Abandono nas obras da transposição do rio São Francisco |
Recordei-me agora da revista semanária Seleções Redear's Digest. Elas foram as minhas primeiras leituras já na pré-adolescência. Não lembro de publicação tão antiga e que ainda mantém o mesma estampa: tamanho, seções, capa, etc. Segundo minhas consultas, desde 1922. Lá se vão quase 100 anos nos jornaleiros do mundo todo.
Faz algum tempo estava na casa de um amigo que tinha muitas delas, era um colecionador assinante; havia edições antes mesmo de eu nascer. Coisa assim do final da década de 1950. Curiosamente, passei uma tarde folheando, vendo principalmente os anúncios de xarope e eletrodomésticos.
Ah, os eletrodomésticos, fez-me lembrar de uma matéria que mostrava como seriam os eletrodomésticos do futuro. Claro, dei muita risada como as pessoas daquela época viam o nosso futuro (presente). O que me chamou atenção, veio à mente agora, foi o aspirador de pó que você coletava o pó numa tubulação na parede. E isso já existe, porque que já vi.
Mas o que fez-me aqui folhear a famosa revista foi mesmo uma piada. Havia — creio que ainda há — uma seção que se chamava "piadas de caserna". Eram piadas inteligentes, que eu sempre lia e decorava para contar ali na esquina. Mas uma ficou marcada, pois, o fato, tinha lá sua graça, nos levava a refletir. Piada inteligente.
Um velho médico oncologista se aposenta e seu filho, seguindo o mesmo ramo, herda seu consultório. Já nos primeiros dias de trabalho (ou meses), o novo médico chega em casa todo contente; e o pai quer saber de toda sua euforia. Foi quando ele diz: "Lembra daquela senhora gorda sua paciente, que tinha um câncer que parecia incurável, sofria há anos com aquilo? O pai: "Sim, eu sei qual é. Ela morreu?" O filho: "Não pai! Eu a curei. Ela está sem nenhum câncer". Onde o pai arremata: "Você fez bem meu filho, mas fique agradecido a ela. Seu tratamento foi o que pagou a sua faculdade...".
Volto ao terreno baldio de Nelson Rodrigues. Lá onde as verdades, ao espio da cabra vadia, eram arrancadas a ferro quente, como numa sessão de tortura, ao velho estilo dos chamados anos de chumbo. A figura e a síndrome d. Hélder se espalhou também no Brasil, agora "livre e democrático". Ela não vai acabar, enquanto houver pobreza e o discurso de mundo melhor. A sanha política só aumentou; e pouco ou quase nada se avançou na luta pela diminuição da pobreza e a seca nordestina. Há disfarces, truques, discursos, maquiagens aos quilos; e agora com assistencialismo embutido. Ninguém quer curar doença nenhuma.
Não é de hoje que a pobreza tem sido usada como embuste, sustentação, canal (sem trocadilho) para o establisment político. Se discursam nas campanhas a mesma ladainha e depois de eleitos dão as costas à causa. Falar da seca no nordeste é catequese, mas pôr a mão na massa ninguém irá fazer, porque sujam e calejam as mãos, e não terá mais a árvore para colher os frutos de promessas futuras. É fato, se o povo brasileiro tivesse um desnível social menos íngreme, muitos dos políticos que aí estão não teriam mais tanto espaço para cargos eletivos.
A seca do nordeste é remota. As obras de transposição do rio São Francisco, que poderiam diminuir a carência, manter a produtividade e as condições humanas na região, são, ademais, peças publicitárias, vídeos ilustrativos (parecendo real) de uma obra de arte invejada pelo melhor painter. Como no velho chavão: "falta a vontade política para tantas carências". Político não gosta de solucionar os problemas da população, porque são esses problemas que o sustentam por anos em seus mandatos. A síndrome d. Hélder.
E d. Hélder Câmara? A esquerda sempre se curvou a ele, uma coisa meio assim disfarçada de "luta" pelos pobres, TdaL, discurso manso, que dá preguiça de falar... Nelson Rodrigues desmascarava e ria da cara de cada um dos revolucionários e padres de passeatas daquela época; desses contempladores do crepúsculo de maio de 1968 (nenhuma maria antonieta foi decapitada e nenhuma bastilha caiu). Dirão: "foi uma revolução cultural". De fato, nada trouxe de significativo para os nossos dias, senão a retórica, porque nada tinha para apresentar de novo. Não havia uma agenda de mundo.
Por um acaso, li com certo atraso, a entrevista que o filósofo inglês Roger Scruton concedeu à semanária Revista Veja, em setembro de 2011. Disse Scruton: "Eu acordei do meu delírio socialista durante os tumultos de maio de 1968, em Paris. No meio da destruição, das barricadas e das janelas quebradas, percebi que aqueles estudantes estavam intoxicados pelo simples desejo de destruir coisas e ideias, sem a mínima preocupação em colocar algo relevante no lugar. Foi difícil aceitar que meu futuro era me tornar um pária intelectual em meio à maioria esmagadora de esquerdistas." Em outro trecho, ele arremata: "É uma tradição esquerdista, que vem desde o século XIX e de Karl
Marx, em particular. Consiste em julgar toda forma de sucesso humano a
partir do fracasso dos outros. Com base nisso, engendrar um plano de
salvação para os mais fracos. Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos de esquerda continuam
a fazer sucesso. Eles sempre oferecem uma causa justificável e uma
vítima a ser resgatada. No século XIX, a esquerda pretendia salvar os
proletários. Nos anos 60, a juventude. Depois, vieram as mulheres e, por
último, os animais. Agora, eles pretendem resgatar o planeta, a maior
de todas as vítimas que encontraram para justificar seus atos."
Voltando aos problemas da seca e as intermináveis promessas. Em novembro de 2013, o jornalista blogueiro Augusto Nunes escreveu em seu blog: "Os habitantes do país real ainda não conseguem enxergar a olho nu um único e escasso canal semelhante ao que aparece no vídeo provando que o sertão já virou mar. (Um mar de primeira, permanentemente irrigado por águas cristalinas que serpenteiam por desertos de faroeste americano e percorrem túneis mais modernos que o trem-bala). O monumento à criatividade lulopetista deveria ser concluído em 2010. Ficou para 2012, depois para 2014 e agora não tem prazo para sair do mundo da ficção."
Nessa história secular, pode ser que surja um político seguidor (apóstolo) de d. Hélder que queira dar jeito em tudo; cure o câncer do sertão nordestino: da pobreza à seca. No instante, se orgulhará e baterá no próprio peito por seu feito; depois, mais tarde, perceberá que precisará de outras doenças sociais, controladas em UTI, para manter seu ganha-pão e aumentar seu patrimônio, à custa de um discurso, diga-se de passagem, verborrágico, vigarista e oportunista.
Na vida real, o sertão vai virar mar, só na letra da música de Sá e Guarabira. O sertão sempre será o sertão árido, seco, pobre e explorado. Tudo que pavimenta o caminho e sustenta a retórica política.
Na vida real, o sertão vai virar mar, só na letra da música de Sá e Guarabira. O sertão sempre será o sertão árido, seco, pobre e explorado. Tudo que pavimenta o caminho e sustenta a retórica política.
Termino ponderando. Os inocentes e bons, se tiverem alguma chance de alcançar um status político, irão atrás das curas para os males sociais. Os hipócritas e covardes (a grande maioria) continuarão sugando, acumulando eleições e protelando doenças, em detrimento de uma pregação e de uma razão cujo único fim é o seu bem-estar pessoal.
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro de 2014.
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