo tudo. A sra. Friedan só seria viável não numa “sociedade de consumo”, mas num sinistro mundo de idiotas.

In Rodrigues, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 192.

Postado por Antonio — São José dos Campos, 24 de Agosto de 2016.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A menina sem estrela — A cegueira


Nelson Rodrigues

Nota: Trago ao Blog, mais uma vez, o grande cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Neste texto, muito intimista, ele nos comove com a revelação de um das passagens mais tristes da sua vida: a filha Daniela que nascera cega. Aliás, cegueira que ele temia mais que a morte. Com vocês Nelsaço!

Já contei o pedido que me fizeram na igreja. Depois da missa, uma senhora veio me dar os pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila. E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava na minha cabeça. Não escrever mais sobre velórios, nunca mais.

Mas o que a senhora pedia era uma rigorosa impossibilidade. As nossas lembranças estão debruçadas sobre velórios e sobre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: — o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia fabulosa.

Falarei também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Esse Carnaval iria desfigurar a cidade, o seu povo, influir em nossos costumes, sentimentos, ideias, valores. Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho, o oculista que examinara os seus olhos.

Ah, me lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos entrando em General Osório; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua compaixão não confessa, apenas insinuada. Minha vontade foi fazer-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.

Vou dizer a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho. Odiei o oculista que não acreditava em milagre.

Ele fora à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase, quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse nada, nem ele mentiu.

Deixou-me na porta da TV Rio. Eu estava tenso, mas calmo. Apertei-lhe a mão, agradeci a carona. E foi só. Mas minha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.

Eles diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais. Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo, menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra: — já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”.

No dia seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D.Lidinha o chamara. Nos braços da mãe, Daniela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar. Disse a sua verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”. Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando se despediu, me precipitei: — “Voucom o senhor”.

Ainda no elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo que o senhor disse é fato? Pode falar,doutor, não me esconda nada”. E repeti: — “Quero a verdade e nada mais”. Foitaxativo: — “É isso mesmo. Eu acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de luz.

Hoje, minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos. São de um azul doce, triste e diáfano. Ainda não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que,por um momento, fui colhido por um surto de ódio tremendo.

Aqui, deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo como aquele menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete, os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na espanhola.

Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos.

Era em 1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes, inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa, suas varandas pendem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o grande mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão ofendido.

Não, não. Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo: — durante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão. 

(Rodrigues, Nelson, 1912-1980. A menina sem estrela)

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Pacto de amor



Tenho pensado muito no amor. Durmo amor, acordo amor, resmungo e respiro amor. Tomo café sentindo aroma de amor. As canções no carro, na vitrola são de amor. Meus filmes antigos — Oh my God! — são histórias de amor... Incomoda-me não o amor nesses dias, mas o que resultará do mundo se rarear pelo espaço e tempo. Mas que amor é esse que as pessoas clamam, buscam, rastejam por querer?

Outro dia, numa conversa sobre política, sem querer, soltei a frase: "Este mundo não está legal...". Sem dizer precisamente o quê. Fazia referência a tudo que nos cerca, dos caminhos tortos que a vida, no conjunto da raça, tem tomado. Com valores distorcidos, moralidade ética baixa, corrupção alta e muita gente não se indignando com nada. Simplesmente assistindo tudo, passivamente, comendo pipoca, ouvindo música pelo iPhone, numa fria arquibancada de cimento.

Não sei dizer se já foi pior — guerras mundiais que não vi, com muito ódio espalhado por aí —, mas o amor não vai bem no mundo, senão não estaríamos reclamando tanto sua ausência, ouvindo queixas das pessoas de todas as idades. Reproduzo, no anonimato, um pequeno texto que recebi pelo WhatsApp (modernidade do desabafo): "...O que há com o mundo? Será esse o nosso destino permanecer só? Quem muito deseja tem seus sonhos traídos, mas aqueles que não esperam são surpreendidos. E eu me pergunto: onde está o amor?". Desabafou minha nova amiga, que já confessou o sonho do casamento e da maternidade. Ela, apesar de nova, tem desejos antigos: quer ser mãe de muitos filhos e ter um amor para vida toda.

Não dá para responder de súbito, ou tentar campear palavras, quando de quem se queixa não é um indivíduo único; aquele que dia desses abria a porta do carro para ela entrar, e dizia coisas lindas no seu ouvido. Mas de uma legião de outros semelhantes, gananciosos por ostentar e preocupados, e tão somente, com seu umbigo, sua cerveja, sua academia, seus bíceps, suas festinhas, happy hours sem compromisso e por levar um número maior de moças para cama.

Dizer o quê? Há esperança de o grande amor acontecer um dia? Sim!, ela é nova, bonita e ainda é possível que um desses por aí, seja diferente dos demais (despertado do seu egocentrismo), e sua alma o encontre na fila do supermercado. Muitos tropeços acontecerão até aquele eterno namorado venha sufocar seu vazio e dor.

Há muitas frases que Nelson Rodrigues deixou. Estou lendo agora o livro de Luiz Felipe Pondé "A filosofia da Adúltera", onde ele disseca o íntimo rodriguiano. Nelson filosofou muito sobre o amor, mas a que separei para este singelo texto é: "Este mundo não é a casa do amor". Havia um contexto, é claro, mas fiz minha interpretação: "casa" é moradia e o amor não encontra morada nessa casa (Terra), ele mora em algum lugar, mas não aqui. Não nega sua existência, ele só diz que não mora aqui. Ele perambula mendigo por ai, batendo de porta em porta, mas seu presente e futuro é o chão da rua, sem lar e sem comida. Não tem morada o amor neste mundo. E quem quiser visitá-lo, na essência, terá que se aventurar rompendo fronteiras cósmicas — galáxias (?). A morte, talvez, seja o alcance da plenitude desse amor, na divindade. Quiçá quisesse dizer Nelson: sendo o amor flutuante, inconstante neste mundo, ele não pode encontrar morada onde o trata tão mal e em segundo plano.

Em outros tempos vivi confusões sentimentais. Com elas havia pessoas envolvidas e a psicanálise para desatar tantos nós... Não, hoje eu não sou um ser totalmente "limpo" da sofreguidão pela maturidade; de coisas postas no lugar, organização, sem pecados e um tanto blasé. Erro, mas teimando em acertar mais com a vida.

Fiz amor, quando na verdade fazia sexo. Depois aprendi que não era amor, porque mulheres gostam de dizer que é, talvez porque procuram em tudo o amor. Até no sexo. "O sexo suja o amor. O homem deve possuir todas as mulheres, menos a bem-amada" — disse Nelson Rodrigues. Fingi amor, quando tinha só desejo pelas pernas, pelas coxas, pela bunda, pelos seios e pela boca da mulher na cama. Elas sabem nos enfeitiçar e fui dominado muitas vezes por magia, aflição, loucura e desejo febril. Não senti o amor acontecer depois de tudo consumado. Na manhã seguinte, ele não estava ali entre nós. Era só um gosto amargo de ressaca; uma mistura de gozo com altas doses de whisky, sem Engov.

No sexo, os corpos se trepam; no amor eles se aconchegam.

Agora veio à mente um texto que recebi, na época que ainda se encaminhavam e-mails (começa já fazer tempo...). Dizia o monge da história, que o amor não era um sentimento (separando-o da paixão), mas uma decisão que se toma juntos. Se decide amor, não se sente amor. Desprezei-o e mandei-o para lixeira virtual... Passados esses anos, sinto aquelas palavras me penetrarem como água. O que sentimos, muitas vezes, são sentimentos efêmeros (tesão, atração, ânsia, ciúme); de pouca duração, de horas e dias finitos. O que não conversamos antes, para que tudo dure, é sobre pacto, compromisso, acordos, tarefas, cumplicidade, comprometimento, na presença e na distância dos olhos. Cumprir um acordo, como se negocia um contrato comercial registrado em cartório.

O leitor pode perguntar: "Você está dizendo que o amor é um negócio?". Sim!, exemplifiquei como negócio de objetos, mas o amor é parceria; o amor é negócio de alma; tem profundidade em regiões inatingíveis, onde os objetos não fazem diferença, parte e não penetram. O mais que tudo que precisamos. Aquilo que o psicanalista Flávio Gikovate chama de "mais amor".

Afirmo que o amor é pacto, decisão, trato. Quando duas pessoas têm firmado entre si uma relação cúmplice, e mesmo estando longe de suas vistas, a palavra será mantida, porque tem peso e valor; a fidelidade do trato daquele negócio que se serviram e selaram entre elas — olhos nos olhos. Nas discussões, brigas, o pacto do amor é o pêndulo do equilíbrio que traz a serenidade, acima de qualquer grito mais alto que se ouse, e que supera todas as palavras duras. Pacto de amor, de sangue, de vida e morte, porque não se quebra um trato certificado na alma.

Antes de iniciar o caminhar, vejo aqueles que pactuam o amor na confidência; mas há aqueles que os olhares se cumpliciam já à primeira vista, sem palavras, como se as almas falassem por si. Na palavra ou no olhar, tudo é um pacto que torna as vidas agora transpassadas, entrelaçadas, fundidas numa só; um resgate do amor mendigo (ainda que neste mundo, seja possível existir e morar).

E ao raiar de todos os dias, depois do desfrute dos desejos entre pernas, coxas, seios, boca e sexo bom, que o amor seja devolvido ao corpo sagrado, descoberto do colo e útero da mesma mulher. O meu afã é pela alma feminina. Onde reina meu amor. Onde mora o amor perfeito. 

© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Agosto de 2014.