BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 18 de agosto de 2017

As ciclovias deram errado

Cena da série "Call the Midwife"
O senso comum da mobilidade urbana é que os investimentos e projetos devam ser destinados, sempre e em primeiro lugar, ao transporte público de massa. Isso é o que se repete nos seminários e fóruns por aí. Ninguém mais irá discordar, porque é consenso entre todos. Mas por que o poder público e seus gestores — palavra da moda — insistem em transportes que falham? Por que nos últimos anos vimos cidades abarrotadas de ciclovias e ciclofaixas que viraram elefantes brancos? Investir em ciclovias é mais barato e dá visibilidade (pensaram); transporte público, como metrô e BRT, demanda um custo elevado e o resultado é em longo prazo. Todos ficam invisíveis. 

(Seria mais fácil apontar aqui as soluções, e não as falhas. Entretanto, os erros persistem, os grandes centros agonizam, e ninguém quer pôr o dedo na ferida.)

Confesso que fui um entusiasta — e sem perceber o modismo — ao enxergar as bicicletas como meio de transporte urbano. Ou: uma ramificação, um agregado do transporte dentro das cidades. Meu torpor durou pouco e passou. Quando fui arrastado para dentro, e vendo a cidade nas suas entranhas, percebi que havia mais problemas diagnosticados por um urbanista debruçado sobre um mapa de papel. (Esses olhares que faltam aos técnicos da área.) 

Olhar a cidade tecnicamente é pensar em máquinas, soluções de engenharia e ficar só nisso. Às vezes, a cidade é acelerada, em outras vezes é mais lenta, sem aparente razão, porque, organicamente, ela pulsa; e essa respiração é, antes de tudo, social e fisiológico. E antes de qualquer receita que se dê, olhando seus arranha-céus com asfalto quente, ela já fervilha sem nenhuma ação do poder; como sinais claros das angústias, traumas, sofreguidão e carências da população que nela habita. Desigualdades, onde, de um lado, uma classe média alta vê as ciclovias como necessidades; enquanto, nas franjas da cidade, a pobreza se espalha com pessoas morrendo nos corredores de uma UBS. Esse olhar que é preciso ter sobre o tecido urbano.

Esses dias eu deparei com uma manchete no portal G1. A matéria dizia que algumas mães da classe média carioca não têm usado mais as chamadas cadeirinhas para crianças no automóvel. E isso tem um motivo. E não tem nada com a questão que elas resistem à lei, ou porque a estrovenga toma muito espaço. Elas até acham necessário o suporte. O que amedronta essas mães é a segurança de algo que não tem a ver com a segurança no trânsito. Vem de fora, à margem da vida que se trava na cidade.

Uma criança presa numa cadeirinha — pensam elas — seria mais difícil retirar de dentro do carro em caso de um assalto, por exemplo. Muitas até treinam seus filhos como proceder diante da violência que apavora a cidade. Pensar em modos de vida progressistas e avançados num país como o nosso é muito surreal e chega a ser utópico. É abnegar outros fatores e não levá-los em consideração. A violência urbana não pode ser desdenhada num pais com 60 mil assassinatos/ano. Não tem como mascarar os monstros urbanos por um projeto bonitinho de uma ciclovia à beira mar. O brasileiro, desde sempre, carece, e  por isso peleja, por coisas básicas para sobrevivência nas cidades: moradia, educação, saúde e segurança. O fator transporte vem em segundo plano.

Quando começou a surgir a moda das ciclovias e ciclofaixas, muitos adeptos achavam que era só construir que a população iria aderir. (Foi o que disseram os franceses a nós.) E logo, todos veriam as maravilhas de um mundo sobre duas rodas; depois exigiriam mais e mais ciclovias nas cidades. Pensando assim, saíram construindo muitas ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas por aí — um dia o ciclista irá aparecer. Tomou uma proporção gigante, que até as cidades menores adotaram a ideia. Com isso, foi-se empurrando os carros das ruas, subtraindo estacionamentos e prejudicando claramente a economia da cidade. Os ciclistas convocados se recusaram e tudo ficou reduzido a grupos de ativistas. A grande urbe tem fome e sede de outras necessidades. Inclusive de justiça.

Hoje, essas ciclovias estão só nas cabeças desses ativistas ciclochatos, como ficou claro durante o governo do PT em São Paulo. A população, na sua maioria, não só não aderiu como rechaçou muitas das que foram construídas, principalmente a da Avenida Paulista. O saldo ilusório do prefeito foi que ele não conseguiu se reeleger. Um dos motivos foi esse: dobrar-se de joelhos aos grupos minoritários e autoritários, que dominavam sua agenda diária, e depois ser esmagado nas urnas pela maioria que ele não ouviu. A população estava certa.

E por que as bicicletas não deram certo, sendo o Brasil um país tropical, abençoado por Deus? Como falei, há um choque de culturas, desigualdades, nos grandes centros do país; é difícil enxergar a olho nu o que é e o que não é prioritário na vida na urbe. Falta emprego, moradia, segurança, cidadania, cultura, educação, respeito, igualdade. Asseguro, pois, a maioria das pessoas iria preferir andar em transportes com segurança, conforto, preço justo e rápido. Bicicleta no Brasil é sinônimo de lazer. Não tem vocação para servir de transporte. Isso é desvario, e eu afirmo.

Também no Rio de Janeiro, a prefeitura abandonou o projeto de aluguel de bikes. Em pouco tempo de uso, os estacionamentos (bicicletários) foram destruídos, com muitas bicicletas quebradas e sem condições de uso.
Estamos falando de um país terceiro-mundista, que ainda não adquiriu maturidade e respeito aos bens públicos e privados. País onde a pichação virou rotina nos grandes centros. País onde o cidadão acorda de manhã já pensando em malandragem e como tirar proveito do outro. País onde a justiça faz, muitas vezes, injustiça ou demora a punir. Como ser civilizado, criando programas de aluguel de bicicletas assim? Em junho último, o jornal O Globo relatou o problema com aluguel de bicicletas na cidade do Rio de Janeiro:
“Mas não é só responsabilidade da empresa as dificuldades que os usuários estão enfrentando. A má educação também tem uma boa parcela de culpa já que, com frequência, o funcionamento do programa é interrompido devido a atos de vandalismo. Desde que a Tembici assumiu a operação do sistema, em maio, foram 260 bicicletas vandalizadas, cerca de 10% do total.”
Faz alguns anos fui a um desses seminários sobre bicicletas, ciclovias, etc. Com certa preguiça para ouvir o blá blá costumeiro. Já estava ficando enfadonho quando apareceu um holandês para falar (em bom português) sobre o plano cicloviário da cidade do Rio de Janeiro. O cara era engraçado, eloquente, mas sua fala desviava quando confrontava com a realidade do país e das cidades. Na verdade, os aspectos socioculturais não eram considerados. Bem, ele estava prestando consultoria e só poderia falar bem e confiar no programa que propunha.

A certa altura, ele disse que muitos problemas de transposição de bicicletas, que conflitam com grandes avenidas (Avenida Brasil, por exemplo), a solução seriam os túneis somente para bicicletas... Posicionei-me melhor na cadeira, dei uma fungada e quase levantei o braço. Depois, deixei que ele concluísse e fui embora sem fazer-lhe nenhum questionamento sobre seu brilhantismo. Eu não poderia estragar e a plateia iria me condenar por colocar óbices na sua fala tão convincente. Ele ganhou aplausos uníssonos.

No mesmo Rio, que ele falava, na praia de Botafogo, bem próximo à marina, tem um desses túneis para pedestres. A passagem atravessa sete pistas da Avenida das Nações Unidas, com 35 metros de extensão. Um dia, há muito tempo, fui atravessar por ali. Era um cheiro forte de cocô e urina impregnados no ar. (Saí de lá com ânsias de vômito.) Um dormitório de mendigos, onde o risco de assaltos, ataques e estupros era eminente. Por isso, ninguém o utilizava, e todos preferiam se arriscar atravessando as sete pistas ou andavam um pouco mais até o próximo semáforo.

Olhar sobre um mapa e não enxergar, do chão, do broto, a cidade que pulsa com suas desigualdades e problemas crônicos; onde pobreza e riqueza convivem juntos no mesmo quarteirão é fazer projetos que nunca irão sair do papel. Imagina construir mais túneis iguais a esse (!), sem antes tirar os mendigos, os drogados, trombadinhas, os marginais, os punguistas, a fome das ruas; depois, estamos falando de uma cidade cercada, sitiada por morros com toda violência oriunda do tráfico de drogas. Imagina só.

Não obstante, com esse modismo, iniciou-se também um comércio (antes não havia) de novos e caros modelos de bicicletas. E aí — estamos falando de Brasil — as bicicletas começaram a ter valor também no mercado negro. O roubo de bicicletas de luxo só aumentou. Um amigo relatou que no prédio onde ele mora, certo dia (à luz do sol), ladrões invadiram o prédio arrombando o portão da garagem e foram direto ao local onde ficavam as bicicletas. Levaram as que puderam com preferência àquelas que têm valor maior no mercado. Como elas não tem placa ou chassi são facilmente passadas para frente. 

Lá no Rio também parece que as piores histórias só existem lá, mas não é perseguição, não. São aquelas que me vêm à lembrança , em 2015,  um médico foi esfaqueado e depois veio a falecer quando um menor o abordou para roubar sua bicicleta, enquanto ele pedalava no entorno à Lagoa Rodrigo de FeitasClaro, o menor não foi punido, mas a família do médico ficará enlutada para sempre. Como tem-se dito nas redes sociais: é vida que segue.  A solução dada foi uma lei para proibir o porte de armas brancas. Inacreditável!

(Os verdadeiros ciclistas, que gastam para ter uma boa bicicleta, sem modismo e ativismo, pilotam por esporte, em grupos, e não andam em ciclovias. Eles pedalam por aí, em rotas e trilhas de terra. Tudo fora do convívio urbano.)

Mas, por que essa ressurreição das bicicletas como meio de transporte? Primeiro, porque na Europa ela voltou com força e é usada como acessório dos deslocamentos. Nem precisa dizer que, bem antes, eles investiram muito em transportes de massa, deixando as ruas menos densas de automóveis. (Não adianta trazer o modelo, se não trouxermos também as pessoas. Isso também é claro.) Depois, porque virou moda mesmo nas cidades brasileiras. Coisa de político populista em consoante com essa classe média alta, chique, descolada, hipster, vegana; essa turma que só vê maravilhas, arco-íris, vantagens e não enxerga os becos escuros e violentos da cidade em sua volta.

Não há demanda, hoje, que justifique os investimentos em ciclovias. As prefeituras adeptas escondem as estatísticas, os dados, os números para não ter que se explicar depois à opinião publica o porquê do empenho em algo que tem pouco ou nenhum uso. E não dá para afirmar que esse delírio (e tara) por bicicletas é coisa de governos do PT. Tem muitos gestores públicos, de outras legendas, ainda embarcando nesse modismo desmedido.

A bicicleta como transporte deu certo (e sem ciclovias) no passado, até a década de 1960. Quando as ruas ainda não eram dominadas pelos automóveis, as bicicletas eram o meio de transporte do jornaleiro, do leiteiro, do padeiro, do florista e da parteira. Na série inglesa "Call the Midwife" (está no Netflix), ambientada no subúrbio de Londres, no final da década de 1950, mostra as parteiras montadas em bicicletas indo atender à população carente. (Vale a pena assistir. Imperdível!) Ali, ainda sem as grandes aglomerações urbanas e o fomento da indústria automobilística (que tomou depois também o terceiro mundo), a bicicleta era o jeito fácil de locomover com a vida mais lenta e menos agitada. E depois sem a conversa chata desses ciclo-ativistas. 

Este é o país que precisamos considerar quando pensamos em soluções práticas de urbanismo. Um Brasil servido na bandeja da corrupção, cercado de violência por todos os lados; de instituições carcomidas e falidas; um país que teima em não dar certo como suas ciclovias. Por que será?

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / agosto de 2017


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A cidade dos sonhos


Quantos afoitos e assanhados da mobilidade urbana (assunto da moda política) vivem ruminando seus sons em debates sem fim; com o olhar de esguelha sobre um prisma da cidade que lhes interessa. Então, vai pimenta no debate.

Foi justamente num sonho que ele me falou (um anjo)... Às vezes é preciso olhar além das fronteiras do óbvio e do objeto: a escala humana da cidade. A coisa é maior que o simples transporte que se toma para visitar um tio do outro lado da cidade. Mas num canal de ideias, confrontando e abrindo layers sobrepostos nos vários outros seguimentos que envolvem a vida nas cidades: Morar, transportar-se, encontrar-se, se sentir seguro, se sentir justiçado, se sentir protegido, ter amigos, ter família saudável, ter escola, ter lazer, ter saúde pública de qualidade e ser feliz na urbe.

Não adianta discorrer sobre mobilidade, querendo que todos andem de bike (só pra dar um exemplo), e depois ficar tecendo no imaginário uma outra bucólica cidade de paz; dentro de uma ordem pública estabelecida, de policia sem armas, de gente feliz, com drogas legalizadas, cadeias vazias, bibliotecas bem visitadas, museus, iPhones pra todos e mulheres vendendo seus corpos em vitrines, como em Amsterdam.

Sem o alcance do desenvolvimento educacional, cultural, social e político não se sustenta o restante. A comparação é torpe e longínqua. Alcançar meios de transportes sem igualar a cultura cidadã é uma coisa bem amadora. A carroça ainda está presente na alma brasileira e o temor da cidade também. Como enfrentar e equalizar tudo?

O Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro não têm forças (moral e política) pra enfrentar black blocs nas ruas. Eles estão aí soltos quebrando e incendiando as cidades. Este é um ponto. A PM virou alvo de todos e inimiga pública número um. A insegurança se espalhou como rastilho de pólvora, com artistas e juízes (?!) apoiando os incendiários da cidade; e todo mundo  querendo transporte de primeiro mundo... É como fazer cirurgia na precisão de um bisturi de um lado e na cegueira do gume de um facão do outro, e tudo no mesmo corpo doente.

Como falar em mobilidade urbana (padrão FIFA) tendo um povo e governos miseráveis e numa enfermidade mental sem cura; e num momento como esse, quando as cidades estão em ruínas. E a vida cada vez mais cara para viver, com governos corruptos, impostos altos e sem retornos em projetos que sustente uma simples vida. Como ser feliz na cidade só andando de bike?

Quem dera fosse só organizar os espaços, distribuir seus modais por canaletas e ciclo-rotas; com o ir-e-vir livre e barato; como aquele garoto de Liverpool que atravessou a cidade num bus, só por saber que um ser qualquer, do outro lado da cidade, sabia fazer um "B7" no violão, e ele queria aprender. 

Os moleques (mlks) de hoje, da periferia, não querem tomar o "buzão"; eles querem andar de carrão possante, com o som nas alturas, tocando seu pancadão. Porque é assim que se pega mais mina. E as "mina pira" no cara de carango com pancadão. Eles sabem disso e vão atrás. As mina não "pira" naqueles que andam de bus, falam dois idiomas, frequentam biblioteca, veem filmes cults e ouvem Mozart no fone de ouvido. Esta é a cultura que precisa reverter e alcançar. Esse moleque, como todo mundo, só quer ostentar e demonstrar seu poder.

Uns dirão "eu só faço a minha parte... O resto não é comigo".  Não adianta. Para a cidade dos sonhos há que todos façam sua parte ao mesmo tempo; que sonhem e realizem juntos. E isso tem um principio nos poderes constituídos. Com ética, moralidade em alta, transparência, planejamento e uma população que lhe presta confiança.

Já finalizando, lembro das palavras do dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues: "O brasileiro não está preparado para ser o maior do mundo em coisa nenhuma. Ser o maior do mundo em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade".

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Outubro de 2013.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O veículo do futuro


Até pelo status da profissão, gosto de debater, e rebater, certos temas que surgem dentro da área em que atuo. Quando as conversas são sadias vêm boas ideias. Mas tem aqueles que pegam carona, na matéria da qual não dominam, e vão propagando por aí como a única verdade, a única saída, um soro para vida. A cada dia surge uma nova ordem para o guia do politicamente correto.

Durante o regime militar, a classe artística, jornalistas e intelectuais eram coagidos ao engajamento de algum movimento antiregime, antimilitarismo. Quem não se manifestava, simplesmente era colocado à margem e tachado de dedo duro; um excluído de qualquer convívio. Foi o que aconteceu com o cantor Wilson Simonal, que teve a carreira despencada, por acusação, sem nenhum direito de defesa, de ser um traidor da esquerda e suas lutas. A verdade é que nunca aderiu à nada. Ele era só um cantor negro de sucesso, talvez o maior da época.

Hoje em dia, não existem mais os engajamentos políticos exacerbados; o que há são alguns grupos de patrulhamento, polícias de pensamento, na forma mais ruminante de querer nos empurrar um cardápio social, como forma de reparo, de exclusão de qualquer minoria. Ser um ativista, um cycler é chique, é a última moda. Como o cantor Chico César, que apareceu num programa de entrevista sobre uma bike desmontável e dizendo que até nas viagens internacionais carrega sua magrela.

E resvalando nesse assunto, na questão da mobilidade urbana, a moda agora são as bikes, apelido dado às bicicletas. E para muitos discursistas, ativistas, bandeiristas, não há veículo melhor para os deslocamentos das cidades do presente e do futuro: não polui, é saudável, tem tráfego livre, não atropela pedestre e é menos perigoso que os motorizados. Só há vantagens. Vamos ver.

Sou saudosista para muitas coisas: discos velhos, móveis, automóveis, livros, filmes, séries de TV, lugares. Gosto de visitar o passado com as mulheres bonitas, seus costumes e comportamentos. Creio que, no passado, o convívio social era mais próximo. Hoje, com mais gente habitando o planeta (sete bilhões), ficamos longe um dos outros; ficamos mais individualistas, quando deveria ser o contrário.

Nessa retórica, cada um está puxando a sardinha para o seu lado. E alguns discursos são longos e chatos. Tem o discurso da legalidade e discriminação das drogas; tem o discurso dos excluídos sociais; dos racistas; e também tem o discurso daqueles que quererem fazer a bicicleta o veículo do futuro. Ou seja, voltar ao passado saudosista e romântico, sem o olhar analítico às outras implicações que desafiam a cidade do presente e o modo de vida das pessoas de hoje. Também gostaria que fosse assim, mas não é. Quem sabe, nessas ondas e tendências, apareçam também os partidários e adeptos das carruagens. Guardarei isso.

Nada disso! As cidades de hoje e do futuro precisam de tecnologia. De transportes mais ágeis, confortáveis, silenciosos, protegendo-nos das intempéries; transportando mais pessoas (somos muitos mais que no século XVIII) e que não poluam o ar das metrópoles. E também em transportes que possamos conviver e criar amizades; ler um livro durante o percurso, ou ouvir música até cochilar.

Não sei dizer se o melhor meio de transporte de massa é sobre rodas, ou sobre trilhos. Depende da demanda da população que irá atender. Mas não importa a tecnologia, o desejo é que transporte mais pessoas, em menor tempo; assim acabará com os congestionamentos e desestimulará o uso do automóvel. Se quiser uma cidade mais respirável e boa para morar, os deslocamentos por transporte de massa tem que vir em primeiro que os outros.

Bicicletas no trânsito de Londres - Setembro 2012

E as bicicletas? Elas vão nessa sequência. Vão aproveitar os espaços deixados pelo melhor uso do transporte de massa. Sendo adotada para pequenos trajetos e ligações aos terminais rodoviários. Nem todos andarão de bicicletas, por mais que elas sejam incluídas no sistema. Nos dias chuvosos, por exemplo, a maioria irá de trem ou ônibus. Transporte bom e para o futuro é aquele que carrega o maior número de pessoas possível, ligando os quatro cantos de uma cidade.

O que não é cabível — esta é a briga dos ativistas — é fazer a bicicleta disputar espaço com o automóvel, sem se apresentarem um ao outro. A briga estimulada é essa. Os ativistas pela bike não são pela cidade e pela mobilidade, mas pelo direito de poder pedalar. Vai ser difícil, nas cidades brasileiras, um motorista entender que uma bicicleta também faz parte do sistema. Ele sempre achará que ela só atrapalha. Por isso é necessário desestimular o uso dos automóveis pelos ônibus.

Durante os oito dias que fiquei em Londres, pude perceber muito de perto a convivência das bicicletas com o trânsito de uma cidade de mais de dois mil anos, medieval na sua infra-estrutura. Londres é linda, de arquitetura nobre, milenar, tranquila, de gente educada na convivência do trânsito, seja na pista ou na calçada. Linhas de metrô cruzam a cidade de ponta a ponta, Under ou Overground.

Mapa do metrô de Londres
Os ônibus two floors circulam a 30 km/h; não há cobradores gritando para o motorista quando deve fechar a porta; os condutores ficam em cabines protegidas do “converse com o motorista somente o necessário”. Viagens tranquilas e lugares para sentar, sempre. Todo o sistema é integrado, ônibus e metrô. Num mesmo cartão semanal você pode fazer quantas viagens quiser em qualquer um dos meios públicos. Durante as viagens nenhum automóvel se atreve a entrar nas faixas exclusivas. Os ônibus deslizam no asfalto e junto com as bikes vão partilhando, sem buzinadas e atropelamentos.

E mais que tudo isso, o transporte público é o encontro de todas as classes sociais. Andar de automóvel não é status, porque a cultura britânica não tem espaço para essa tolice, de parecer ser o que não é; de carros tocando sertanejo e funk num volume insuportável. Eles circulam de transporte público porque é seguro, confiável, rápido e confortável. Felicidade não se ostenta.

Mas o que me instigou a escrever estas linhas? Outro dia deparei com o cartaz acima “o veículo do futuro chegou faz tempo” — possivelmente criado por algum ativista e não urbanista. Não comentei e não compartilhei na minha página do Facebook. Achei demagogo e vazio de argumentação. Pensei, mais uma modinha vem por aí... Haverá bicicletadas com gente nua montada — já houve — reivindicando mais espaços para bicicletas nas ruas. Tenho afirmado, não sou adepto a nenhuma corrente, ou ativista de qualquer moda. Eu tenho muito apreço e afinidade com a lógica, e com ela eu tento lidar com a vida.

Quando se pensa em urbanização e planos diretores, traça-se um caminho de metas e diretrizes que apontarão o melhor horizonte da cidade; um modo de vida com qualidade. E por isso, acredito que a ordem das coisas deva ser respeitada. Assim, como nas cidades europeias, o transporte público eficiente e por excelência, veio antes da ressurreição dos não motorizados, as bikes. Antes veio a cultura: deslocar de transporte público não torna ninguém mais pobre; e o contrário, dentro de um automóvel não torna ninguém mais poderoso. Antes veio a cultura do respeito às leis e ao próximo, com confiança aos poderes constituídos; veio o respeito ao direito de ir e vir por todos os meios. A bicicleta só pegou carona nessa cultura.

Concluo. A bicicleta não é o veículo do futuro. Como às vezes imagino, o veículo ideal e futurista será o tele transporte; em cabines dentro de casa, através do acionamento de um botão, você viajará (fisicamente) para onde quiser instantaneamente; como na série antiga Star Trek. Viajei...

Claro que não precisa tanto, e pensar tão longe. Mas se as cidades brasileiras chegarem a ter meios de transportes de massa com a cultura europeia, ai sim podemos voltar a pensar em bicicletas, e como outro meio de ver melhor a paisagem da cidade.

Eu odeio as modinhas.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro de 2013.