BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Desconstrução

Esta crônica não começou aqui, mas nasceu numa conversa de botequim. Onde se conversa de tudo; e hoje, mais do que nunca, o assunto que supera o futebol é a política.

E não podemos tocar na política sem lembrar dos intelectuais, artistas de hoje (e antes) engajados — palavra muito usada no anos de 1970 — à correntes ideológicas e únicas de esquerda. Não, eu não sou daqueles que preciso saber o que um desses artistas de MPB pensa para tecer meus comentários. A bem da verdade, muitos deles se aproveitam, ainda hoje, da política para existir, ou melhor, difundir sua obra. É o caso da Lei Rouanet, que foi criada sob pretexto de incentivo à cultura dos anônimos, mas virou contrapartida, moeda de troca, aos artistas conhecidos e consagrados defenderem o governo de esquerda, que hoje nos rege, dono da lei, e sob qualquer viés. Como se todos nós fôssemos guiados por eles.

Poderia lembrar de outros aqui, mas o mais engajado sorridente, e quem mais se aproveitou dos governos (militar e de esquerda) foi Chico Buarque. Se projetou no regime militar e se condecorou no governo Lula/Dilma, como mito e símbolo de resistência. Ninguém mais do que ele é, até hoje, aclamado pela imprensa e toda a militância de esquerda como aquele que combateu a "ditadura", com suas músicas e peças de teatro. Combateu? Vamos voltar um pouco no tempo, reler e avaliar parte de sua obra. Uma desconstrução do autor de Construção? Sim, pode ser.

É inegável que Chico tenha sido perseguido pela censura do Regime. Não que suas letras eram balas de canhão a ponto atrair a massa e derrubar o governo — como a música que fez Geraldo Vandré — , mas só porque eram escritas por ele. Ele se fez, e hoje ainda se vende no meio artístico, como símbolo de resistência ao governo militar. Para isso, ousou em algumas letras, criou um pseudônimo e reescreveu algumas letras, trocando palavras, para ter suas músicas liberadas e gravadas.

Em 53 anos de carreira, Chico Buarque compôs, segundo seu site oficial, 343 músicas letradas (às vezes a mesma música com letras diferentes). Dessas músicas, nenhuma delas foi censurada no início de sua carreira até ser reconhecido como artista, de 1964 a 1969. Mesmo após o AI-5 (Dezembro de 1968), ele estava livre para compor e cantar. Sabiá, por exemplo era uma espécie de canção do exílio. Sem problemas nenhum, foi cantada no festival da Globo. Sua música mais tocada naquele final dos anos de 1960, Roda Viva, não sofreu corte nenhum da censura.

Somente em 1970 — e aqui começa tudo —, ele teve a sua primeira música proibida pela censura federal. Apesar de Você foi lançada num compacto simples — meu irmão tem até hoje essa raridade —, que tinha do lado B Desalento. Logo depois, quando perceberam que o "Você" não era nenhuma amante, mulher, etc, os discos foram recolhidos das lojas e a divulgação proibida nos meios de radiodifusão, pelos órgãos de censura. Subliminarmente era uma queixa clara ao governo militar. Muitos a chamam de "Carta ao Médici" ou "Carta ao presidente". Nessa época ele já tinha voltado do seu auto-exílio, em Roma.

Se levarmos em conta o valor de uma música que ficou no imaginário popular, como uma música de protesto (e que marcou um período), podemos dizer que só Apesar de Você e Cálice (1973), foram reconhecidas depois como músicas, com teor de crítica à política, e que sofreram censura ao longo da sua carreira. Isso não representa nem 1% da sua obra musical. Depois, ambas foram gravadas no LP de 1978, ainda dentro do Regime Militar. Foi mais um chororô de ocasião, e como a esquerda sempre interpretou bem nesse papel: vitimização. Para repetir até exaurir: — olha, eles estão me perseguindo. Fui censurado.

Alguém pode argumentar: mas ele teve outras músicas de cunho político censuradas, como Milagre brasileiro, Vence na vida quem diz sim, Tanto mar, etc. Essas não contam? Sim, mas sem a mesma importância. E o que eu digo, são aquelas que, mesmo censuradas, ficaram popularizadas, e sempre aparecerem em destaque na sua obra. Inclusive, depois, foram regravadas por ele mesmo.

As suas músicas censuradas (em partes ou integral), pelos órgãos de repressão do governo militar, eram por simbolizar aspectos negativos da vida social, ou aquilo que afrontava a "moral e bons costumes" da época. Partido Alto, por exemplo, teve palavras trocadas, porque ofendia a própria raça, o brasileiro. Disse o censor, que a avaliou: "Se é engraçado ou uma infelicidade para o autor ter nascido no Brasil, país onde ele vive, e encontra esse povo generoso que lhe dá sustento comprando seus discos, e pagando-o regiamente nos seus shows, afirmo que ele está nos gozando. Opino pelo veto." Depois que substituiu algumas palavras na música, o censor ainda lhe deu outra descompostura: "Como  é que você, que fez uma música como Construção, agora vem com esta, falando de titica e saco cheio." A música foi gravada.

Dos seus discos, nenhum foi mais comentado que Calabar. E aqui abro um espaço para descrever como a censura proibiu a peça e o disco, simultaneamente. Em 1973, Chico Buarque estava com 29 anos, e escreveu músicas lindas para a peça. Depois dos ensaios e pronta para estreia, ele soube que a peça havia sido proibida. Calabar, o elogia da traição soou como uma espécie de resposta à morte do Capitão Lamarca, desertor/traidor do exército brasileiro, por se juntar ao grupo de guerrilha Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); se refugiando, por fim, no sertão da Bahia, onde foi encontrado e morto. Os órgãos de censura ao perceberem no meio a palavra "traição", não pensaram duas vezes em proibir tudo.

Das 11 músicas, do disco Chico canta Calabar (depois virou somente Chico canta), muitas tiveram parte das letras substituídas, ou estrofes retiradas (Tire as mãos de mim) e uma música foi totalmente censurada: Vence na vida quem diz sim. A capa, onde aparecia a palavra "Calabar" pichada num muro, também foi censurada. Na parte interna, no encarte do disco, a foto de soldados fazendo piquenique sobre a bandeira do Brasil também foi censurada. Ou seja, não sobrou quase nada. Apesar de tudo, o disco, com canções escritas por Chico e Ruy Guerra, é um dos melhores de sua carreira. A letra de Vence na vida quem diz sim, na forma como foi entregue à censura federal (anexa à esta crônica), aparece o carimbo de "vetada". Na canção Tire as mãos de mim, a última estrofe não foi gravada. Dizia:
"Por três tostões
Ganhaste um par
Hoje está sós,
Eunuco e coxo
Tire as mãos de mim
Põe as mãos em mim
Vendeste um teu amigo
até o fim
Agora leva o troco"
(A estrofe foi subtraída e não foi gravada. Quando comprei o livro Chico Buarque Letra e Música, não veio com essa estrofe. Mandei um email ao editor que me respondeu que na próxima remessa seria corrigido.)

O período duro e repressivo não durou muito, talvez quatro ou cinco anos e só. Em 1976, Chico escreveu três letras para uma mesma música. Nas três versões da conhecida O que será, a frase "o que não tem governo nem nunca terá" não foi censurada e foi gravada assim. A música inicialmente foi composta para o filme Dona Flor e seus dois maridos.

Nessa época, Chico Buarque, e grande parte da chamada MPB (dos artistas engajados) eram aclamados e muito populares nos meus universitários (ainda são até hoje); do outro lado, a maioria da população ouvia mesmo era Antonio Carlos e Jocafi, Benito Di Paula, Originais do Samba, Secos e Molhados e Os Incríveis cantando Eu te amo meu Brasil. Para o meio politizado, se você não ouvia Chico e a MPB você era alienado. Mas quem se importava com isso, se a vida não era tão repressiva como eles diziam àqueles que não deviam nada ao governo?

Naqueles idos, pelos arredores e calabouços, se falava muito em prisões e torturas. Que artistas haviam sido presos e torturados, citando sempre Geraldo Vandré (?); e que nele fizeram uma lavagem cerebral, etc. (Pois é, somente ele carrega essa pecha da tortura. Ninguém mais. Por quê?) Logo após aquela noite, da sua memorável apresentação no Maracanãzinho, depois de ser ovacionado com Pra dizer que não falei de flores, Vandré foi sentindo o peso de sua música no meio dos militares e no início de 1969, já com o AI-5, ele sumiu. Ele arrumou um jeito e escapou pelas fronteiras do país e ninguém mais o viu. Naquela altura sua música já estava na boca do povo. Ele voltou em 1973 negando a prisão e que havia sido torturado. Nunca mais compôs como antes. Nas entrevistas recentes, ele, aos 81 anos, continua negando peremptoriamente que tenha sofrido qualquer tipo de tortura. Passados tantos anos, quem vai dizer o contrário? Por isso, a esquerda o abandonou. Ele não cabe mais na sua narrativa.

Agora, quem verdadeiramente sofreu tortura moral naquela época foi Wilson Simonal. O negão era como se diz hoje, marrento. Dono de uma voz irretocável, tinha personalidade, talento e um domínio total das grandes multidões. Meu limão, meu limoeiro virou hit no final dos anos de 1960. Era um showman. O que ele não estava nem aí, era com o que acontecia no país: do governo militar e aqueles que queriam derrubá-lo. Ele só queria cantar, andar nos seus carrões, se encher de dinheiro e ter as mulheres que queria. Foi acusado, por seus parceiros de música, de ser um informante do governo. (O que ninguém conseguiu provar até hoje.) Sua carreira acabou ali. Isso, sim, foi tortura. E ninguém, desses, veio lhe pedir desculpas, nem post mortem. Morreu anos mais tarde, alcoólatra, sem nunca conseguir provar sua inocência.

Outro dia, uma seguidora do meu Twitter se surpreendeu,  por eu ser arquiteto, e ter um pensamento tão conservador. (Os arquitetos são, na maioria, revolucionários de esquerda.) São outros tempos ou outros homens? Tempos de realidade e não de utopias (outra crônica). Por mais que a arquitetura tenha seu  broto e processo criativo numa visão utópica de mundo, mas a sua transformação é realidade que se toca, que se vê e se admira como poema concreto. Os sonhos são devotos, revigorantes, mas só o real encontro com a vida nos torna pessoas.

Assim, muitos outros também me questionam, porque passei a vida toda colecionando a obra do Chico Buarque (discos, livros, songbooks, DVDs) e hoje sou crítico. Bem, ao longo a vida a gente aprende muitas coisas. Uma delas é apartar o artista (e sua obra) da pessoa. Dizem que Chico Buarque vai lançar um novo disco em 2017. E dizem, até, que há uma música escrita para o Lula. Sempre esperei muito por seus discos chegarem às lojas. Hoje, nem tanto. Talvez, eu compre para continuar a coleção, mas não será com o mesmo entusiasmo quando comprei o LP "Chico Buarque 1978", ali nos meus 16 anos. Não será mesmo!

E para finalizar essa conversa, cheia de retrospectos, lembro da entrevista célebre do escritor Millôr Fernandes ao programa Roda Viva, da tv Cultura. Uma das perguntas, que veio de telespectadores, se referia da sua suposta briga com Chico Buarque. Millôr não quis polemizar, mas afirmou que não havia brigado, e alfinetou: "os defeitos de Chico Buarque se juntaram comigo. Defeitos que não tenho". E concluiu numa frase imortal: "Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal".

(Você pode dizer que esta crônica é a desconstrução de um mito. É sim. No entanto, a pior das torturas, carregadas de censuras, não estão nos tempos da repressão, onde vinha com o carimbo "vetada", do censor que tinha rosto. A pior são as censuras em tempos de democracia, porque elas vêm da forma mais rasteira e velada.)

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Junho de 2017

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Quando minha alma arrepiou


Geraldo Vandré - FIC - 29/09/1968
Devo confessar que nunca fui um bom speaker; não sei falar em público, ou aquilo que, talvez, eu dissesse bem melhor escrevendo. Até nos meus áudios de WhatsApp (risos) me acho horrível: voz e colocação. No entanto, às vezes, tento ser professoral nas minhas exposições. Acho que os professores (não doutrinadores) conseguem aprender muito com seus alunos também. Até por que alunos perguntam.

Já expliquei inúmeras vezes — agora com mais compreensão — os anos do regime militar que o país viveu. Cada vez que falo sobre o tema para alguém, parece que aprendo mais. Tudo ficou mais claro para mim. Tudo que eu lia nas entrelinhas (nas frases deixadas nos muros pela esquerda), agora se fecha dentro de um contexto. Com começo, meio e fim.

Estou lendo o livro do Professor Marco Antonio Villa (guardado na estante há tempos) "Ditadura à brasileira". Acho que merecia até um outro título: "O regime militar brasileiro". Afinal, vivemos, de fato, uma ditadura? Com essa pergunta quero iniciar essa conversa. 

Quando penso nesse período, volto à minha velha infância e tento lembrar de como éramos em casa. Vida pobre: um pai operário, uma mãe dona de casa, irmãos estudando em escola pública (como eu) e comendo o que era acessível: arroz, feijão, batata frita, ovo, carne moída, e café com leite misturado com farinha de milho. Nada mais que pudéssemos ter. Vida simples, mas sem faltar nada, nem mesmo o material escolar.

Mas e o Brasil? E a política? E a chamada ditadura? Éramos um país também miserável, pobre economicamente, mas de um povo trabalhador. Como interiorano, só fui me ater à palavra ditadura — e que eu fazia parte dela — ali pelos meus 17 anos (1979), quando veio toda aquela conversa de anistia ampla geral e irrestrita; e lembro da Elis cantando "O bêbado e o equilibrista", só isso. Antes disso, era tudo muito quieto dentro de mim, e sem muitas perguntas. Talvez eu fosse um alienado — palavra muita difundida nessa época —, porque não me julgava alguém cercado por barricadas e preso num mundo dominado por um ditador.

É isso que queria dizer. Ditadura tem que ver com o grande líder. O Brasil do regime militar (1964 a 1985) não teve um grande líder ditador. Ditaduras têm um cortador de cabeças, um escravizador, um partido dominante. Nós não tivemos. Vivíamos numa carestia, claro, mas éramos livres para estudar, trabalhar, ir à igreja, ter lazer. As pessoas podiam abrir seus negócios, ter patrimônios, sem dever nada para o governo que não fosse os impostos. Não havia um Estado centralizador e poderoso, o que caracteriza, de fato, uma ditadura. 

E os rebeldes? E a luta armada? E as torturas? Aí começa toda uma história, de um país paralelo, que a maior parcela da população desconhecia. Não só por que a notícia era censurada, mas porque era alheio às pessoas que só queriam trabalhar e tocar sua vida. Mesmo depois do AI-5 (1968), o governo permitia que você fizesse o que quisesse, estabelecendo um critério de censura moral nos meios de comunicação, que não fez mal a maioria das pessoas. Fez mal àqueles que enfrentavam o governo (sem conseguir convencer a população das suas causas). Noventa milhões que não deu a mínima para dez mil revolucionários. O governo só lutava — e aí está o ponto — contra aqueles que queriam derrubá-lo: grupos terroristas de luta armada. O restante da população estava pegando o trem na Central do Brasil.

Antes de 1964, o país vivia uma tensão, com o comunismo nas portas, pronto para entrar. O povo, naquela memorável "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", sentia e pedia os militares no poder. Era a força da igreja católica fazendo frente ao iminente comunismo. Os militares ouviram o clamor, entraram na briga e tomaram o poder num contragolpe, sem derramamento de sangue. Só a imposição e o bafo no cangote pôs todo mundo para correr. Um jornal da minha terra estampou no dia 1º de Abril de 1964: "Venceu a democracia".

Daquela esquerda derrotada, vejo três grupos separados. O primeiro, tão logo os militares entrarem, saiu correndo pela porta dos fundos, fugiu do país — os políticos. Um outro, correu para a clandestinidade a construir barricadas, organizar grupos terroristas em aparelhos também clandestinos — a chamada luta armada. E o terceiro grupo, se camuflou (como quem era isento), nas redações de jornais, revistas, universidades, meio artístico, cultural e — pasmem — na igreja católica. Quem influenciou a minha geração? O último grupo. Esse grupo propagou e difundiu a palavra ditadura (e todos os chavões), que perdura até hoje. O gramscismo sendo aplicado.

O fato fica evidenciado e claro. Tudo que se publicou no meio cultural, em forma de livros, peças de teatro, textos jornalísticos e na música popular brasileira, tinha a tinta de uma esquerda inconformada, irada, raivosa, tendo aqueles milicos atravessados na garganta. Um ódio que varou décadas. E esse ódio não era por que eles buscavam livrar o país dos militares e da ditadura, mas por que não conseguiram o seu intento: transformar o Brasil numa grande pátria comunista, tendo o proletariado como escudo e modelo.

Isso foi confirmado pelo jornalista Fernando Gabeira, em entrevista. E como todos sabem, Gabeira foi partícipe e atuante dessa esquerda, a da luta armada. Então, procure a palavra democracia na boca dessa gente, que nunca encontrará. Eles não lutavam por uma democracia, mas por uma ditadura; a pior e mais cruel ditadura de esquerda. E assim, seguindo a voz de Lênin (chame-os do que você é), a palavra ditadura ia colando nos ouvidos das pessoas, enquanto gozavam de liberdade, e o Maracanã lotava num FlaFlu, com 200 mil pessoas, sem nenhuma revolta ou briga. Era ditadura?

Já faz uns dois anos assisti um episódio reprisado da novela Dancin' Days (1978), e uma cena me chamou atenção. O personagem de Eduardo Tornaghi entra num restaurante segurando um livro. O livro, que identifiquei pela capa, era "As veias aberta da América Latina", escrito pelo escritor uruguaio e comunista Eduardo Galeano. Nesse mesmo ano, esse livro figurava na lista dos mais vendidos do país. Que ditadura militar (de direita) permitiria um livro comunista nas livrarias? Essa ditadura não existiu.

Li, ali pelos meus 20 anos, o livro "1968, o ano que não terminou" de Zuenir Ventura. Depois, "Batismo de Sangue" de  Frei Betto. Ambos livros narram a história do período militar, romanceada, de heróis e bandidos, contada sob um único ponto de vista: da esquerda. No livro de Frei Betto, por exemplo, logo no início você já se depara com a narrativa da morte de Carlos Marighella. (Você quase entra em lágrimas.) Anos mais tarde, fui descobrir que se tratava de um terrorista, assassino e cruel.

Em 1992, o novelista Gilberto Braga pôs no ar a minissérie "Anos Rebeldes". Mais uma vez vimos uma história contada só sob um único ponto de vista. Aqueles estudantes eram tratados como heróis que queriam livrar o país dos algozes militares. No mesmo instante que a minissérie ia ao ar, na vida real, o jovem Lindbergh Farias movimentava os estudantes contra o caçador de marajás, Collor, ao som de "Alegria Alegria".

Hoje, lembro do meu pai, e nunca ter ouvido dele que o governo militar era cruel e perseguia pessoas.

A verdade é: esse terceiro grupo influenciou as gerações seguintes. Com esse grupo aprendemos a odiar a burguesia, os milicos, a ditadura, a censura, o patrão, o capitalismo, os EUA. Ao mesmo tempo que exaltávamos a esquerda, o marxismo, Cuba, o socialismo soviético, os artistas engajados da MPB, Carlos Lamarca, Che Guevara, os sem terra, a reforma agrária, o sindicalismo, a classe operária e depois o PT.

Esse terceiro grupo colocou esses comunistas, derrotados de 64, novamente no cenário político, agora anistiados e sobre a via pavimentada da democracia. Fomos teleguiados por esse discurso de ética, moral, contra a burguesia e os milicos — ali já no limiar dos anos de 1970. E sobre os ombros trouxeram Lula, o operário nascido e criado no seio do povo, ao posto máximo do país.

Mais analítico, hoje vejo esse mundo, vacinado dessa doutrinação da esquerda que buscou se vitimizar (pós-64). Como também não vejo tão clara essa divisão extrema entre esquerda e direita. O que percebo são os traços fortes de uma sociedade que se separa em dois cenários; de um lado os conservadores e de outro os progressistas.

Como disse, vi meu pai criar muitos filhos sem dizer um pio contra o governo e praguejar contra o mundo, o capitalismo, etc.; ao mesmo tempo que lutava com todas suas forças para manter a estrutura familiar em pé. Então, me sinto hoje um cidadão amadurecido e conservador. Penso num mundo de sociedade de mercado acontecendo, um governo enxuto e menos intervencionista. Preservando a família, a religião e a propriedade privada. O Brasil, majoritariamente, é conservador, mas governado por progressistas; esses ainda ressentidos com 1964.

Penso ainda, todo progressista é um ser inquieto que, no ambiente político, deixa exposto toda sua ira com o mundo. Nada está bom. Utópico, carrega dentro de si revoltas íntimas e mal resolvidas que, para se livrar, deposita nas costas de um governo, da sociedade e do sistema econômico. Aos seus olhos, o mundo está errado e ele certo em querer revolucionar. E assim, quer trazer todos para dentro das suas crises, até aquele que está em paz de espírito. O mundo que ele quer mudar, eu só quero conservar e entender.

Caminhando para o encerramento (sei que são poucos linhas para descrever um período tão complicado da nossa recente história.), concluo.

No final da minissérie de Gilberto Braga, o casal antagônico, Maria Lúcia e João, tenta se acertar, depois que ele volta do exílio, ali por volta de 1979. Ainda descrente daquele amor, ela quer dar a ele uma chance, mas logo percebe que nada nele mudou. Ele continua com suas revoluções acumuladas e a luta armada na cabeça. Querendo consolá-la, já em tom de despedida, ele diz agora concordar com ela, quando, lá no Festival de 1968, ela dissera preferir "Sabiá" a "Caminhando". Ele reconhece, 11 anos depois, que ela estava certa: "Sabiá" era melhor. Mas eles não ficam juntos.

Está aí mais uma coisa que esse terceiro grupo também nos convenceu: a música deles. Nos fez aplaudir, emocionar. Eu colocaria uma dessas canções em cada braço para arrepiar os pelos. A esquerda conseguiu influenciar minha geração, porque tinha os intelectuais, os melhores atores, as melhores canções; sabia escolher palavras, construir frases, contar histórias; por um sentimentalismo e vitimismo de compadecer. Essa esquerda, que se apossou da cultura do país, soube mexer com a emoção e fazer toda essa geração (pós-64) sentir que nada poderia haver de melhor, atraindo todos a sua causa ideológica. Basta lembrar a campanha de Lula de 1989, o que mais havia era artista e intelectual engajado.

Os pelos dos braços continuarão arrepiando por muitas canções, mas agora sem esse sentimentalismo exacerbado, que controlo sem que me cerque. Agora posso dizer: nenhuma dessas canções conseguiu arrepiar mesmo foi a alma. E dela posso sentir, quando ouço e leio palavras que me encorajam, que agora me encontram compreendidas. Falo de liberdade, democracia, justiça, compaixão, amor, esperança e a busca incansável pela verdade. Aí minha alma arrepia.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Setembro de 2016

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A doutrinação e a revolução do bem



Enquanto era velado o corpo de meu primo, que morrera de câncer em múltiplos órgãos, eu conversava na outra calçada com seu irmão, meu primo mais velho. Gosto da sua conversa, mesmo num momento de muita dor, ele sempre é um bom papo, familiar, que nos remete a lembrar de coisas boas da vida.

O tom de sua conversa naquela tarde não era como das outras vezes, quando contava causos de um passado feliz, com uma memória de elefante (quem tem memória de elefante lembra até dos tons das cores do uniforme escolar). Naquela tarde, ele estava triste e desenxabido, como se tudo se juntasse ali, na sua perda recente.

O que se queixava era da vida de hoje. Mas não da falta de dinheiro ou de prestações em atraso; o que lamentava era a falta de amor, caráter, ética, moral, educação, gentileza, cidadania, respeito, princípios, esperança, fé; e tudo mais que ficou no seu passado de memórias. Da família que fomos e agora não somos mais. Dessa regressão humana aos tempos pré-civilização (homem fisiológico); do elo perdido da família tradicional (como se houvesse outro modelo); e aqui faço um parêntese para citar aquela professora marxista: “A família tradicional acabou” — justificando que em sua escola não se comemora mais o dia do pai e da mãe. Ela é professora discípulo de um mal que se impregnou. Falarei mais adiante.

E tudo que vivemos dessa degradação social e familiar, não é mero fruto do acaso. Isso foi calculado, medido, planejado para que fosse assim: o rebaixamento das instituições. Uma ordem mundial, uma liderança, uma superioridade, uma entidade, uma doutrinação organizada — algo sem rosto, sem presença — tratou de aliciar militantes a esse reino, e esses como fios condutores desse futuro que cá confrontamos.

Há mais de cinco décadas isso vem sendo disseminado (nas escolas, nas ruas, campos, construções). Os temas polêmicos e distorcidos das novelas que vemos hoje, foram encaminhados há mais de 50 anos: segregação e luta de classes. Você não sabe, mas a todo tempo estamos sendo manipulados e conduzidos. A revolução mental, que não pega em armas, mas dilacera mentes, como assim disse Luiz Felipe Pondé:

"Engana-se quem acha que propriedade privada seja apenas 'sua casa'. Não, a primeira propriedade privada que existe é invisível: sua alma, seu espírito, suas ideias. É sobre elas que a oligarquia de esquerda avança a passos largos. Em nome da "justiça social" ela silenciará todos."

Meu primo sofre com a família que formou. Um filho temporão com problemas de comportamento, desobediência, rebeldia e um sobrinho delinquente preso por assalto com arma de fogo. Tudo que nunca imaginávamos que pudesse ser nossa família, nosso futuro, quando ainda jogávamos bolinha de gude nas ruas de terra da nossa infância.

Ao lembrar-se de seu pai, veio um olhar marejado. Disse que, seu pai, assim como os meus, não tinha escolaridade, mas tinha uma coisa que falta muito ao mundo de hoje: SABEDORIA. E por isso, reconhece o merecimento, sem trauma nenhum, dos bofetões que levou dele, um alemão alto de mãos enormes e pesadas. No dia seguinte do bofetão — recorda —, seu pai ia trabalhar, sem nenhum remorso, mas nele ainda estavam as marcas dos dedos como sinal do aprendizado.

Aprendizado do quê? Aprendizado que não devemos subtrair o que não nos pertence; aprendizado que devemos respeitar pai e mãe; aprendizado que não há vida sem labuta, sacrifício e suor; aprendizado de respeito ao próximo, às regras, leis e instituições; aprendizado que há sinais de perigo na vida e, portanto, não devemos atravessar tais fronteiras; aprendizado de fé e amor a Deus.

A palavra é doutrinação. Durante décadas fomos doutrinados a muitos comportamentos, ordens, conceitos, catequeses e crenças sem percebermos. Conduzidos como gados. Ajustando a sociedade para uma conversão, no sentido mais inglório, pragmático, ideológico possível. 

Acreditamos por anos que, a igreja católica é retrógrada, ultrapassada e rica; acreditamos por anos que, a "polícia para quem precisa de polícia" e por isso é um óbice social; acreditamos por anos que, Oscar Niemeyer é o maior de todos, sem conhecer os outros; acreditamos por anos que, Che Guevara era o novo Cristo a se seguir; acreditamos por anos que, o capitalismo oprime, sem entender o que isso significa; acreditamos por anos que, pobres são vítimas da sociedade, sem reconhecer que são também agentes dela; acreditamos que, se existe pobreza é porque alguém ficou rico a sua custa; aprendemos por anos a enaltecer às esquerdas e ridicularizar tudo ao contrário à elas; aprendemos por anos que. o regime militar foi um atraso ao país; acreditamos por anos que, só inocentes e heróis foram torturados e mortos pelas mãos desse regime de governo; acreditamos que, esses "heróis" queriam democratizar o país. Factoides e mentiras que viraram verdades. A doutrinação é a revolução silenciosa, proposta pelo italiano Antonio Gramsci e seguida ipsis litteris.


Numa das conversas (hangout) com o cantor Lobão, o professor e filósofo Olavo de Carvalho afirmou que, o erro do regime militar, nos 20 anos de governo, foi ter combatido os comunistas e não o seu mal: o comunismo. Esse foi o vacilo, a porta entreaberta descuidada, que se escancarou para uma invasão de pragas ideológicas nos lares, escolas, igrejas e todo meio social que pudesse embrenhar.

As universidades, as redações de jornais e revistas, editoras, todos os meios culturais foram tomados e serviram de canais disseminadores de uma doutrina marxista. De “pensadores” e vendedores de sonho do mundo melhor; na visão mais arcaica, cínica de pregação de um paraíso comunista. Em consequência, o rebaixamento das instituições ao pó, aos pés de um grande irmão (The big brother).

Foi por aí, por esse caminho, que se pavimentou a via para a chegada de Lula (o operário) ao poder. Ou você acha que seria fácil aceitar um apedeuta como ele? Ele chegou como a semente de um sonho (bad dream), o maná, a  boa nova que levaria seu povo à terra prometida, onde jorra o leite e o mel. Mentiram (e muito) para mim e para você.

Se formos buscar o fio desse emaranhado, que se tornou a família, iremos chegar na política, claro. Falsos moralistas, os donos das leis agora estão dentro de nossas casas, ditando regras para uma família "melhor", como Olavo de Carvalho publicou na sua página do Facebook: "Moral petista: não dê palmadas no seu filho. Mate-o no nascimento". Ele se referia a duas leis absurdas: da palmada e a que está em curso, do aborto.

Não me lembro de meu pai (com 11 filhos sob sua criação) reclamar do governo militar, se sentir perseguido e injustiçado por ele. Não, ele só olhava para sua prole, trabalhava dobrado em turnos alternados (desses que mexem com o metabolismo) na fábrica, para sustentar uma família e dar o mínimo de educação. Ele se foi aos 59 anos, cansado da vida muito labutada e tendo o cigarro como parceiro de solidão e morte. Meu pai não deixou em mim nenhuma semente comunista.

Procuro não desviar o foco: a humildade, a religião e fé em Deus foi seu maior trunfo em mim. Indiretamente, ele enxergava a família: pilar mestre dessa fé (judaico/cristã). E as vezes que arrisquei sair, lembrei-me e voltei. E assim eu sigo, cambaleante, mas arraigado... Depois minha mãe, que também foi um exemplo de pessoa. Dona de casa cuidadosa, zelosa, de caráter, brio, fé e responsabilidade.

Esses foram meus tesouros, minhas doutrinas, que essa geração de agora desconhece, porque ninguém lhe passou. Por isso, se perde demente com seu tempo, e sem projeto nenhum de futuro.

Depois, e antes que eu fosse embora, meu primo ainda me disse da sua esperança. Disse sobre uma revolução do bem. Exatamente aquela que esperamos num futuro breve acontecer. (Há sinais no horizonte) O bem que vence o mal. Sem liderança, e também silenciosa, ela virá resgatar nossos sonhos sufocados. O fundo do poço é próximo, e quando chegarmos lá, só existirá um caminho: da volta. Emergir, subir, subir... E de volta ao seio familiar como imaginamos: célula social, mãe protetora e condutora da vida. E que nenhum Estado, governo ou poder possa substituí-la. Jamais.  

© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Setembro de 2014.