BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 4 de maio de 2012

Um bom lugar pra ler um livro

Em 2010, postei aqui uma crônica sobre atendimento público, suas invenções e particularidades em consonância com o mundo moderno, ou o “aguarde para ser atendido”.

Depois de uma maratona de telefonemas, consultas, cafezinho (com e sem leite), revistas “Caras”, salas de esperas, descobri o óbvio das adversidades cotidianas: unir o útil ao desagradável (tirando do caos o prazer); ou como poder desfrutar de um bom livro, para o infortúnio momento da espera, e sem ninguém para puxar conversa.

Fui ao médico para uma consulta de diagnóstico precoce ou preventivo, nada alarmante. Como de praxe, ele me solicitou exames. Fui atrás das autorizações (tem isso ainda),  para tirar qualquer suspeitas dos problemas ortopédicos, que a idade insiste em me dar de presente. O laboratório refutou a guia médica, disse que faltou um relatório mais minucioso... Bem, aí começou meu drama de um mês. Sai atrás, mas sem pressa de chegar; e depois de alguns telefonemas e retornos, me informaram que o médico havia tirado férias em lua de mel (em Paris, talvez) e só voltaria atender no final do mês – mais trinta dias. Minha impaciência e meu sangue começaram a emergir e ser percebida, quando sua secretária, para se livrar de um paciente chato, me apresentou como sugestão outro especialista, que ela também secretariava. Aceitei prontamente a sugestão, mesmo porque – pasmem! – a consulta era um “encaixe” na manhã seguinte.

Na sexta-feira pela manhã, passei no trabalho e segui para consulta. Detesto ser pontual, em meus compromissos costumo ser adiantado. Então, cheguei ao consultório trinta minutos antes, isso também, porque a chance de encontrar uma vaga na rua antes das oito da manhã era bem maior. E foi verdade, achei uma vaga 20 metros do edifício.

Cheguei à sala de espera (quase vazia) e num silêncio doentio (sem trocadilho). O único barulho era das atendentes que conversavam baixinho, assuntos particulares e riam uma com a outra — baixo para não chamar atenção. A TV ligada (sem som) parecia um outdoor de mensagens e nem o closed caption para ler o que dizia o noticiário. Sentei e esperei. Como senti que aquilo pudesse demorar, me angustiei, por esquecer dos óculos que carrego há um ano quando comecei a não ver mais de perto; por consequência, do livro que chegou pelo correio no dia anterior. Que falta me fez ali. Um bom lugar para ler um livro.

Folhei revistas vendo fotos nubladas, quando uma senhora apontou no elevador. Ouvia sua voz mesmo antes do elevador abrir as portas. “A felicidade é barulhenta”, li do autor do livro que deixei no carro. A mulher arrastava uma perna, e por isso era guiada por sua filha — presunção. Quando ela chegou ao balcão disparou a justificar do seu atraso, porque um carro havia incendiado nas imediações do shopping e ela teve que desviar o caminho; e a atendente com aquela cara e olhar de “e eu com isso...”. Por fim, sentaram-se as duas e a conversa prosseguiu em vozes altas, de irritar as moscas que já dormiam no teto.

Durante aquela longa espera, a mulher acompanhante, tirou o celular da bolsa umas três vezes. Pensei: àquela hora da manhã, deve estar acordando alguém... Na segunda vez foi para acordar alguém mesmo; ela ligou para avisar a pessoa que deveria ligar a TV, pois Luan Santana estava no programa da Ana Maria Braga... A velha senhora ao lado ainda comentou: “agora que ela pula da cama, mesmo!”. Mais alguns minutos de espera, ainda iria descobrir seus signos, o que comem, onde moram e mais coisas sobre a dupla barulhenta, mas fui chamado à consulta.

Voltei ao trabalho e peguei o telefone para marcar um dos exames que o médico — que não estava em lua de mel — me solicitou. Fiquei feliz que o exame poderia ser naquele dia, algumas horas. A atendente me indicou um laboratório dentro de um shopping da cidade, justificando que na matriz não havia vaga para estacionar — coisas da vida moderna.

Com a manhã já perdida por conta disso tudo, dirigi-me ao laboratório, sempre na minha impontualidade e agora com meus óculos e o livro.

Chegando lá, uma situação análoga: ar-condicionado, cafezinho de sachê (três tipos), poltronas confortáveis, senhas e espera (longa espera). Durante a demora pressentida, adiantei boa parte do livro. O exame de radiografia dos pés que caminho, durou menos de 05 minutos. Seria como esperar 50 minutos no embarque do aeroporto para um voo de 30 minutos de São Paulo à Curitiba. Peguei o protocolo da retirada dos exames e fui. Só notei as horas depois, já passava da 01 da tarde.

No caminho até o restaurante, veio à memória outra cena do dia anterior. Precisei ir à agência bancária onde tenho conta. Uma vez por mês me dirijo até lá. Para um atendimento “diferenciado”, subo ao setor “VIP”, das contas especiais. O mesmo ambiente: climatizado, cafezinho de três sabores, mulheres lindas, poltronas confortáveis, TV a cabo e muitos aposentados (supostamente com muito dinheiro em conta). Sentei confortavelmente numa das poltronas com a senha no colo e os olhos no painel. Um senhor “aposentado”, sentado ao meu lado, se virou para mim e disse: conforto, cafezinho, ar-condicionado, TV a cabo, mas o atendimento que é bom, nada! Faz 40 minutos que estou esperando para conversar com um gerente...”. Está aí outra dica. Agência bancária, outro bom lugar para ler um livro.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2012.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

É só aguardar...


O futuro chegou! Sim, e com ele novas tecnologias, novas ferramentas - tudo para facilitar nossas vidas. São tantas novidades que não conseguimos nos atualizar. Tudo ficou mais rápido. Afinal, mundo globalizado não pode haver perda de tempo: internet, cartão magnético, celular, chip, ipod, iphone, Google earth, GPS, TV a cabo, tudo deixou o universo mais ligeiro e melhor. Será? Vai chegar o dia em que vão mexer no movimento de rotação da terra para termos dias mais curtos ou mais longos, conforme o gosto e o tempo que se quer dar a vida. É só esperar para ver.

No atendimento ao público, por exemplo, houve avanços e inovações. Hoje já vemos coisas do gênero: área vip, camarote vip, estacionamento vip, caixa preferencial, convênio particular, sala de espera, personalité, SAC e outros. E as frases que você já acostumou a ouvir? “só um minutinho”, “aguarde na linha para ser atendido”, “já vai começar”, “tecle 9 para voltar ao menu...”, “não vai doer”, “já vai passar”, “desculpe-me”, “é só aguardar”.
Pegando por esta linha, já perceberam como anda a saúde no Brasil? Não, não estou falando do SUS, estou falando do pago mesmo; aquele de convênio particular com mensalidades altíssimas que você opta por acomodações diferenciadas e tem tratamentos diferenciados também para a mesma doença. Se você começar a imaginar vai ver como é comum a seguinte situação no nosso cotidiano:
Um casal de classe média levando a filha menor para um atendimento de emergência num hospital particular. A criança só tomou 11 gotas de rivotril. Descuidos dos pais? Sei lá. Sabe aquela coisa: remédio + criança, atração fatal? A criança começou a ter náuseas e vômitos, os pais saem em socorro para o melhor hospital, afinal, tem um convênio particular. Ao chegar ao pronto atendimento, já com gente saindo pelo “ladrão”, são recebidos prontamente por um homem de farda que você nunca sabe qual a sua função, se é vigia, se é recepcionista ou o escambal. Pelo sorriso e gentileza, você vê logo de cara que o atendimento será rápido, pois sua filha está mal. Então o homem orienta:
- Por favor retire a senha ali, depois é só aguardar.
No canto há uma maquininha, onde você aperta um botão e retira uma senha. O número é 68 e no painel logo a frente da recepção eles vêem 59. Como são 03 atendentes, vai ser rápido, afinal o atendimento é particular. Bom, o jeito é ter aquela velha paciência, acalmar a criança e como diz o “vigia”, é só aguardar. Quando finalmente o painel pisca o número 68 indicando o guichê n.º 3. Sentam-se esperando. A atendente não desgruda o olhar da tela do monitor. Claro, tudo para facilitar e agilizar o processo. Tudo muito rápido. Sem olhar para os dois, a atendente diz:
- Só um minutinho.
Levanta e se dirige até o guichê ao lado e começa apontar para a tela do monitor da atendente vizinha como se tivesse ensinando algo que ela não sabe. Depois volta e olhando agora para sua tela diz:
- Por favor, senhor, os documentos.
O pai entrega seus documentos e já sai consultando ali mesmo com a moça:
- Sabe, nossa filha tomou um medicamento...
A atendente nem presta atenção e começa a preencher o cadastro. Sim! Um cadastro mesmo, porque ficha de entrada não se pergunta nome do pai, da mãe, dos avôs, escolaridade (a criança ainda não foi alfabetizada), e-mail, endereço, CEP e por último a pergunta fatal:
- Qual o convênio?
- UNIMED.
- Desculpe-me Senhor, mas aqui neste setor não atendemos este convênio.
- Ah é? – responde o pai.
- O senhor deve se dirigir ao segundo andar; primeira porta a sua direita.
- Tá bom, o.k.
Quando o pai vai saindo com a mãe e a filha no colo a atendente interrompe:
- Senhor, o elevador está em manutenção, à escada é ao lado.
Quando já estão saindo, vem o homem de farda:
- O senhor é o dono veículo estacionado na frente do hospital?
- Sou sim – responde o pai assustado.
- Bem, Senhor, ali não é permitido estacionar. O senhor deverá retirar o veículo. Na rua de trás há vagas.
- Tudo bem, estou indo...
O pai deixa a criança com a mãe e sai correndo tirar o veículo.
A mãe sobe a escada com a criança no colo. É só um lance de escada.
No segundo andar aparenta ser melhor: poucas pessoas e com melhores acomodações na espera, havia até lugar para sentar. Atendimento VIP. O “cadastro” não é tão longo assim, não perguntam nem os nomes dos avós paternos. Alguns minutinhos depois a atendente entrega a senha de atendimento do médico e diz:
- Agora é só aguardar.
Realmente só há duas crianças na fila do plantão da pediatria. Tudo no mesmo andar, sem precisar descer a maldita escada. Vamos lá, calculando dez minutos para cada consulta, daqui a vinte minutos está tudo resolvido.
Neste tempo chega o marido com a camisa molhada e suando em bicas. Não se sabe se foi pela escada que enfrentou, se foi para encontrar uma vaga na rua ou se foi por causa das duas situações.
Trinta minutos depois aparece o número no painel. Finalmente. O médico abre a porta com aquele sorriso e já sai brincando com a criança:
- Olá minha princesinha, que houve com você?
A criança não dá a mínima para o médico e se esconde no ombro da mãe.
Quando o pai vai adiantar o assunto da consulta toca um celular. Era o do médico. Ele diz:
- Só um minutinho.
Era sua mulher do outro lado da linha, acertando os últimos detalhes da sua viagem para um congresso de pediatria no final de semana em Salvador. Alguns minutinhos depois desliga:
- Desculpe-me, era minha mulher. Vamos lá, o que houve com a princesinha?
O pai, já impaciente, dispara a falar. Antes mesmo que concluísse o médico diz:
- Vamos examinar?
Pega a menina no colo, deita numa maca, põe o estetoscópio no peitinho da criança, abaixa as pálpebras, olha a língua e conclui:
- Olha, ela não tem nada, acredito que foi só um susto.
A mãe que entrou muda, com olhar de surpresa, continuou a não dizer nada.
O pai, então:
- Ah é, não tem nada? Só um susto?
O médico:
- Sim, vão prá casa e façam um chazinho de camomila prá ela e coloque-a prá dormir. Amanhã ela já estará melhor. É só aguardar.
Saem do consultório mais aliviados ao saber que nada havia com a “princesinha”, mas com certo desconforto.
A criança já dormia no colo da mãe e não se queixava mais. Sem dizer uma palavra vão embora.
Quando estão passando pelo portão de pedestre que dá acesso à rua, ouvem uma voz chamando:
- Senhor! Senhor!
Era o vigia/recepcionista segurando um papel vindo em direção ao casal.
- O Senhor esqueceu.
- Esqueceu o quê? – indaga o pai, já irritado.
- O senhor esqueceu de preencher o formulário de avaliação do atendimento e sugestões.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2008.