BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Terreno Baldio

Essa crônica de Nelson Rodrigues pode ser encontrada no livro "A cabra vadia", mas hoje, exclusivamente, decidi postar aqui. É memorável. 

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é  nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de  vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreume a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística. Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo,  comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar.  Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Matarato!”. Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da  vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do  Tico-Tico  nem do  Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”. Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”.

D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”. Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este:  — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro.  D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.

Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz!  Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”. D. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O  arcebispo vermelho  fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O  santo é Guevara. E acompanho a moda”. Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência  da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, presidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva”. 

(publicação original em 14 de março de 1968)

 © Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / dezembro de 2018

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Síndrome d. Hélder

Abandono nas obras da transposição do rio São Francisco

Recordei-me agora da revista semanária Seleções Redear's Digest. Elas foram as minhas primeiras leituras já na pré-adolescência. Não lembro de publicação tão antiga e que ainda mantém o mesma estampa: tamanho, seções, capa, etc. Segundo minhas consultas, desde 1922. Lá se vão quase 100 anos nos jornaleiros do mundo todo.

Faz algum tempo estava na casa de um amigo que tinha muitas delas, era um colecionador assinante; havia  edições antes mesmo de eu nascer. Coisa assim do final da década de 1950. Curiosamente, passei uma tarde folheando, vendo principalmente os anúncios de xarope e eletrodomésticos.

Ah, os eletrodomésticos, fez-me lembrar de uma matéria que mostrava como seriam os eletrodomésticos do futuro. Claro, dei muita risada como as pessoas daquela época viam o nosso futuro (presente). O que me chamou atenção, veio à mente agora, foi o aspirador de pó que você coletava o pó numa tubulação na parede. E isso já existe, porque que já vi.

Mas o que fez-me aqui folhear a famosa revista foi mesmo uma piada. Havia — creio que ainda há — uma seção que se chamava "piadas de caserna". Eram piadas inteligentes, que eu sempre lia e decorava para contar ali na esquina. Mas uma ficou marcada, pois, o fato, tinha lá sua graça, nos levava a refletir. Piada inteligente.

Um velho médico oncologista se aposenta e seu filho, seguindo o mesmo ramo, herda seu consultório. Já nos primeiros dias de trabalho (ou meses), o novo médico chega em casa todo contente; e o pai quer saber de toda sua euforia. Foi quando ele diz: "Lembra daquela senhora gorda sua paciente, que tinha um câncer que parecia incurável, sofria há anos com aquilo? O pai: "Sim, eu sei qual é. Ela morreu?" O filho: "Não pai! Eu a curei. Ela está sem nenhum câncer". Onde o pai arremata: "Você fez bem meu filho, mas fique agradecido a ela. Seu tratamento foi o que pagou a sua faculdade...".

Volto ao terreno baldio de Nelson Rodrigues. Lá onde as verdades, ao espio da cabra vadia, eram arrancadas a ferro quente, como numa sessão de tortura, ao velho estilo dos chamados anos de chumbo. A figura e a síndrome d. Hélder se espalhou também no Brasil, agora "livre e democrático". Ela não vai acabar, enquanto houver pobreza e o discurso de mundo melhor. A sanha política só aumentou; e pouco ou quase nada se avançou na luta pela diminuição da pobreza e a seca nordestina. Há disfarces, truques, discursos, maquiagens aos quilos; e agora com assistencialismo embutido. Ninguém quer curar doença nenhuma.

Não é de hoje que a pobreza tem sido usada como embuste, sustentação, canal (sem trocadilho) para o establisment político. Se discursam nas campanhas a mesma ladainha e depois de eleitos dão as costas à causa. Falar da seca no nordeste é catequese, mas pôr a mão na massa ninguém irá fazer, porque sujam e calejam as mãos, e não terá mais a árvore para colher os frutos de promessas futuras. É fato, se o povo brasileiro tivesse um desnível social menos íngreme, muitos dos políticos que aí estão não teriam mais tanto espaço para cargos eletivos.

A seca do nordeste é remota. As obras de transposição do rio São Francisco, que poderiam diminuir a carência, manter a produtividade e as condições humanas na região, são, ademais, peças publicitárias, vídeos ilustrativos (parecendo real) de uma obra de arte invejada pelo melhor painter. Como no velho chavão: "falta a vontade política para tantas carências". Político não gosta de solucionar os problemas da população, porque são esses problemas que o sustentam por anos em seus mandatos. A síndrome d. Hélder.

E d. Hélder Câmara? A esquerda sempre se curvou a ele, uma coisa meio assim disfarçada de "luta" pelos pobres, TdaL, discurso manso, que dá preguiça de falar... Nelson Rodrigues desmascarava e ria da cara de cada um dos revolucionários e padres de passeatas daquela época; desses contempladores do crepúsculo de maio de 1968 (nenhuma maria antonieta foi decapitada e nenhuma bastilha caiu). Dirão: "foi uma revolução cultural". De fato, nada trouxe de significativo para os nossos dias, senão a retórica, porque nada tinha para apresentar de novo. Não havia uma agenda de mundo.

Por um acaso, li com certo atraso, a entrevista que o filósofo inglês Roger Scruton concedeu à semanária Revista Veja, em setembro de 2011. Disse Scruton: "Eu acordei do meu delírio socialista durante os tumultos de maio de 1968, em Paris. No meio da destruição, das barricadas e das janelas quebradas, percebi que aqueles estudantes estavam intoxicados pelo simples desejo de destruir coisas e ideias, sem a mínima preocupação em colocar algo relevante no lugar. Foi difícil aceitar que meu futuro era me tornar um pária intelectual em meio à maioria esmagadora de esquerdistas." Em outro trecho, ele arremata: "É uma tradição esquerdista, que vem desde o século XIX e de Karl Marx, em particular. Consiste em julgar toda forma de sucesso humano a partir do fracasso dos outros. Com base nisso, engendrar um plano de salvação para os mais fracos. Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos de esquerda continuam a fazer sucesso. Eles sempre oferecem uma causa justificável e uma vítima a ser resgatada. No século XIX, a esquerda pretendia salvar os proletários. Nos anos 60, a juventude. Depois, vieram as mulheres e, por último, os animais. Agora, eles pretendem resgatar o planeta, a maior de todas as vítimas que encontraram para justificar seus atos."

Voltando aos problemas da seca e as intermináveis promessas. Em novembro de 2013, o jornalista blogueiro Augusto Nunes escreveu em seu blog: "Os habitantes do país real ainda não conseguem enxergar a olho nu um único e escasso canal semelhante ao que aparece no vídeo provando que o sertão já virou mar. (Um mar de primeira, permanentemente irrigado por águas cristalinas que serpenteiam por desertos de faroeste americano e percorrem túneis mais modernos que o trem-bala). O monumento à criatividade lulopetista deveria ser concluído em 2010. Ficou para 2012, depois para 2014 e agora não tem prazo para sair do mundo da ficção."

Nessa história secular, pode ser que surja um político seguidor (apóstolo) de d. Hélder que queira dar jeito em tudo; cure o câncer do sertão nordestino: da pobreza à seca. No instante, se orgulhará e baterá no próprio peito por seu feito; depois, mais tarde, perceberá que precisará de outras doenças sociais, controladas em UTI, para manter seu ganha-pão e aumentar seu patrimônio, à custa de um discurso, diga-se de passagem, verborrágico, vigarista e oportunista.

Na vida real, o sertão vai virar mar, só na letra da música de Sá e Guarabira. O sertão sempre será o sertão árido, seco, pobre e explorado. Tudo que pavimenta o caminho e sustenta a retórica política.

Termino ponderando. Os inocentes e bons, se tiverem alguma chance de alcançar um status político, irão atrás das curas para os males sociais. Os hipócritas e covardes (a grande maioria) continuarão sugando, acumulando eleições e protelando doenças, em detrimento de uma pregação e de uma razão cujo único fim é o seu bem-estar pessoal.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro  de 2014.