BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)
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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A rebentação

Se procurarmos nos fóruns de discussão na rede de computadores, iremos encontrar várias interpretações para o mesmo assunto, onde para você (e para mim) só tem uma resposta, uma convicção e afirmação. Confrontaremos com inúmeras discordâncias e pontos de vistas, porque cada um enxergará sob seu viés. O que nos faz refletir mais.

Basta recorrer a uma análise simples de qualquer obra literária ou filme, verá que cada um tem algo diferente a dizer. Ou aquilo que mais lhe chamou atenção. Atentamos mais aos capítulos e passagens que nos aflige diretamente, porque o natural do subconsciente é registrar, tão somente, aquilo que nossa alma mais necessita se alimentar naquele instante. De uma forma bem simplista e clara.

Às vezes, os livros e filmes passam por nós e anos mais tarde, aquela cena ainda permanece tatuada em nossa memória. Uma hora irá desflorar, e iremos entender o porquê; e tudo se fechará, como uma peça que faltava naquele pensamento nebuloso e confuso.

No filme “Náufrago” de 2001 — mais uma grande obra desenhada por Tom Hanks — iremos nos deparar com várias mensagens. Cada um irá contar aquilo que mais lhe afetou.

A trama narra a história de um executivo de uma empresa de entregas — FedEx —, que era uma espécie de workaholic e pouca importância dava à família, às pessoas e ao convívio social. Sua vida era o trabalho e só. Depois da pane no avião onde viajava, ele se torna o único sobrevivente da queda e vai parar numa ilha, isolada num canto qualquer do planeta. O restante da tripulação morre e ele fica preso a esse mundo pequeno, desabitado e sem vida aparente. O que é vida afinal?

Ali desenvolve habilidades manuais e primitivas para sobreviver a sua diminuta e solitária vida. Suas necessidades agora se baseiam em habitar, se proteger das intempéries, se alimentar, e assim como um homem das cavernas, “descobrir” o fogo, atritando alguns gravetos.

O dilema de Chuck Noland, papel de Tom Hanks, vai além do fisiológico e do subsistente; ele queria sair daquela vida limitada e encontrar novamente sua civilização; o convívio das pessoas, a cidade barulhenta, o trabalho, a família, sua miséria cotidiana... Sobreviver já não era sua sorte. A solidão era cruel e uma companheira incômoda; o que fez de uma simples bola de voleibol seu alter ego, o amigo inseparável com quem conversava muitas vezes e por isso passou a chamá-la de “Sr. Wilson”. Uma forma de ouvir seu interior.

Mas qual é o ponto do filme?

Para mim, está condensado no desafio em construir uma embarcação que pudesse alcançar o alto-mar, a sua salvação. Malgrado, ali havia um busílis não calculado por ele; seu estorvo era a rebentação que quebrava alta e distante da praia; ultrapassar aquelas altas ondas, que sempre o devolvia ao ponto de partida, à praia da sua ilha deserta. Ele tentava e o mar o arremessava de volta. Aquela rebentação era a barreira que o mantinha preso na sua angústia, sua tragédia maior, no seu mundinho defectível e solitário; sair daquela melancolia que o aprisionava por 04 anos se tornava cada vez mais difícil.

Passados aqueles anos, experiente e conhecedor do ambiente que agora vivia, ele pensou: era preciso mais do que construir uma embarcação; era preciso estudar e entender os ventos, as marés, as estações do ano; e num momento único e derradeiro haveria uma chance de quebrar as ondas gigantes. Antes teria de construir uma embarcação segura, que pudesse levá-lo de volta à vida. Em mar aberto, os bons ventos o levariam para longe e assim ser alcançado por uma mão salvadora, em águas brandas. Lançando-se ao mar aberto, como uma vida longa e ampla, a possibilidade de encontrar a salvação era maior. Ele só tinha que vencer aquela rebentação.

Tudo que traçou deu certo, ele venceu as ondas. A vida já não era mais aquela miserável ilha. Ele estava pronto para ser resgatado, as correntes da prisão foram rompidas; e ele agora navegava em mar aberto e calmo, até ser resgatado por um navio cargueiro. E tudo nele se transforma a partir desse ponto, dessa passagem.

Numa situação análoga, a vida tem feito seres humanos presos em ilhas desertas que não conseguem vencer a rebentação, e sair para mar aberto; por medo, por covardia e em muitas vezes por ignorância vivem como eternos aprendizes de si. Aquele ser conforta-se que o mundo é uma ilha mesmo e aqueles que o quiserem, que venham até ele. Alguém se habilita?

Dentro dos trens de metrô onde viajei pela Europa, era esta ilha de gente que se via; em comunicação única e exclusivamente com seu iphone. Rindo solitariamente das fotos que compartilhavam ou das mensagens que abriam; sempre com ninguém presente, como um ser distante e ausente.

Numa conversa de botequim — aprecio e aprendo muito! — falávamos sobre uma mulher que, à luz dos 70 anos, vivia em sua ilha deserta e desabitada. Qualquer convívio fora do seu mundo revelava o seu lado amargo, sombrio, agressivo, infantil, histérico, com proclamo de vítima social e não aceita por ninguém — sem caráter social. Pensei: com a vida quase chegando ao fim e ela ainda não aprendeu? E não aprendeu mesmo.

É premissa, para viver em sociedade, ser cortês, ter paz de espírito, ter sensatez, bom humor, aceitar brincadeiras e muitas vezes não dizer o que pensa sobre tudo que vem à cabeça. O que não é o caso dessa senhora; criança mimada, que o “mundo não quer compreender”, e com ele não aprendeu com seus tropeços e quedas. Algum momento da vida a tornou assim? Creio que sim: uma fala, um gesto de alguém a fez viver na defensiva e ser intolerante aos outros, sem percepção de si. Com longínqua idade para aceitar a transformação, ela não consegue e já não quer mais construir sua embarcação; romper a rebentação que aprisiona em sua ilha egocêntrica. Mundo pequeno e cruel. Quem irá visitá-la na sua melancolia? Comentamos e apontamos, mas, por resignação, acabamos sentindo pena.

O mar da idade, quando se quer alcançar (mesmo aos 70 anos), é aberto e visto num horizonte de paz. Foi uma luta do barco com a rebentação; ou dos braços cansados nadando sobre revolta maré. Vencer as ondas! Almejar pelo mundo civilizado e social; esperar por mãos afáveis, navegar sereno na embarcação que o vento já conduz sem medo; por fim, encontrar terras habitadas por pessoas e não por iphones.

Mas quanto aos maremotos? Asseguro que minha embarcação é robusta para atravessar. Não haverá novo naufrágio, não retornarei à ilha deserta de mim — all by milself. Não comerei o pão que o diabo deixou amassado, porque simplesmente não quero mais tal condenação. A rebentação já passou, e o maior triunfo é encontrar um porto seguro para viver em terra firme e civilizada.

Cast away — o título em inglês de “Náufrago”. Tudo termina com o personagem parado num cruzamento de duas estradas, num lugar também deserto e incerto — sem setas. A escolha agora é do caminho, porque qualquer seja o escolhido, ele estará lá na sublimação, de corpo e agora também com a alma. Velas ao vento.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pão com manteiga


Um dos atores, hollywoodiano e contemporâneo, dos mais talentosos é Tom Hanks. Nos filmes em que atua, não me perco em ler a crítica antes; sento para ver, já sabendo que vai me prender do começo ao fim.

Faz um tempo, li uma entrevista que concedeu às páginas amarelas da semanária Veja. Ao ler o que pensa sobre a carreira, a fama, a vida e seu modo de escolher os filmes em que atua, extrapolei minha admiração, agora também é pela pessoa. Ele é um sujeito modesto, familiar, que até acha um despropósito os cachês que recebe pelos filmes; considera que há outras profissões que mereçam muito mais. Hoje, se dá ao luxo de escolher seus papéis só porque fará um bom personagem, sem se preocupar com o destino do filme; fugindo dos roteiros comerciais e dos mocinhos caricatos, enfadonhos, e assim justifica: “... nunca tive um tipo físico que me permitisse encarnar o Super-Homem”. No final da entrevista, ainda tece rasgados elogios ao diretor brasileiro Fernando Meireles pelo filme “Cidade de Deus”, e confessa: “vi o filme com atraso, há poucas semanas, e estou até agora atônito”.

Dentre os filmes, de sua brilhante carreira, cito o exuberante “Forrest Gump — o contador de histórias” — 1994. Nessa trilha, Hanks é Forrest, uma criatura ingênua, pura, ausente de picardia, cinismo, e com um QI abaixo da média das pessoas ditas normais. Toda sua inspiração e os conselhos que leva para vida são os da própria mãe, a quem sempre citava por suas frases: “A vida é como uma caixa de bombom, você nunca sabe o que vai encontrar”. Forrest narra as suas próprias histórias, ou, se coloca como centro das histórias de “coadjuvantes” ilustres como: Elvis Presley, John Lennon, John Kennedy e Richard Nixon. Sentado num ponto de ônibus, esperando uma condução que parece nunca chegar, Forrest fala e fala...

Da sua infância, vem o primeiro amor, digo, o único amor por Jenny. Uma menina que parece ser a única, além de sua mãe, que o vê como uma pessoa normal; e o aceita com seu jeito desengonçado, tentando andar dentro de um par de botas ortopédicas. Ao falar sobre Jenny e de como a conheceu dentro do ônibus escolar, Forrest enaltece: “Nós éramos como pão com manteiga...” — uma versão em português para peas and carrots. Na sua forma mais simplista e pueril, queria dizer: éramos inseparáveis, um não vivia sem o outro, unha e carne, corpo e alma... A versão dada em português foi o que deu grandeza na descrição do que era sua relação com Jenny.

Pão francês com manteiga é uma delícia; e a manteiga é sempre na medida: nem mais, nem menos. E fica mais gostoso passar nas duas abas do pão, depois dobramos e comemos uma aba por vez, com café e leite. A manteiga sem o pão é detestável, quase nenhuma utilidade, às vezes serve para untar forma de bolo; o pão sem a manteiga é sem gosto, incompleto. Não há valor, um sem o outro. São complementos. Assim, como dizer, arroz com feijão, na nossa culinária. Tudo é mais gostoso e saboroso quando estão juntos: manteiga no pão. O café colonial é farto, nos enche os olhos, mas nos perdemos em tantas variedades; já o pão com manteiga não comemos com os olhos, é o que temos para comer naquela hora, no dia-a-dia e nos saciamos também.

Assim, era na entrega, como Forrest vivia seu amor, que durou a vida toda — ou pelo menos até o final da trama —, sem cobrar de Jenny a reciprocidade. Era incondicional da sua parte. “Posso não ser inteligente, mas sei o que é amar...”, disse ele quando a pediu em casamento. Ele sabia o que estava dizendo, sobre as duas coisas. Após anos sem vê-la, ele a encontra numa vida mambembe, em más companhias e enfiada nas drogas. Mesmo assim, ela o reconhece e respeita, ao enxergar pela única fresta que restou da sua vida, o amor — o único que teve. O tempo poderia passar; o vento esvoaçar as cortinas da sala, bater as portas, mas o amor estava lá, guardadinho, prontinho para viver. Forrest amava como uma criança e agora ela sabia e desejava este amor.

O espírito de Forrest, nesta parca analogia, nos trás à reflexão: onde estão nossos verdadeiros valores? Na fartura ou na simplicidade de viver o dia-a-dia? E como ansiamos, muitas vezes, combinações mais caras, ou com maior valia — pela abundância. Quando, um simples pão com manteiga, também mata a fome — a fome de amor. Talvez, estejamos errando aí, quando buscamos a perfeição nas relações, ambicionando riquezas que as traças comerão um dia. Na gíria futebolística chama-se “jogar o arroz com feijão”; onde se ganha o jogo da vida, sem muitas ambições e jogadas de mestre. Um não é melhor que o outro e o placar a favor é sempre com score baixo. Quando os dois jogam juntos, o amor sempre vencerá. Relacionamentos sem ciúmes, sem intrigas e cobranças, caminhando num mesmo sentido, são fadados a ser por toda a vida. O universo conspira.

Talvez, se forçarmos a memória, encontraremos casais que vivem o “pão com manteiga” — dá para contar nos dedos —, caminhando juntos e construindo tijolo com tijolo, um lar, uma família... Nos seus horizontes projetados, a grande ambição é sempre manter acesa a chama do amor; regando o jardim da vida que os uniu, onde cada um segura em uma das alças do regador, enquanto espargem água sobre as sementes. Tudo num “pão com manteiga”, simples; e como Forrest e Jenny, inseparáveis.

Tom Hanks escolheu fazer Forrest, pelos mesmos critérios que sempre adotou: um personagem marcante; um personagem que deixou plantado em nossas mentes, de QI elevado, a confirmação que para amar só precisamos ter um amor e pureza dentro de si. O filme, ganhou naquele ano 06 Oscar dos 13 concorridos; inclusive o de melhor filme e melhor ator, para Tom Hanks.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2011.