Até pelo status da profissão, gosto de debater, e rebater, certos temas que surgem dentro da área em que atuo. Quando as conversas são sadias vêm boas ideias. Mas tem aqueles que pegam carona, na matéria da qual não dominam, e vão propagando por aí como a única verdade, a única saída, um soro para vida. A cada dia surge uma nova ordem para o guia do politicamente correto.
Durante o regime militar, a classe artística, jornalistas e intelectuais eram coagidos ao engajamento de algum movimento antiregime, antimilitarismo. Quem não se manifestava, simplesmente era colocado à margem e tachado de dedo duro; um excluído de qualquer convívio. Foi o que aconteceu com o cantor Wilson Simonal, que teve a carreira despencada, por acusação, sem nenhum direito de defesa, de ser um traidor da esquerda e suas lutas. A verdade é que nunca aderiu à nada. Ele era só um cantor negro de sucesso, talvez o maior da época.
Hoje em dia, não existem mais os engajamentos políticos exacerbados; o que há são alguns grupos de patrulhamento, polícias de pensamento, na forma mais ruminante de querer nos empurrar um cardápio social, como forma de reparo, de exclusão de qualquer minoria. Ser um ativista, um cycler é chique, é a última moda. Como o cantor Chico César, que apareceu num programa de entrevista sobre uma bike desmontável e dizendo que até nas viagens internacionais carrega sua magrela.
E resvalando nesse assunto, na questão da mobilidade urbana, a moda agora são as bikes, apelido dado às bicicletas. E para muitos discursistas, ativistas, bandeiristas, não há veículo melhor para os deslocamentos das cidades do presente e do futuro: não polui, é saudável, tem tráfego livre, não atropela pedestre e é menos perigoso que os motorizados. Só há vantagens. Vamos ver.
Sou saudosista para muitas coisas: discos velhos, móveis, automóveis, livros, filmes, séries de TV, lugares. Gosto de visitar o passado com as mulheres bonitas, seus costumes e comportamentos. Creio que, no passado, o convívio social era mais próximo. Hoje, com mais gente habitando o planeta (sete bilhões), ficamos longe um dos outros; ficamos mais individualistas, quando deveria ser o contrário.
Nessa retórica, cada um está puxando a sardinha para o seu lado. E alguns discursos são longos e chatos. Tem o discurso da legalidade e discriminação das drogas; tem o discurso dos excluídos sociais; dos racistas; e também tem o discurso daqueles que quererem fazer a bicicleta o veículo do futuro. Ou seja, voltar ao passado saudosista e romântico, sem o olhar analítico às outras implicações que desafiam a cidade do presente e o modo de vida das pessoas de hoje. Também gostaria que fosse assim, mas não é. Quem sabe, nessas ondas e tendências, apareçam também os partidários e adeptos das carruagens. Guardarei isso.
Nada disso! As cidades de hoje e do futuro precisam de tecnologia. De transportes mais ágeis, confortáveis, silenciosos, protegendo-nos das intempéries; transportando mais pessoas (somos muitos mais que no século XVIII) e que não poluam o ar das metrópoles. E também em transportes que possamos conviver e criar amizades; ler um livro durante o percurso, ou ouvir música até cochilar.
Não sei dizer se o melhor meio de transporte de massa é sobre rodas, ou sobre trilhos. Depende da demanda da população que irá atender. Mas não importa a tecnologia, o desejo é que transporte mais pessoas, em menor tempo; assim acabará com os congestionamentos e desestimulará o uso do automóvel. Se quiser uma cidade mais respirável e boa para morar, os deslocamentos por transporte de massa tem que vir em primeiro que os outros.
Bicicletas no trânsito de Londres - Setembro 2012 |
E as bicicletas? Elas vão nessa sequência. Vão aproveitar os espaços deixados pelo melhor uso do transporte de massa. Sendo adotada para pequenos trajetos e ligações aos terminais rodoviários. Nem todos andarão de bicicletas, por mais que elas sejam incluídas no sistema. Nos dias chuvosos, por exemplo, a maioria irá de trem ou ônibus. Transporte bom e para o futuro é aquele que carrega o maior número de pessoas possível, ligando os quatro cantos de uma cidade.
O que não é cabível — esta é a briga dos ativistas — é fazer a bicicleta disputar espaço com o automóvel, sem se apresentarem um ao outro. A briga estimulada é essa. Os ativistas pela bike não são pela cidade e pela mobilidade, mas pelo direito de poder pedalar. Vai ser difícil, nas cidades brasileiras, um motorista entender que uma bicicleta também faz parte do sistema. Ele sempre achará que ela só atrapalha. Por isso é necessário desestimular o uso dos automóveis pelos ônibus.
Durante os oito dias que fiquei em Londres, pude perceber muito de perto a convivência das bicicletas com o trânsito de uma cidade de mais de dois mil anos, medieval na sua infra-estrutura. Londres é linda, de arquitetura nobre, milenar, tranquila, de gente educada na convivência do trânsito, seja na pista ou na calçada. Linhas de metrô cruzam a cidade de ponta a ponta, Under ou Overground.
Os ônibus two floors circulam a 30 km/h; não há cobradores gritando para o motorista quando deve fechar a porta; os condutores ficam em cabines protegidas do “converse com o motorista somente o necessário”. Viagens tranquilas e lugares para sentar, sempre. Todo o sistema é integrado, ônibus e metrô. Num mesmo cartão semanal você pode fazer quantas viagens quiser em qualquer um dos meios públicos. Durante as viagens nenhum automóvel se atreve a entrar nas faixas exclusivas. Os ônibus deslizam no asfalto e junto com as bikes vão partilhando, sem buzinadas e atropelamentos.
E mais que tudo isso, o transporte público é o encontro de todas as classes sociais. Andar de automóvel não é status, porque a cultura britânica não tem espaço para essa tolice, de parecer ser o que não é; de carros tocando sertanejo e funk num volume insuportável. Eles circulam de transporte público porque é seguro, confiável, rápido e confortável. Felicidade não se ostenta.
Mas o que me instigou a escrever estas linhas? Outro dia deparei com o cartaz acima “o veículo do futuro chegou faz tempo” — possivelmente criado por algum ativista e não urbanista. Não comentei e não compartilhei na minha página do Facebook. Achei demagogo e vazio de argumentação. Pensei, mais uma modinha vem por aí... Haverá bicicletadas com gente nua montada — já houve — reivindicando mais espaços para bicicletas nas ruas. Tenho afirmado, não sou adepto a nenhuma corrente, ou ativista de qualquer moda. Eu tenho muito apreço e afinidade com a lógica, e com ela eu tento lidar com a vida.
Quando se pensa em urbanização e planos diretores, traça-se um caminho de metas e diretrizes que apontarão o melhor horizonte da cidade; um modo de vida com qualidade. E por isso, acredito que a ordem das coisas deva ser respeitada. Assim, como nas cidades europeias, o transporte público eficiente e por excelência, veio antes da ressurreição dos não motorizados, as bikes. Antes veio a cultura: deslocar de transporte público não torna ninguém mais pobre; e o contrário, dentro de um automóvel não torna ninguém mais poderoso. Antes veio a cultura do respeito às leis e ao próximo, com confiança aos poderes constituídos; veio o respeito ao direito de ir e vir por todos os meios. A bicicleta só pegou carona nessa cultura.
Concluo. A bicicleta não é o veículo do futuro. Como às vezes imagino, o veículo ideal e futurista será o tele transporte; em cabines dentro de casa, através do acionamento de um botão, você viajará (fisicamente) para onde quiser instantaneamente; como na série antiga Star Trek. Viajei...
Claro que não precisa tanto, e pensar tão longe. Mas se as cidades brasileiras chegarem a ter meios de transportes de massa com a cultura europeia, ai sim podemos voltar a pensar em bicicletas, e como outro meio de ver melhor a paisagem da cidade.
Eu odeio as modinhas.
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro de 2013.
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