BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quarta-feira, 5 de abril de 2017

De volta ao quarto escuro

Algumas crônicas requerem coragem para escrever. Como se uma fratura da alma fosse ficar exposta; um réu confesso de um crime que só você sabe, porque o assassino e o cadáver é você mesmo.

Bem, no caso, não se trata de um crime, mas de velhos segredos (de liquidificador), esconderijos de um poço fundo. Dessas coisas que empurramos para debaixo do tapete do tempo ou, como já disse em outra crônica, aquele quarto escuro no fundo de casa, onde amontoamos nossas memórias e tudo aquilo que negamos do passado: dores, vexames, vergonhas, pobreza, fome e mortes. Há sempre dores na memória prontas para serem reveladas. As dores da fome e da morte são doloridas de lembrar. Então, acobertamos.

Estava esses dias carregando meu Kindle (aparelho de ler livros digitais). Parei na espera do médico, abri, digitei a senha e comecei uma cronica de Nelson Rodrigues. Ele descrevia (confessava) exatamente sobre essas duas negações: fome e morte. Ninguém consegue falar sobre isso, quando tudo ainda está consigo. Só falamos quando já superamos a dor, ela já foi. E Nelson, corajoso, contou de uma infância, do dia que pediu água para beber num botequim. A água não era sua sede, mas sua fome. Era a primeira coisa que punha na boca naquele dia, já às 8h da noite. Dores de fome na infância.

Na mesma contextualização veio a sua lembrança a "Espanhola". Aquela gripe que fez, em 1918 (por todos os cantos por onde se olhava), um amontoado de defuntos. A morte que acostumamos já na infância, e dela aprendemos a não ter medo. Escreveu no final: — "A peste deixara nos sobreviventes, não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. A cidade estava cansada da morte". Coisas de um mundo que essa nova geração (do lado ocidental) não se assemelha e nem sabe que existiu. Somos apartados e poupados do convívio, da cara da morte, da carne exposta. As crianças da classe média, que passam Nutella no pão, mais ainda.

Eu testemunhei a primeira morte, ainda de olhar pueril, com certo espanto e assombro. (Testemunhei, não, eu senti.) Ali pelos meus seis, sete anos. Era um menino paraplégico que havia morrido próximo de mim. Morava duas casas da minha. Primeiro, queria dizer que minha tia já havia perdido alguns filhos recém nascidos. E aquela cena de caixãozinho na sala, parecia comum. Como se a cada ano se esperasse um novo enterro para despachar. E lá ia o cortejo, a pé, para uma sepultura branca e singela, como tudo era na nossa vida.

Ouvia os adultos falarem de morte, e eu sempre no meu assombro sem manifestação. Eu era silencioso e complacente. Havia uma fala entalada em mim, sem nunca pronunciada. Ela teve uma filha, que me lembro, durou mais de um ano de vida. Acho aquilo que levou aquela priminha era uma meningite. Não pude nem chorar, porque criança não entende muito de perda. A criança, em nós, imagina sempre algo confortável, como um anjo. Era um anjo erguido aos céus. Eu imaginava assim: não há dor quando se vê um anjo.

(O que me recolhe mais ainda para dentro do catolicismo, não é só o respeito aos meus pais que me deram sua religião, mas também esse encontro de vida e morte; de compreensão, na fé, que nada termina, mas, sim, se modifica, se amplia numa extensão de alma. Não há explicação racional.)

Volto ao caso do amiguinho — não vou dizer o nome. Era uma amizade de limites. Explico. Ele não podia fazer as coisas que eu fazia: correr atrás de pipa, pular corda, jogar bola, etc. Mas não havia queixa nos seus olhos; eu amava sua companhia e não enxergava nada nas suas limitações, não havia pena. E mesmo sentado na sua almofada xadrez verde, do quintal, ele "batia figurinhas", empinava suas pipas. Tinha habilidades com os dedos para fazê-las ganhar os céus com rapidez. Coisa que eu não tinha.

Havia, eu me lembro, um carrinho de madeira com rodas de borracha, que nós levávamos seu corpo miúdo para onde queríamos. Até para a escola ele ia no carrinho de madeira. Nas outras vezes era carregado no colo como um recém nascido e quando se sentava no chão, era sempre na almofada xadrez. Suas pernas eram finas, sem carne e o joelhos saltados, sobressalentes, só ossos.

Havia algo mais, suas pernas não se esticavam. Franzino, queixo fino, pequeno para os seus 12 anos, ele ia diminuindo quando as dores chegavam. Atrofiava e a dor vinha em compasso, cumprimindo seus ossos. Uma vez teve uma crise. Primeiro, ele reclamou que o café com leite (era mais leite que café) estava com nata e sua mãe tirou com toda paciência. No dia que um médico foi chamado, eu fui para o corredor, dos fundos da casa, espiar da janela. Vi o médico apertar seus joelhos saltados para baixo. A perna não esticava, o joelho não obedecia. A doença estava se agravando.

Quando veio a notícia de sua morte, recebi resignado, sem choro, porque ninguém chorava naquela época. Era esperada sua hora e todos já haviam chorado por dentro, e muito antes. Alguém em casa ainda comentou:  "tiveram que empurrar seu joelho para fechar o caixão". O joelho não obedeceu nem depois da morte, era rígido. Pus a cabeça no portão, e vi pessoas se aglomerando na frente da sua casa. Não sai dali até que o cortejo partisse. A vida seguiu depois e eu guardei aquele menino no meu fundo quarto escuro, nas minhas memórias de dor e morte.

No dia seguinte (e nos outros) estávamos novamente na rua; nos carrinhos de rolimã, atrás das pipas, da bola, piões, cata ventos, balões e estrelas no céu. O vento no rosto e a camisa xadrez tampada com remendos, e calção de brim grosso. Esquecer quem partiu já era parte de nós. Quem nasce na pobreza, nunca escapará de um "não", de uma ferida aberta (sem Merthiolate), que não nos queixamos da ardência e sangramento. Mas, mesmo na escassez, a vida tem também o seu "sim". Sobreviver é o "sim" da miséria.  E, por acreditar que tudo passa, chegamos à vida adulta. Aprendi, desde então, a ter que aceitar a morte nos pequenos homens como eu era — 7 anos. Era destino, fatalidade. Nunca havia culpa. Por trás de muitas delas havia, sim, a pobreza. Se morre, porque, em muitas vezes, se é pobre.

Certa vez ouvi de uma pessoa (uma mulher) que, ter dinheiro e perder tudo é pior que nunca ter tido nada. Quando acostumamos a não ter nada, não nos importamos com as pequenas perdas. Ela falava de si e estava certa no seu modo de pensar. Aquele que é pobre não se compara a ninguém. Exceto a ele mesmo.

Olho, agora, as velhas fotografias, amareladas e o que chama atenção não são nossas feições (pai, mãe, irmãos, primos), mas as paredes que estavam atrás daquelas silhuetas. Vulneráveis paredes, sem reboco e muito menos tinta. Eram tijolos expostos, com argamassa de terra (sem cimento). Os tijolos de uma fome, uma fraqueza, num sinal crível de pobreza. Quanto mais tijolos vistos e terrenos cercados por taquaras amarradas, maior era a pobreza. Nossas fotografias não escondem nada. Radiografam uma memória: éramos pobres.

Se escapamos da morte na infância, devemos à sorte e não a prevenção e cuidados com vacinas e medicamentos. Um médico, um hospital eram coisas distantes da vida de quem morava periférico do mundo. Os pés descalços, o esgoto correndo pela rua de terra, a água de poço, a latrina, etc. Não havia medo de doenças e de nada. Mas havia algo bom: as balas, o bolinho de chuva, o pão doce com mortadela, o ki-suco, o café com leite e farinha de milho. Havia um olhar de esperança e de não se enxergar na pobreza. Ter a percepção de que algo lhe falta, dói mais. Eu não tive. Eu sonhava coisas pequenas de um mundo pequeno.

Certifico, por fim, não vi a fome, como Nelson, mas a quase fome me avizinhou como um trem fantasma. Quando, na memória, tocamos nossas dores e mortes, é como se palavras se desprendessem ao vento do nosso livro aberto. A voz entalada da infância, que agora se solta, além das cortinas e janelas da alma.  O quarto escuro é o velho passado, cansado de tanta dor, pobreza e morte. Agora escancarado, vasculhado na narrativa. O passado fenece quando falta coragem para tirá-lo da escuridão e expor no meio da rua, à luz do mundo.

"O que não se diz apodrece em nós" — Nelson Rodrigues.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Abril de 2017

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Além das montanhas

(Comecei um novo texto sobre o bem e o mal, mas como aquele comediante Costinha, parei o causo no meio para contar outro que me pegou mais inspirado. Depois eu volto.)

Eu ainda subia em árvores quando estreou nos cinemas o filme Horizonte Perdido” (muitos anos já se passaram), e, como muitos outros, só fui ver tempos depois, quando adquiri grandeza, entendimento e gosto apurado. O filme é homônimo do livro de 1933, do britânico James Hilton. Acabei de ler o livro, mas o filme já  havia me trazido antes perguntas (algumas sem respostas); tudo que me levou numa viagem enigmática a um lugar distante e perdido nas montanhas, ao tempero de belas canções de Burt Bacharach. Lua azul (Karakal).

(O livro tem uma narrativa mais detalhada e um final diferente do filme. As minhas questões, porém, são as que o filme me deixou.)

Três anos atrás, quando vasculhava uns filmes completos no YouTube (esses de domínio público), deparei com o Horizonte Perdido. Vi as primeiras cenas, sem saber do que se tratava, e de cara já gostei da música. Baixei o filme, com uma qualidade ruim, diga-se de passagem, mas assisti atento e emocionado com sua mensagem sutil; depois a contribuição das belezas de Olivia Hussey (Romeu e Julieta) e Liv Ullmann. Há algo surpreendente. E uma pergunta incomoda ao espectador: foi sonho ou realidade?

Depois da queda do avião, um grupo de cinco pessoas (no livro são quatro) fica perdido nas montanhas nevadas do Himalaia. Ali, longe da civilização, Conway e seus companheiros estão entregues à sorte. Mas, antes que pudesse bater o desespero, são surpreendidos por uma expedição que passava (ocasionalmente?) por ali. Depois de lhes darem alento, aqueles andarilhos oferecem agasalhos e sapatos adequados para a neve. Mais do que isso, aquele guia, num gesto acolhedor, também lhes oferece abrigo num mosteiro, muito além das montanhas. (Eles não sabiam o que encontrariam.) 

Horas e horas de longas caminhadas e vento forte, eles chegam. Ao avistarem aquela paisagem de floresta muito verde e construções como uma vila medieval — ao avesso de tudo do outro lado da montanha —, percebem que estão num lugar paradisíaco, onde a água cristalina jorra das colinas, o clima é ameno e a vida é lenta como será longa.

Shangri-la era um paraíso, de fato. Naquele mosteiro, num canto esquecido do planeta, iriam perceber uma comunidade apaziguada sem tristeza, roubos, mentiras, perseguições, corrupção, fortunas e muito menos comunicação com a velha civilização — como depois descreveu o monge Tchang. Seria possível aquela vida isolada de tudo?

Mas eu enxerguei mais do que isso no filme. Aquela descrição de paraíso, incrustado no meio das colinas nevadas, remeteu à um vácuo, um fio atando a vida terrena à morte — um universo paralelo. Aquele instante que a vida se esfacela, com o desvendar do outro lado (da montanha) e a opção de viver o eterno ou o risco de voltar e morrer (definitivamente) nas avalanches das cordilheiras e de outras doenças. Shangri-la parece um caminho sem volta.

Richard Conway (Peter Finch), como os demais, ia percebendo aos poucos como Shangri-la era agora sua última fronteira. A dúvida que atormenta, do desejo de voltar à civilização, só revela a vida viciada de mentiras, violência e de abandono que não conseguimos nos libertar. (Para onde vamos não há volta.) Parece que não  fomos programados e não suportamos uma vida em paz, sem desejos, exuberância e o poder do dinheiro. Aquela vida sem desafios, guerras diárias num tempo que não passa de Shangri-la, anunciava uma tediosa jornada. Cadê as notícias ruins?

Assim penso que seja o outro lado da vida (da montanha) — parece o que se propõe o romance. Quando atravessamos, não olhamos para frente e diante de quem estamos, mas olhamos para trás e tudo que deixamos na vida interrompida; achando que podíamos ter vivido mais, ter tido mais, ter viajado mais, sonhado mais. A angústia da não aceitação, que não se tem mais aquele corpo, do outro lado, mesmo sabendo que lá o tempo não passa e não precisamos juntar riquezas como forma de sobreviver. Demoramos a entender que a alma se alimenta de outras coisas.

Já caminhando para o final, Conway é pressionado por seu irmão (ele se apaixonou pela "jovem" Maria) a deixar Shangri-la. Entre a cruz e a espada, ele decide, por fim, partir, deixando aquele sonho que  nunca imaginou ser tão real; e depois esquecer sua paixão por Catherine, a professora que conheceu em Shangri-la. Ele estava mesmo decidido a voltar à realidade da civilização, talvez porque duvidava que tudo o que vivia ali era mesmo verdade. Ao vê-lo partir, o velho Tchang, num ar de passividade e confiança, diz assertivo: "ele vai voltar".

Na caminhada, a neve, o vento varrendo e a avalanche vêm com crueldade, e aquele pequeno grupo se vê em risco. A perder toda pureza do ar e de todas as maravilhas de Shangri-la, Maria envelhece no caminho e morre de fraqueza. Ao vê-la morrer, seu irmão se joga num desfiladeiro e Conway, dias depois, é resgatado, despertando numa cama de um hospital de campanha. Ele teve alucinações falando de um lugar chamado Shangri-la, disse o médico. 

A morte talvez seja mesmo essa passagem, como acreditam algumas pessoas. Uma travessia desse para o outro lado da montanha, como um mundo em paralelo no meio, onde o tempo não passa e a volta é quase impossível. Mas a pergunta que fica sobre o final, quando Conway desperta do seu coma: foi realidade ou sonho? Não tem como saber o que se passou. Conway, então, foge do hospital e sobe as montanhas de neve novamente tentando encontrar o caminho que o leve à Shangri-la, onde está a vida que ele agora quer viver, eterna e com a mulher que amou.

Depois desse "the end", fiquei entalado me perguntando sobre aquele desfecho e até onde nossos sonhos podem nos levar. Toda vez que ouço notícia que um avião desapareceu na sua rota, penso que foi resgatado a um horizonte perdido; num mundo paralelo, onde a vida é calma e sob uma lua azul. Não houve morte, mas resgate. Uma verdadeira Shangri-la, onde o que menos importa é o tempo passar.
 

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2016
   

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O tempo que é tudo

Andar pela rua faz bem. E andar por aí, despretensiosamente e sem rumo, me faz pensar na vida, no big bang, em gêneses e apocalipse, nos homens, nas guerras, na globalização; faz pensar em mim... Buzinas, sons, luzes, cartazes, gente nesse vai-e-vem, entregue em sua catatonia; mergulhada em seu tédio e melancolia sem fim. Uns cruzam meus olhos; outros me tentam ultrapassar com o celular no ouvido. Onde vão parar? Quanto tempo eles terão? A cidade me devora, lembrei-me de uma canção... Andar agora me faz mal, com os porquês que me entopem.

Por um instante, eu só queria ser servido desse entendimento. Eu, como os outros que estão desse lado da vida, não pedi para estar aqui. Vim porque vim; vim sem convite; vim porque a vida deve ser missionária, talvez; vim porque todos têm que passar por aqui — o caminho. Vim de um gene contrário; não como animal ou inseto, mas com um cérebro evoluído. Seja esta a grande angústia e viver a se inquirir. Cá estou e onde está Deus que não vejo? Em tudo que zunia, fui pensar no tempo que temos; no tempo que nos resta. As horas passam; e os segundos, nem se fala...

Tente resumir sua vida em um dia. Você nasce à zero hora e morrerá 24 horas depois. Uma vida de mosca doméstica (elas vivem um pouco mais). Foi o tempo que lhe deu o Criador: somente 24 horas para viver como Ser Humano. O que fará com seu tempo? Agirá da mesma forma com o tempo que pensa ter, da longevidade da morte distante? Quando o cachorro do seu vizinho começar a latir, irá pular o muro e agredi-lo? Interfonará à portaria, pois sua vizinha do andar de cima usa um aspirador de pó bem na hora da sua siesta? Brigará? Roubará? Corromperá? Matará? Mentirá? Fará maldade, ou usará o seu mísero tempo para fazer o que pode ser melhor para você e os que te cercam? Lembre-se, você só tem poucas horas. Talvez fosse melhor ter um cérebro de mosca ou não pensar no fim tão próximo.

O tempo é o causador de tudo que fazemos com nossa vida; achamos controle sobre ele e não temos, na verdade, nenhum; achamos que somos indestrutíveis e iremos sair ilesos pela porta dos fundos, também não somos; achamos que chegaremos à velhice, como bônus da vida, e teremos tempo antes para dizer: perdão pela vida mundana que muitas vezes vivi. A morte parece distante, longe do nosso ideal de vida. Não penso nela, pois é melhor ver o amanhecer a me encher de esperança, do que me deitar com ela; então, deixo que chegue como um ladrão que me arrebata na noite escura.

Vejo, por exemplo, os jovens que morrem em acidentes de trânsito. Morrem porque veem a morte muito distante da aurora da vida; morte não entra nos assuntos das rodas. Mal sabem que essa sombra vive rodeando suas vidas, como um cão faminto - dizem alguns especialistas. Veem a morte mais próxima, sim, do avô que balança em sua cadeira na varanda; já a juventude que goza de plena saúde, de músculos fabricados em academia, é uma viagem sem fim. Só não vão perguntar quantas vezes, aquele pacato velhinho, já esteve à beira do precipício; quantas vezes, ele teve que parar para pensar mais na vida e o que estava fazendo com ela. Chegou até ali porque na linha da vida desviou os perigos, no tempo não estava escrito: hora de morrer. Pode ser que a morte nos encontre quando nós mais a procuramos. O tempo é o causador dessa falha de circuito.

Escreveu Rubem Alves sobre a morte de Ayrton Sena: “Enganam-se os que pensam que Senna competia contra os outros. Os outros também desejavam ser heróis, todos saíram juntos, em procissão, como se numa liturgia, a desafiar a morte”. Quem busca adrenalina não quer competir com ninguém; somente há um tempo, o de vencer; tem controle e se deixou na distância de sua morte; pode encontrá-la numa curva da estrada, na entrega de sua dor, ou na pista de fórmula 1.

O grande clássico das telas nos anos oitenta, Blade Runner — O caçador de androides (1982), traz à reflexão, entre outros recados subliminares, o tempo que temos de vida. Sua trama tem como cenário uma Los Angeles de 2019; onde replicantes e seres humanos quase que se confundem nas semelhanças físicas e também nas emoções. Ao mesmo tempo, em que quatro replicantes da linhagem Nexus 6, vão atrás de seu criador com o objetivo de aumentar seu tempo de vida, um caçador implacável os persegue. Ao deparar com o seu criador (Deus), o replicante beija-lhe os lábios e o mata afundando-lhe os olhos por trás dos seus óculos; o criador negou que lhe pudesse dar mais tempo de vida. Na cena final, no terraço de um edifício, o replicante — personagem de Rutger Hauer — se agacha e sussurra suas últimas palavras: “todos esses momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Antes, ele poupou a vida daquele seu caçador. Um filme para ser lembrando sempre.

A vida de replicantes que vivem somente quatro anos e as nossas, que poderemos viver mais, têm o mesmo mistério do tempo que nos resta e para onde iremos depois. Queremos mais do que nos foi dado. A humanidade e a ciência vivem a buscar alquimias que tentam prolongar a vida humana. É obscuro o mundo que não sabemos se existe depois. Uns dirão que é isso ou aquilo, dimensões infinitas; os de fé dirão que é a eternidade com Deus. Não importa, ninguém quer saber disso agora. Querem viver e muito, correndo atrás do tempo.

Agora meu tempo voa como um puma ligeiro no deserto escaldante; e o tempo de encerrar esta crônica já expirou alguns minutos. Hora de encerrar...

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2011.