BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Espírito empreendedor

Como todo usuário de computador, às vezes preciso fazer uma manutenção ou corrigir algum erro de sistema quando a máquina emperra (em Minas diz quando trem engasga). Não entendo nada, sou apenas aquele que desfruta. O profissional ao qual recorro é um rapaz novo, pouco mais de 20 anos; ele mora num bairro próximo onde eu resido. Um sujeito calmo, atencioso e que gosta de explicar nos mínimos detalhe os defeitos que encontra. Na hora, entendo o que diz, mas logo depois que começo a usar disperso.

Não faz muito tempo precisei que ele fosse até minha casa. Ele marcou um horário e chegou numa pontualidade britânica. Abriu, avaliou, arrumou e cobrou só a visita. Deixou um cartão comigo. Depois precisei dele por causa da bateria de um leitor de livro que tenho, parecia que não funcionava mais. Dessa vez levei até ele. Ele tem uma oficina simples na frente da casa onde mora; aproveitou a garagem de cinco por cinco metros para fazer seus consertos. Observei uma quantidade de computadores abertos sobre a bancada. Uma iluminação ruim, num local meio desorganizado – talvez só para mim. No período que permaneci, ele parou duas vezes para atender o celular, parece que não lhe falta serviço. Ele se transporta numa motocicleta com uma caixa na parte de trás. Deixei o aparelho e ele ficou de me retornar no sábado à tarde. Conforme prometido, ele me ligou no sábado dando uma satisfação de que não encontrara a peça, mas não iria desistir em resolver meu problema. Por sorte, o aparelho voltou a funcionar normalmente e, por hora, não precisei mais de sua ajuda. Ele não me cobrou nada. Não entrego meu computador para ninguém mais, tamanha é minha confiança em uma pessoa, no mínimo, prestativa e honesta.

Toda semana eu levo meu carro para lavar, nem que seja para aquela lavagem rápida, de tirar a poeira – só na lata. Descobri um lavador ótimo. O local fica numa avenida movimentada, mas sem publicidade, somente um banner escrito “lavador”. É um terreno enorme, onde funciona também uma garagem para caminhões. Não importa a hora que chegue lá, o proprietário sempre para de fazer o que está fazendo para me atender. Às vezes, quando está ocupado, ele chama um funcionário. A lavagem simples custa 10 reais, mas ele capricha; com um spray de óleo nas partes específicas da ferragem e tinta preta nos pneus. Depois de lavar, ele enxuga. Sempre com uma conversa boa enquanto faz o serviço. Diz que seus filhos menores o ajudam, mas prefere a escola em primeiro lugar, quer que sejam estudiosos – talvez porque não tenha estudado. Somente a menina ele não trás, acha que não é serviço de mulher. Ainda pretende instalar um trailer para vender lanches e bebidas num canto do terreno. Sempre com muita disposição, trabalho e com as ideias à frente. Ele também é jovem.

Outro dia andava por uma feira e encontrei-me com o Ivan. Chamei-o pelo nome como há 20 anos. Ele me olhou assustado debaixo daquele guarda-sol do seu carrinho de picolés. Sorriu e quis saber de onde eu o conhecia. Ele era vigia na agência bancária na qual trabalhei – faz tempo. Naquela época, ele andava numa bicicleta com uma cesta, e carregava uma caixa de isopor com salgadinhos e quitutes que sua mulher preparava. Antes de entrar para o trabalho, Ivan vendia seus salgadinhos no estacionamento do banco. Agora, o encontrei vendendo picolés em saquinho plástico, esses que chamam sacolé. Pelo tamanho da embalagem – grande – há mais picolé do que se fosse ao palito. Ele ainda me mostrou que o leite condensado está no fundo do sacolé, fazendo um dégradé com a cor amarelada do maracujá. Perguntei se era de sua fabricação, ele assentiu: “Minha mulher faz. Temos uma pequena fábrica de sorvetes e picolés. Ela faz e eu vendo”. Mesmo com a pele queimada pelo sol escaldante do dia-a-dia, alguns riscos nos cantos dos olhos, o sorriso de Ivan é o mesmo de 20 anos atrás. Ele deve amar o que faz.

Poderia parar por aqui com essa história do Ivan (me emocionei ao encontrar com ele), mas antes me veio outra lembrança. Ainda há muitos jovens – graças a Deus – dentro das escolas sonhando com um futuro, em ajudar a si e ao seu país. Querendo ser bons profissionais e inovando; buscando alternativas para uma vida sustentável e mais feliz. Vi numa matéria de um jornal local, um grupo de alunos de uma escola técnica da minha cidade, ganhou um prêmio pela criação de um reciclador automático de garrafas pet. Mesmo não os conhecendo, fiquei orgulhoso; seus pais devem ter ficado muito mais.

Bem diferente daqueles estudantes que invadiram e depredaram a reitoria de uma Universidade, só para ter o direito ao uso de drogas no Campus. Ainda bem que esses mimados são minoria; o mundo e o futuro cuidarão deles. Só valem pelo esperneio que fizeram. O espírito vencedor está mesmo nos verdadeiros homens, esses que estão na rua vendendo sacolé com sorriso no rosto.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / novembro de 2011.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O homem que amava velórios

Com o avanço tecnológico, novas profissões estão surgindo no mercado de trabalho; outras vão desaparecendo, se tornando obsoletas; e outras são esquisitas mesmo. Nunca mais veremos telegrafista, datilógrafo, engraxate, bedel, sacristão, leiteiro, barbeiro (de navalha), vendedor de enciclopédia, pianista de filme mudo e fotógrafo lambe-lambe. Por outro lado, o que anda em moda é o personal: trainer, computer, designer, fashion, style e tem até a bizarrice do “marido de aluguel”. Coisas da vida moderna. O que falar de treinador de baleias? Como seria um anúncio da Sea World para contratar tal profissional? Há no mercado?

Na minha cidade, há um homem franzino e pequeno que tem uma profissão excêntrica. Faz anos, desde que o único cinema da cidade era no centro, as opções de lazer eram escassas e não havia mais nada a se fazer, todo mundo baixava lá. A coisa piorava quando eram os grandes filmes da época, os campeões de bilheteria: ET- O extraterrestre, Exterminador do futuro, Grease – Nos tempos da brilhantina... Havia filas intermináveis, dobrando quarteirões. Bem, aí entrava o homem franzino. Ele era quem organizava as filas. Sim, sua profissão era essa: organizador de filas em locais de eventos. Como eu adoro criar siglas, diria que ele era um profissional OFLE. Quando não estava na porta do cinema, estava nos eventos esportivos e até em portas de igrejas, sempre como seu uniforme marrom e um apito pendurado no peito. Uma vez, estava num desses eventos e ouvi alguém gritar: ô linguiça, sai daí! Pensei, depois, será por uma frustração, por nunca ter sido um policial ou um segurança? Bem recente, vi que ele ainda não se aposentou; passava perto de uma igreja e ele estava lá – já de cabelos grisalhos – organizando a saída do estacionamento. Creio nunca ter sido remunerado por isso, faz tudo por prazer mesmo e em troca de algumas gorjetas para sobreviver.

Numa dessas conversas fiadas de fim de tarde, um amigo me contou que em sua cidade, em Minas Gerais, havia um homem que tinha também uma profissão, no mínimo, esquisita. Ele anunciava o obituário e organizava toda logística dos velórios da cidade. Quando Zé Teodoro (Zé velório) ligava para alguém, a pessoa do outro lado tremia e arrepiava até o último fio de cabelo: lá vem notícia ruim... Não havia velório sem ele. Deveria ser um prazer dar a notícia em primeira mão. Imagino também que, tivesse por zelo,  o cadastro de todos os velhinhos da cidade, como assim dizer: para adiantar seu trabalho...

Zé velório era um obituário ambulante — o senhor morte. Divertia-se com a dor das pessoas, ou lhe sobrava compaixão num momento de tristeza? Sabe lá. Não importa, ele figurava presente em todos. Afinal, quem iria se preocupar com que roupa o finado seria enterrado? Quem iria preparar a logística (café, bolinho de chuva, pão de queijo e assentos) para os velantes? E os arranjos de flores? Quem haveria de colar o cartaz anunciando a hora do enterro? E o padre, quem iria chamar para fazer a reza? E o choro — quando necessário —, quem iria puxar o choro? Seu trabalho era árduo, mas proficiente.

Revirando seu lado psíquico, talvez ele tivesse outra compreensão que os demais não tinham pela morte. Em conformação, ele já a esperasse num canto qualquer da vida e por isso a tratava com intimidade e blasé, mas com os olhos zelosos para os que ficavam. Era a coisa mais certa que poderia acreditar; pois sim, enterrem os mortos; é o que nos resta, pois a vida é uma viagem sem volta — pensava.

Hoje nos grandes centros, os serviços funerários, já cuidam de grande parte de tudo isso. Até velório acompanhado pela internet é possível; o que se justifica, quando os parentes estão distantes e o finado precisa ser enterrado logo. Na dor pela perda de um ente, é difícil encontrar quem temha cabeça, no momento, para pensar nessas preocupações todas. Numa cidade pequena, onde o serviço funerário, só existe para vender urnas, não é de se surpreender que existam pessoas com o perfil profissional de Zé velório. Ele inventou o personal death.

Depois dessa conversa, não tive mais notícias de Zé velório, se já faleceu ou se continua ainda gozando de boa saúde e “trabalhando”. Se já partiu, fica a dúvida: quem organizou seu próprio funeral? Será que foi anunciado no serviço de som da praça central? Será que teve café com pão de queijo e bolinho de chuva? Será que deixou em testamento como desejaria que fosse? Vai saber. Ele deve ter deixado seu legado, presumo. Filhos costumam seguir as profissões dos pais. Algumas cidades, Brasil adentro, ainda conservam certas tradições regionais; o progresso ainda não chegou por lá.

Mas, não quero nunca imaginar, se um dia meu telefone tocar e do outro lado da linha ouvir uma voz lúgubre: Alô, aqui é o Zé Teodoro! Eu caio duro no chão.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2011.