BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Além das montanhas

(Comecei um novo texto sobre o bem e o mal, mas como aquele comediante Costinha, parei o causo no meio para contar outro que me pegou mais inspirado. Depois eu volto.)

Eu ainda subia em árvores quando estreou nos cinemas o filme Horizonte Perdido” (muitos anos já se passaram), e, como muitos outros, só fui ver tempos depois, quando adquiri grandeza, entendimento e gosto apurado. O filme é homônimo do livro de 1933, do britânico James Hilton. Acabei de ler o livro, mas o filme já  havia me trazido antes perguntas (algumas sem respostas); tudo que me levou numa viagem enigmática a um lugar distante e perdido nas montanhas, ao tempero de belas canções de Burt Bacharach. Lua azul (Karakal).

(O livro tem uma narrativa mais detalhada e um final diferente do filme. As minhas questões, porém, são as que o filme me deixou.)

Três anos atrás, quando vasculhava uns filmes completos no YouTube (esses de domínio público), deparei com o Horizonte Perdido. Vi as primeiras cenas, sem saber do que se tratava, e de cara já gostei da música. Baixei o filme, com uma qualidade ruim, diga-se de passagem, mas assisti atento e emocionado com sua mensagem sutil; depois a contribuição das belezas de Olivia Hussey (Romeu e Julieta) e Liv Ullmann. Há algo surpreendente. E uma pergunta incomoda ao espectador: foi sonho ou realidade?

Depois da queda do avião, um grupo de cinco pessoas (no livro são quatro) fica perdido nas montanhas nevadas do Himalaia. Ali, longe da civilização, Conway e seus companheiros estão entregues à sorte. Mas, antes que pudesse bater o desespero, são surpreendidos por uma expedição que passava (ocasionalmente?) por ali. Depois de lhes darem alento, aqueles andarilhos oferecem agasalhos e sapatos adequados para a neve. Mais do que isso, aquele guia, num gesto acolhedor, também lhes oferece abrigo num mosteiro, muito além das montanhas. (Eles não sabiam o que encontrariam.) 

Horas e horas de longas caminhadas e vento forte, eles chegam. Ao avistarem aquela paisagem de floresta muito verde e construções como uma vila medieval — ao avesso de tudo do outro lado da montanha —, percebem que estão num lugar paradisíaco, onde a água cristalina jorra das colinas, o clima é ameno e a vida é lenta como será longa.

Shangri-la era um paraíso, de fato. Naquele mosteiro, num canto esquecido do planeta, iriam perceber uma comunidade apaziguada sem tristeza, roubos, mentiras, perseguições, corrupção, fortunas e muito menos comunicação com a velha civilização — como depois descreveu o monge Tchang. Seria possível aquela vida isolada de tudo?

Mas eu enxerguei mais do que isso no filme. Aquela descrição de paraíso, incrustado no meio das colinas nevadas, remeteu à um vácuo, um fio atando a vida terrena à morte — um universo paralelo. Aquele instante que a vida se esfacela, com o desvendar do outro lado (da montanha) e a opção de viver o eterno ou o risco de voltar e morrer (definitivamente) nas avalanches das cordilheiras e de outras doenças. Shangri-la parece um caminho sem volta.

Richard Conway (Peter Finch), como os demais, ia percebendo aos poucos como Shangri-la era agora sua última fronteira. A dúvida que atormenta, do desejo de voltar à civilização, só revela a vida viciada de mentiras, violência e de abandono que não conseguimos nos libertar. (Para onde vamos não há volta.) Parece que não  fomos programados e não suportamos uma vida em paz, sem desejos, exuberância e o poder do dinheiro. Aquela vida sem desafios, guerras diárias num tempo que não passa de Shangri-la, anunciava uma tediosa jornada. Cadê as notícias ruins?

Assim penso que seja o outro lado da vida (da montanha) — parece o que se propõe o romance. Quando atravessamos, não olhamos para frente e diante de quem estamos, mas olhamos para trás e tudo que deixamos na vida interrompida; achando que podíamos ter vivido mais, ter tido mais, ter viajado mais, sonhado mais. A angústia da não aceitação, que não se tem mais aquele corpo, do outro lado, mesmo sabendo que lá o tempo não passa e não precisamos juntar riquezas como forma de sobreviver. Demoramos a entender que a alma se alimenta de outras coisas.

Já caminhando para o final, Conway é pressionado por seu irmão (ele se apaixonou pela "jovem" Maria) a deixar Shangri-la. Entre a cruz e a espada, ele decide, por fim, partir, deixando aquele sonho que  nunca imaginou ser tão real; e depois esquecer sua paixão por Catherine, a professora que conheceu em Shangri-la. Ele estava mesmo decidido a voltar à realidade da civilização, talvez porque duvidava que tudo o que vivia ali era mesmo verdade. Ao vê-lo partir, o velho Tchang, num ar de passividade e confiança, diz assertivo: "ele vai voltar".

Na caminhada, a neve, o vento varrendo e a avalanche vêm com crueldade, e aquele pequeno grupo se vê em risco. A perder toda pureza do ar e de todas as maravilhas de Shangri-la, Maria envelhece no caminho e morre de fraqueza. Ao vê-la morrer, seu irmão se joga num desfiladeiro e Conway, dias depois, é resgatado, despertando numa cama de um hospital de campanha. Ele teve alucinações falando de um lugar chamado Shangri-la, disse o médico. 

A morte talvez seja mesmo essa passagem, como acreditam algumas pessoas. Uma travessia desse para o outro lado da montanha, como um mundo em paralelo no meio, onde o tempo não passa e a volta é quase impossível. Mas a pergunta que fica sobre o final, quando Conway desperta do seu coma: foi realidade ou sonho? Não tem como saber o que se passou. Conway, então, foge do hospital e sobe as montanhas de neve novamente tentando encontrar o caminho que o leve à Shangri-la, onde está a vida que ele agora quer viver, eterna e com a mulher que amou.

Depois desse "the end", fiquei entalado me perguntando sobre aquele desfecho e até onde nossos sonhos podem nos levar. Toda vez que ouço notícia que um avião desapareceu na sua rota, penso que foi resgatado a um horizonte perdido; num mundo paralelo, onde a vida é calma e sob uma lua azul. Não houve morte, mas resgate. Uma verdadeira Shangri-la, onde o que menos importa é o tempo passar.
 

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2016
   

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Eu não tenho mais tempo para errar


Quando eu tinha 18 anos, fui levado pelo delírio de uns amigos a escalar a Pedra do Baú em São Bento do Sapucaí — SP, a 1950 metros de altura. Confesso que foi uma aventura perigosa tentar subir aquela “parede” sem nenhum equipamento de segurança; com mochila nas costas e se apoiando somente em escadas de ferro engastadas na pedra. Ah, só para apimentar mais a aventura, em alguns trechos não havia escada, tínhamos que segurar e pisar em pedras mesmo e...rezar. Que loucura! Não sei se fui intrépido ou fiz aquilo para não passar por medroso diante dos meus amigos, mas pus minha vida ali em resvalo com a morte, exatamente esta única que tenho. A despeito de não chegar até o topo, pois fui prudente comigo, descobri o meu limite. Até onde me permiti chegar ainda pude apreciar a bela paisagem da Serra da Mantiqueira, e isto já me bastou. Voltei feliz do passeio.

Nessa idade, muitos de nós homens, queremos desbravar o mundo, desgovernar as rotas que nos são dadas, navegar sem bússola e arriscar tudo; se atirando no vazio da escuridão só para sentir a emoção do salto, a adrenalina efervescente e pulsante em nossas veias. É a fase em que a vida se torna um verdadeiro bungee jump. Não temos medo de errar o passo adiante e cair no calabouço da dor e da angústia. Permitimos os primeiros pileques e andamos em bandos para chamar atenção. Mas chamar atenção de quem mesmo? Experimentamos todos os tipos de venenos e paixões. Apaixonamos sem saber sequer se os signos combinam — vê se pode isso! Paixões platônicas e não correspondidas. Lançamos o coração nas relações, como saltamos de cima da ponte para dentro das águas turvas de um rio, sem saber o que iremos encontrar no fundo. Subimos montanhas sem medo de pisarmos em pedras soltas. Ficamos vulneráveis às delícias da vida sem saber as consequências e o risco que corremos por colocar nossa vida na ponta de um trampolim ou nos ganchos do alto de uma montanha, onde só temos nossos pés para apoiar e as mãos para segurar a ponta de uma pedra. O céu é nosso limite.

Não posso negar que vivemos pequenas aventuras já na infância. Quando criança, nós só iremos aprender a andar, caindo; e caímos muitas vezes antes dos primeiros passos. Depois vamos só entender o que é o choque elétrico quando enfiamos o dedinho na tomada. Assim seguimos pela vida, caindo e levantando, desafiando o perigo em muitas vezes como forma de aprendizado; em outras como inconsequentes, colocando o coração à frente dos pés e da razão.

Vivendo esperanças, alegrias e decepções; sofrendo por fazer escolhas erradas e arriscar com os olhos vendados: como se dará o próximo passo ao abismo ou à felicidade eterna que se enseja. Profundamente mergulhamos em mar revolto sem perceber o perigo iminente. Até que depois de algumas costelas quebradas e corações partidos chega o dia em que uma luz se acende em nossas vidas; como um candeeiro iluminando o caminho. Seja por nós mesmos ou pelas mãos de nossos pais — sábios guardiões dos nossos passos — abriremos os olhos para novos horizontes. Haverá aqueles que não ouvirão as vozes de seus guias e guardiões e por isso terão de aprender sozinhos, apanhando mais um pouco.

Depois de algumas quedas e desenganos, recostamos nossas cabeças e nos recolhemos ao interior. Nessa conversa franca e sincera, decidimos, por fim, fincar nossos pés em terrenos firmes e férteis. Amadurecidos ou experientes, como queiram, não atrevemos mais escalar pedras íngremes em busca de felicidade e prazer, já não queremos a aridez de corações insensatos e desertos; apavoramos com certas aventuras e apontamos nossos objetivos naquilo que é mais palpável e em laços fortes que não desatam. Não queremos dar mais tempo para ficar provando o fel esperando que um dia se torne doce.

Num mesmo dia ouvi de duas mulheres — já vividas e maduras — a mesma frase: Eu não tenho mais tempo para errar! Num tom quase de desabafo, fiquei sem resposta do que ouvi. Como se a felicidade fosse uma carruagem passando à porta e não haveria mais outra chance de encontrá-la num lugar no futuro; o tempo é seu adversário — acreditam. Assim, não haverá mais chance de errar e pisar em pedras soltas pelo caminho ou tropeçar nelas. O tempo galopa com o vento e lá no fim há um pote de ouro que é preciso encontrar: a felicidade, o ápice, o paraíso enfim; e antes um precipício a nos desafiar e um labirinto por percorrer. Essa é a estrada, a de todos nós...

Entendo, para essa mulher que já passou pelos 30 anos, há outra preocupação com a cobrança que a sociedade lhe impõe, em especial sobre o tempo minguado que a natureza lhe reservou para maternidade. Como já ouvi de algumas delas: “nós temos prazo de validade”. E para muitas, a felicidade está associada ao modelo de vida tradicional: casar, ser mãe e constituir uma família. Elas se queixam de não ter mais tempo para se arriscar numa relação onde não há reciprocidade e objetivos iguais, pois a maioria dos homens ainda continua escalando suas montanhas.

O que querem estas mulheres? Elas, na verdade, não querem mais semear em terreno árido, onde não darão frutos, relacionamentos viciados; e esses também onde as pessoas se juntam para depois ficarem só consigo; cada um no seu mundo particular, puxando a corda para o seu lado. Juntas, mas caminhando em rumos opostos.

Gostaria de encontrar estas duas mulheres de novo e agora poder contar-lhes da minha escalada, dos meus limites, dos meus saltos e quedas. E com o pouco que aprendi na minha jornada, dizer: "coragem, coragem!" Não há culpas ou remorsos, pois à vida demos o melhor de nós. No lado desconhecido da pedra que se deseja escalar deve haver uma trilha na mata, um caminho mais seguro e menos íngreme; um caminho apontado por Deus, onde não há abandono e tristeza, mas um caminho...

Talvez demore mais para chegar, mas chegaremos mais seguros ao mesmo lugar. Se não houver, abriremos trincheiras com a mesma presteza que fizemos para sair do berço e andar. Direi também, que o tempo não é mais nosso inimigo, ele é o remédio com doses diárias para as feridas da alma; para amar e viver, ele é nosso aliado, pois nos deu as lições dos tombos que levamos. Vou errar ainda na minha caminhada, eu sei, quem sabe desvie por alguns atalhos incertos, mas sei que haverá tempo para voltar com retidão e começar tudo de novo.

E ainda restará outro tempo. O tempo para amar e contemplar o nascer do sol do alto de uma montanha.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2010.