Nelson Rodrigues |
Nota: Trago ao Blog, mais uma vez, o grande cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Neste texto, muito intimista, ele nos comove com a revelação de um das passagens mais tristes da sua vida: a filha Daniela que nascera cega. Aliás, cegueira que ele temia mais que a morte. Com vocês Nelsaço!
Já contei
o pedido que me fizeram na igreja. Depois da missa, uma senhora veio me dar os
pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não
disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila.
E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava
na minha cabeça. Não escrever mais sobre velórios, nunca mais.
Mas o que
a senhora pedia era uma rigorosa impossibilidade. As nossas lembranças estão
debruçadas sobre velórios e sobre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: —
o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de
gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia
fabulosa.
Falarei
também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Esse Carnaval iria desfigurar a
cidade, o seu povo, influir em nossos costumes, sentimentos, ideias, valores.
Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre
minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho,
o oculista que examinara os seus olhos.
Ah, me
lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho
guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos
entrando em General Osório; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que
passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias
passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua
compaixão não confessa, apenas insinuada. Minha vontade foi fazer-lhe, à
queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.
Vou dizer
a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de
toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma
hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu
Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho.
Odiei o oculista que não acreditava em milagre.
Ele fora
à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por
bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase,
quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que
talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse
nada, nem ele mentiu.
Deixou-me
na porta da TV Rio. Eu estava tenso, mas calmo. Apertei-lhe a mão, agradeci a
carona. E foi só. Mas minha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na
cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são
clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao
mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.
Eles
diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais.
Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E
fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à
massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes
mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo,
menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra:
— já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada
serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve
um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te
disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”.
No dia
seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era
amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D.Lidinha o chamara. Nos braços da mãe,
Daniela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina
chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar. Disse a sua
verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”.
Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter
uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando
se despediu, me precipitei: — “Voucom o senhor”.
Ainda no
elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo
que o senhor disse é fato? Pode falar,doutor, não me esconda nada”. E repeti: —
“Quero a verdade e nada mais”. Foitaxativo: — “É isso mesmo. Eu
acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria
mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se
Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de
luz.
Hoje,
minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos. São de um
azul doce, triste e diáfano. Ainda não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os
oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de
telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que,por um momento, fui colhido
por um surto de ódio tremendo.
Aqui,
deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma
palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo
como aquele menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete,
os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na espanhola.
Ora, a
gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de
repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda
foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a
peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo
insuportável para os outros defuntos.
Era em
1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a
respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes,
inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus
dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão
total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa,
suas varandas pendem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o grande
mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão
ofendido.
Não, não.
Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira
Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo:
— durante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão.
(Rodrigues, Nelson, 1912-1980. A menina sem estrela)
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