BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sábado, 18 de abril de 2020

A goteira


Você pode se perguntar: Por que os idosos estão nas redes sociais e nas manifestações de rua, pedindo por um país melhor, sendo que eles nem alcançarão esse futuro?  Por que eles não deixam essa luta para os mais novos?

Fazendo aqui um ensaio, tenho para mim que a luta está na alma, é por vício mesmo. Muitos deles vieram de uma geração onde se ia à escola pública de pés descalços, com apenas um caderno, um lápis e muita esperança estampada nos olhos. Naqueles tempos de escassez e carestia, o prato de comida era sagrado e se comia o que era posto à mesa. Em tudo mais havia luta.

Muito diferente das gerações que vieram a partir dos anos 80 (geração Y). A eles já não foi dada nenhuma tarefa árdua de sobrevivência. Eu os chamo de geração que separa-cebola-no-prato. E, como disse meu irmão, não sabem descascar nem uma laranja. Foram acostumados a receber tudo mastigado, pronto para consumir: carro esperando na porta da escola, roupas de lojas, smartphones, Big Mac, etc. Tudo sem precisar dar nada de si.

Ali, já na minha segunda infância, lembro quando eu dormia num quarto com mais três irmãos. Nas noites torrenciais, eu era acordado para arrastar minha cama da parede, porque ali havia uma goteira (pontual, insistente e criada), de escorrer água pelo reboco. No dia seguinte, o quarto estava inundado.

Nunca me senti ultrajado pela goteira, em particular; nem depreciava a fragilidade das telhas, dos caibros e da cumeeira por não suportarem a água daninha; ela só era insurgente, pior que a própria torrencial que despencava lá fora. Sem ninguém me dizer nada do que era preciso ser feito, enfrentei outros monstros: a miséria, a cegueira da ignorância e tudo que me avizinhava. A luta dos que estão velhos.

(O que nos humaniza são nossos fracassos, já disse o filósofo.)

Hoje, minhas noites torrenciais são quase silenciosas ou mudas, numa doce sinfonia com meu sono. Precisei, no entanto, anos para dormir como nunca dormi na infância, sem medo do espectro. E minha cama não precisa mais sair do lugar.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista /abril de 2020