Foi Zé Rodrix quem compôs “Casa no Campo”. Ele faleceu em 2009 aos 61 anos de idade. Durante sua carreira, cheia de altos e baixos, foi: cantor, compositor, produtor, arranjador, saxofonista, publicitário e escritor. E no final da vida, ainda lhe sobrou tempo para por os pés na estrada, e junto com velhos parceiros, Sá e Guarabyra, reviver alguns dos seus rocks rurais fazendo shows pelo país.
A canção que marcou sua carreira foi composta em parceria com Tavito e ganhou o Festival de Música de Juiz de Fora — 1971, pouco depois Elis Regina deu alma e tornou-a conhecida nacionalmente. Faz algum tempo fiquei sabendo que “Casa no Campo” era o hit da juventude daquele início de anos setenta, pós Woodstock; o hino da galera hippie — um movimento de contracultura que propunha viver em uma sociedade alternativa e comunitária; em comunhão com a natureza, desapegada de tudo e longe do convívio urbano. Aquela geração queria esse refúgio, esse retiro espiritual para o avesso do mundo. Justificando a asserção de plantar amigos, discos, livros e nada mais. Nada mais e ponto final.
Naqueles idos, do outro lado do mundo a Guerra do Vietnã ainda corria em trincheiras abertas; o Brasil vivia debaixo de um governo de regime militar; ensaiava-se uma nova ordem na música com o fim dos Beatles. Enfim, havia tantos mais motivos para se refugiar numa casinha de pau a pique e sapé. Acredito que, Rodrix morreu sem viver o sonho daquela casa, ou melhor, precisou pelejar para ganhar o seu pão, sobrevivendo à metrópole com seus arranha-céus; e pouco lhe restou para viver num lugar onde pudesse ficar como queria: do tamanho da sua paz.
Todas as manhãs eu abro meu jornal virtual — não saio de casa sem pelo menos ler algumas notícias —, há muitas desgraças e poucas coisas boas para lhes contar. É corriqueiro, não muda. Às vezes me pego pensando como virar este mundo ao avesso, digo, como chamar atenção das pessoas que, pelo jeito, não se sentem responsáveis por nada. Ainda não aprendemos a viver, lutamos contra nós mesmos; e não há outra raça para competir conosco em igualdade. Por que então? Precisamos de um homem novo, um arquétipo novo da raça? O mundo de 2010 ainda continua a fabricar suas guerras estranhas e sem propósito; o Brasil — agora da democracia — vive sob o estigma da corrupção, das torturas ideológicas e das desigualdades sociais; por fim, ninguém mais veio substituir os Beatles na música. Como naqueles anos, temos tantos outros ou mais motivos para se refugiar e querer a paz, a nossa paz interior. Ou então — já que não conseguimos vencer o mal do mundo —, de maneira radical, nos retiramos daqui, como sugeriu o físico Stephen Hawking em declaração recente.
Os hippies, da mesma forma que se espalharam também sumiram do planeta, e ninguém apareceu de novo organizando festivais de rock sob a batuta do lema “paz e amor”. Nada mudou, ou tudo mudou e agora para pior; muito perdemos em moralidade e no sentido do respeito à vida e ao próximo. Agora querem também incendiar a casinha que desenho para um dia morar. Não deixarei. Quero minha casa no campo: aconchegante, sem infiltrações, sem goteiras, de forte alicerce sobre rocha, e no extremo norte da minha paz.
Em alguns hectares do meu pensamento ela se constrói. Eu também quero uma casa no campo. Ela será modesta com poucas divisões e volumetria singular: um alpendre generoso para acomodar cadeiras de balanço, ganchos para redes e ladeado por samambaias e avencas. A sala com pé-direito duplo e lareira; a cozinha com fogão à lenha; aposentos com esquadrias com vista para um gramado e montanhas como seu pano de fundo. Um ambiente para “jogos radicais” como sinuca e futebol de botão. Um lago para pescaria de final de tarde; uma horta para colher folhas tão necessárias à saúde; um pomar de frutas cítricas; um rio raso de águas cristalinas e de três margens correndo no quintal. Por fim, uma lua colada no céu (cancerianos não vivem sem). Ah! Também terei a companhia de um casal de cães labradores e um jipe “Willis” para um “off road”, em busca de cachoeiras e paraísos exóticos. Uma vida simples com meus amigos, discos, livros e nada mais.
São inúmeras as histórias de pessoas que largaram tudo, ou quase tudo, e foram em busca do seu refúgio. É o caso do ator Walmor Chagas que há anos mora num sítio em Guaratinguetá e de lá só sai para um trabalho que vale a pena. Imagino que muita gente já tenha vivido a fase de querer uma casinha no campo. Eu tenho sempre esta vontade, vivo tendo. Esconder-me do mundo, de tudo e de todos. Sem vizinhos, sem trânsito, sem reuniões de trabalho. Não porque não gosto das pessoas; não porque quero ser um hippie e odeio o mundo onde vivo, mas porque às vezes há que se desistir para recomeçar num outro ponto qualquer da vida; é o melhor para a sobrevivência, um trem que chegou ao fim da linha, precisa agora mudar de trilhos. Irei mudar o que há em mim, fora do meu corpo fica difícil competir.
A casa agora em meu peito é um abrigo de sonhos, um sol que desponta com suas janelas abertas para a alma, e vem com a aurora; e o coração meu quarto refúgio — de segredo, mistérios e amores guardados. Do lado de lá passo a vida e o tempo que me resta, que me cabe. Vivida e longe das mãos dos que torturam e esmigalham o amor em troca de rancores e riquezas fúteis — eu quero minha casa no campo. Não quero mais carregar o mundo sobre os ombros, como já teimei. Agora estou a caminho, a minha estrada é de luz, de exuberantes flores, mas com pesada cruz, a minha. Serei efêmero? Não importa, a casinha no campo é um sonho. Caminho até ela. A face rubra do sol, os pés empoeirados e as pedras que me atormentam. Logo chegarei até ela — há tempo. Renunciarei orgulhos, tristezas, decepções e mágoas pelo caminho. Regarei os jardins dos corações insensatos com sorrisos e esperança. Colhendo frutos e seguindo os passos justos. Um andarilho dentro de mim caminha sem parar. Que inveja fará ao peregrino de Santiago? Haverá dias que virão tristezas, eu sei, mas resistirei em seu propósito. Quero encontrar minha casa antes do arrebol, antes da minha morte, antes da minha próxima dor.
Plantarei comigo todos os amores que vivi. Do baú, os retratos que guardei de histórias passadas. De nossas risadas e beijos ao luar. Da brisa da infância tão distraída. O presépio da noite de natal. A bola de futebol. As laranjas do quintal e o primeiro uniforme escolar. Quero levar você, nesga saudade, com suas cartas de amor e as canções que nos fez chorar. Sua doçura e tudo que ficou no meu paladar. Não serão objetos de adornos as iras e mágoas. Tenha certeza, sob minha guarida não haverá revoltas. Nas paredes, quero afrescos dos seus olhos para as tardes que tiver que suspirar de amor. Do nascer ao pôr-do-sol irei pensar que o amor nunca morreu, o tempo adiou para ser eterno como será a vida na minha casa no campo. Deixa-me construir agora...
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Agosto de 2010.