BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O Alpendre

A arquitetura, como toda arte, sempre caminhou pelo tempo, de um extremo a outro, do passado ao futuro mais remoto que o homem pode vislumbrar; tecendo formas, espaços, dando movimento e definindo períodos. Das nossas casas de taipa de pilão às construções high-tech, vem permeando o universo e contando a história da humanidade. Na volta ao passado, ela encontra os seus simbolismos perdidos, numa releitura de si; como os valores módicos da vida e o que nela havia de melhor. Contraponto assim, à sofisticação, aos modismos e tudo mais que tornou a vida mais turbulenta nos nossos dias. Hoje, a vida se resume e se permite ser mais prática, acelerada, racional, individualizada; tudo num invólucro e mais longe da felicidade perene, sem fragmentos, sem barreiras. E longe de ser o dono da verdade — não discordarei dos quem pensam o contrário — coloco aqui uma visão analítica de quem observa e vive este mundo maluco e agora globalizado. Nessa síntese, talvez valesse aquela máxima: “naquele tempo era melhor...”.

Os tempos são outros e o conceito de moradia também mudou. Dos bairros predominantemente residenciais, o pouco restou; com suas ruas de paralelepípedo quase sem automóvel e de gente simples morando. Hoje não nos damos mais ao luxo e o prazer de termos casa com muro baixo e portão de madeira, onde na infância brincávamos de andar sobre os muros; e de muro em muro íamos equilibrando e pulando os portões até se espatifar na calçada — já vivi essa cena. (Sempre era divertida a aventura e dolorosa a queda.) Da calçada, sobre o muro baixo podíamos ver a casa; dos janelões: a sala, a mobília, os ornamentos, os apetrechos, os enfeites, os retratos, os quadros, as pessoas e o modo de vida daquela família. E elas? Viam a nós, que passávamos pela rua, sozinhos no nosso caminhar ou em procissões da sexta-feira da paixão. Como se nada tivéssemos que esconder um do outro. Víamos nossos interiores, assim como ver a alma da alma.

Da casa, era do seu alpendre que avistávamos a rua e quem quer que por ali passasse. No alpendre sempre havia um lugar para uma cadeira de balanço e uma gaiola de passarinho pendurada; com muretas que circundavam, é lá que ficava o “relógio” que registrava o consumo da luz. Em alguns, havia um mosaico de azulejos portugueses na parede frontal ou um pequeno oratório no nicho lateral. Sem nos esquecer dos vasos de avencas e samambaias e o piso gelado de cimento queimado ou ladrilhos vitrificados, este, nas casas dos mais abastados.

Vamos à literatura. Alpendre é o espaço coberto, reentrante, e aberto na fachada de uma casa, que dá acesso ao interior. Pois sim, o alpendre é o próprio convite à casa: adentre-se. Diferente da varanda, que é balcão, sacada, terraço. Gradeamento de sacadas ou de janelas rasgadas ao nível do pavimento. Ou: espaço saliente à casa e fora do seu corpo — desalinhado. Em sua crônica, o escritor Mário Prata define: “Mas a diferença básica é a seguinte: você vai ficar na varanda do 16º andar para ver quem? Quem é que você acha que vai passar por ali? Você acha que vai ver alguma pinta-brava? Pessoa suspeita; cafajeste” Mais adiante ele conclui: “Agora achei a palavra certa: os alpendres foram feitos para a cobiça também”.

Nos casarões coloniais, era o alpendre que fazia a divisão da parte da casa com a área social. Os alpendres centrados dividiam de um lado a capela e do outro o quarto de hóspedes, depois a porta de acesso, por fim, a casa. Por muito tempo, eram também nos alpendres que namoravam as moças de família, as recatadas. Cujo namoro tinha que ficar às vistas do pai austero e com hora marcada para pisar porta dentro. No alpendre “batíamos figurinhas” e reuníamos os moleques da rua para brincar. Dava para jogar futebol de botão e fabricar pipas também.

E os quintais? Quanto tempo eu não ouço ninguém dizer que gostaria de uma casa com um quintal grande e de terra; sem nada, solitárias árvores e a criatividade dos olhares pequeninos. Trocaram os quintais por jogos de vídeo game e internet; e as casas térreas, por conjuntos verticais — sem quintal.

Faz dois anos fiquei surpreso com uma história: quando foi indagado o que gostaria de dar a seu filho pelo seu aniversário, o ator Lázaro Ramos disse sem pestanejar: “um quintal”. Achei diferente, tudo muito simples e talvez fosse tudo o que tenha presenciado de valor na sua infância feliz. Um quintal para brincar e um alpendre para olhar a vida passar, quiçá.

No próximo projeto de casa quero ser simplista e darei a ela um alpendre. Inserida numa paisagem, um ambiente urbano ainda preservado pela vida parca do lugar, sem agredi-lo. Uma Casa para morar, para viver e guardar os dias melhores de nossas vidas. Gosto dessa viagem ao tempo que a arquitetura me proporciona, principalmente quando ela vai ao meu interior, onde me permito encontrar uma bela paisagem e com tudo aquilo que vale à pena viver de novo: uma casa com alpendre e quintal de terra.

©Antonio de Oliveira / arquiteto e urbanista / 2008- revisão Novembro de 2010.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Balões Cristalizados


Meu professor da FAU — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo — dizia que crianças e adultos têm diferentes percepções em escalas de grandeza. O que ele quis dizer com isso? O que é grande para uma criança, já não tem a mesma dimensão para um adulto. Minha avó paterna — seguindo os velhos hábitos da vida que trazia do campo — todos os anos plantava milho em seu quintal. Depois que fazia sua pequena colheita, aquele quintal virava um campinho de futebol para nós. Na minha cabeça e para meu corpo tudo era imensurável. Hoje, presumo que mal daria para estacionar uns três automóveis.

Quando ficamos adultos, além de perdemos essa escala, que também vem com a imaginação, deixamos outras riquezas para trás. Já repararam que tudo que uma criança faz é serelepe, correndo? É energia pura que depois perdemos com a velhice. Criança é assim: você pede alguma coisa e ela sai correndo disputando corrida uma com a outra ou com ela mesma. E quando há prêmios, corre mais ainda. Depois que ficamos adultos, junto com o peso das pernas e a indolência, tudo se torna mais lento.

Outra riqueza que perdemos quando deixamos a infância é a capacidade de olhar para o céu, enxergar coisas que só crianças veem. Eu via muitas coisas no céu, durante o dia e à noite, muito além das estrelas. Não importava onde estivesse: debruçado na janela, estirado na grama, andando na calçada ou no meio da rua. Eu não tirava os olhos do céu. Ou eram astros, ou eram pipas, ou eram balões.

Depois da exaustão das peladas da rua de paralelepípedos, ficávamos esparramados na calçada com a cabeça sobre a bola, mirando o céu a procura de algo. Em poucos minutos os olhares eram arrebatados. Quais desenhos as nuvens podiam formar? Víamos cavalo-marinho, elefantes, girafas, homens gigantes e, às vezes, se via Deus também; e sempre com aquela cara de bravo. Havia outra visão maluca: à noite, a lua cheia era um ventre de uma mulher com feto. O Cruzeiro do Sul, a Via láctea, as Três Marias, tudo virava desafio. Em que ponto do céu estará hoje? Já os pontos cardeais e a linha do equador, esses eu nunca vi... Ah! Apontar estrelas com o dedo fazia surgir verrugas; às vezes eu apontava, mas recolhia rapidinho.

Akira era um japonês sem rosto, ou aquele que tinha a feição das pipas que fabricava. Uns diziam que tinha 15 anos, outros lhe davam menos. Eu nunca o vi, só sabia que morava a uns dois quarteirões da minha casa. O melhor e mais famoso fabricante de pipas era um fantasma, mas era olhar para o céu eu identificava as suas. Eram pipas majestosas, soberbas, coloridas e bonitas. Quando não havia "caçadas", elas reinavam sozinhas no céu, soberanas aguardando uma peleja; quase que paralisadas, flutuando com sua rabiola gigante parecendo calda de cometa. Eu gostava mesmo era quando ele derrotava seus adversários usando sua mais exuberante invenção: o chicote. Era uma linha com cerol que se estendia além da rabiola. Quando ele partia para cima, nunca perdia uma caçadinha.

Nessas temporadas de pipas eu vivia pela rua. Não sabia fazer uma pipa sequer e às vezes que teimei, saiam pensas e feias. Assim como Hassan, eu sabia mesmo era correr atrás delas quando as linhas eram cortadas. Sob sol ardente, eu corria, corria até rosar e salpicar as bochechas de sardas — essas que no banho eu esfregava para tirar de tanta vergonha que me causavam. Nas minhas contas não me lembro de quantas pipas “cacei” por aí. Acho que foram poucas, em outras eu era contemplado pela sorte quando elas enroscavam no pé de laranjeira no fundo do nosso quintal. Essas vinham de graça, pois não custava a correria e nem as sardas do rosto.

Entrava o mês de junho eu ficava à noite mirando o céu. Agora eram os balões. Quatro ou cinco por noites me acendiam. Balões e estrelas. Havia balões de diversos formatos e ciências: diamante, charuto, pião, caixa e mexerica — que eu me lembro. No caminho até a quermesse da igreja meus olhos não desgarravam do céu, o que me causavam alguns tropeções. Quantos discos voadores devem ter me confundidos e eu nem percebi.

Diferente das pipas, fabricar balões era mais penoso; requisitava mais habilidade e prática. Eu sabia a técnica de tanto observar e dava minha contribuição como um verdadeiro AFB — Auxiliar na Fabricação de Balões. Meus irmãos mais velhos e primos é que eram os verdadeiros artesãos. Balões não se mediam por tamanho, mas sim pelas quantidades de folhas de seda que cabiam. Havia os de dezesseis, vinte quatro folhas e até mais. Sempre em números pares. As folhas de seda eram coloridas e coladas com cola espessa para não deixar o ar quente vazar. A arte final era fazer a mecha de fogo — aquilo que iria fazer o balcão ganhar os céus; e isso custava alguns retalhos de estopa, parafina e querosene. Depois de enrolada, com a parafina semeada no tecido, a estopa era amarrada com arame e embebida no querosene. A mecha ia à boca do balão. Pronto, agora era descer até o quintal e viver.

Lembro do meu último balão. Foi numa noite que havia jogo do Brasil da TV. Quando o jogo acabou e já passava da meia noite, fomos para o quintal. Minha missão naquela operação de lançamento foi segurar uma das pontas. Depois do fogo ateado esperamos o balão inflar. A parafina derretendo, soltava um cheiro e a cor azul de de pingos de fogo que caiam no chão. Ao meu primo mais velho foi dada a incumbência de fazê-lo subir. Ele apoiou levemente a boca do balão com as mãos e com pequenos impulsos para cima lançou até ganhar força e começar a subir. O ar quente dentro do balão e o vento completaram seu esforço. Naquela noite foi lindo, ele subiu, subiu e seguiu sentido leste até desaparecer nas nuvens e não conseguir ver mais. Ficamos felizes. Mais tarde, já debaixo do cobertor, fiquei pensando onde estaria agora o balão, a que altura já chegou? Na minha cabeça os balões não caiam; depois de alcançar a atmosfera terrestre eles cristalizavam.

Já faz alguns anos, os noticiários têm alarmado que fabricar, transportar e soltar balões é crime, pois os balões quando caem provocam queimadas em pastos, plantações e canaviais; e nas áreas urbanas caem sobre casas e até nas linhas de alta tensão. Então, eu te suplico, meu caro leitor: não solte balões! Faça como eu, guarde-os na memória.

Na minha cabeça eles ainda só sobem e não caem, nunca!; e nem incendeiam plantações. São milhares pelo céu da minha infância; nas escalas de grandezas que guardo do meu universo criança e diante dos meus olhos serão como noites sem fim... Balões não caem como estrelas cadentes, eles cristalizam no céu e viram estrelas de cor âmbar; aquelas que dizem ser planetas. Neste ano, quando junho chegar, vou me estirar na relva e mirar para o céu à noite toda, procurando estrelas e balões perdidos; e quando meus olhos forem atraídos para o leste eu verei meu velho balão. Ele estará lá, cristalizado.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2010.