Contardo Galligaris |
Desde
o fim do século 18 (pouco mais de 200 anos), nossa cultura idealiza a
infância. Pretendemos que seja uma época especial e maravilhosa da vida,
ou seja, queremos que as crianças mostrem para a gente que elas estão
"felizes", despreocupadas, lépidas e faceiras.
As crianças, até então, eram que nem adultos –só que, infelizmente, ainda pequenos e incompletos. Seu maior, se não único, dever não era se divertir, mas crescer quanto mais rápido possível.
Graças a essa mudança cultural, as crianças ganharam cuidados e proteção (por exemplo, elas não puderam mais trabalhar como os aprendizes da era pré-moderna), mas também perderam autonomia e, literalmente, elas se infantilizaram: tornaram-se entediantes, para nós e para elas mesmas.
Nas últimas décadas do século passado, a idealização da infância se tornou mais forte e mais perniciosa do que nunca. Sobretudo a partir dos anos 70, os adultos parecem invejar e imitar as crianças, enquanto as crianças, em vez de sentirem-se encorajadas a crescer, sentem-se instigadas a permanecer para sempre como caricaturas de si mesmas. O que aconteceu?
Só encontro uma explicação razoável: no fim do século passado, em muitos países do mundo ocidental, tornou-se possível e relativamente fácil se divorciar.
Hoje, nos EUA, calcula-se que 50% dos casamentos terminem em divórcio (41% dos primeiros casamentos, e 60% dos segundos). Desses 50% de casais divorciados, 40% têm filhos.
Consequência, a partir dos anos 70, surgiu um tipo de afeto inédito até então: a competição dos pais divorciados pelo amor dos filhos. Fazer a "felicidade" dos filhos, além de ser o "dever" cultural de todos, passou a ser também o jeito para ser "preferido" ao outro cônjuge.
De repente, um dos pais manda os filhos escovar os dentes e passar fio dental, enquanto, na casa do outro, eles comem chocolate antes de dormir. Um dos pais verifica que os filhos tenham feito o dever de casa; o outro os leva de férias no meio do ano escolar porque quer ver os filhos se divertirem.
Enfim, incapazes de manter um projeto comum de educação, rivalizando pelo amor dos filhos, muitos pais divorciados só tentam seduzir os rebentos. Sua mãe cuida de sua alimentação? Vem para cá, que a gente come só porcaria, o dia inteiro. Sua mãe verifica que você leia? Vem para cá, que a gente só passeia no shopping.
A criança que deveria ser educada foi substituída pela criança que deve ser seduzida –à força de promessas, concessões, permissivismo e, em última instância, pela desistência educativa dos pais.
Aparentemente, essa nova figura, a da criança que precisa ser seduzida, ganhou a preferência dos pais, divorciados ou não. Terminou o tempo em que a criança se esforçava para ganhar a apreciação dos adultos, e começou o tempo em que os adultos se esforçam para ganhar o amor das crianças. Sumiu assim o incentivo para a criança crescer, enquanto "voltar a ser criança" parece ser o grande desejo dos adultos de férias.
Nasceu assim um novo tipo de abuso, muito mais grave do que a palmatória do passado: um abuso psíquico, no qual o que os adultos oferecem como perspectiva para a vida de uma criança é a própria infância.
Respondendo a alguns leitores, sobre a coluna da semana passada, que tratava da maioridade penal:
1) Acredito, sim, que as crianças deveriam ganhar de volta sua responsabilidade penal. Não é preciso estipular a partir de que idade: cada caso é um caso. Um júri ou um juiz podem decidir quem é imputável e quando.
Um leitor, Luciano Godoi, me mandou uma notícia recente: a Polícia Militar de Cascavel, Paraná, apreendeu dois adolescentes suspeitos de tentarem assassinar os seus pais. Os irmãos, de 14 e 17 anos, acrescentavam o veneno à comida dos pais; parece que eles queriam mais liberdade para sair e achavam que, uma vez órfãos, morando com os avós, eles a teriam. Minha posição seria: que um juiz ou um júri decidam se o menino de 17 e a menina de 14 devem ser julgados como adultos ou não.
2) A ideia de que a redução da maioridade penal seja um instrumento de dominação de classe é um estranho disparate. Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza? Parece coisa de romance ruim do século 19, em que a miséria acarretaria degenerescência moral.
As catástrofes morais não têm a ver com a pobreza; elas têm a ver com os ideais que nós mesmos promovemos, como o da infância, se não da infantilidade.
CONTARDO CALLIGARIS - Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
As crianças, até então, eram que nem adultos –só que, infelizmente, ainda pequenos e incompletos. Seu maior, se não único, dever não era se divertir, mas crescer quanto mais rápido possível.
Graças a essa mudança cultural, as crianças ganharam cuidados e proteção (por exemplo, elas não puderam mais trabalhar como os aprendizes da era pré-moderna), mas também perderam autonomia e, literalmente, elas se infantilizaram: tornaram-se entediantes, para nós e para elas mesmas.
Nas últimas décadas do século passado, a idealização da infância se tornou mais forte e mais perniciosa do que nunca. Sobretudo a partir dos anos 70, os adultos parecem invejar e imitar as crianças, enquanto as crianças, em vez de sentirem-se encorajadas a crescer, sentem-se instigadas a permanecer para sempre como caricaturas de si mesmas. O que aconteceu?
Só encontro uma explicação razoável: no fim do século passado, em muitos países do mundo ocidental, tornou-se possível e relativamente fácil se divorciar.
Hoje, nos EUA, calcula-se que 50% dos casamentos terminem em divórcio (41% dos primeiros casamentos, e 60% dos segundos). Desses 50% de casais divorciados, 40% têm filhos.
Consequência, a partir dos anos 70, surgiu um tipo de afeto inédito até então: a competição dos pais divorciados pelo amor dos filhos. Fazer a "felicidade" dos filhos, além de ser o "dever" cultural de todos, passou a ser também o jeito para ser "preferido" ao outro cônjuge.
De repente, um dos pais manda os filhos escovar os dentes e passar fio dental, enquanto, na casa do outro, eles comem chocolate antes de dormir. Um dos pais verifica que os filhos tenham feito o dever de casa; o outro os leva de férias no meio do ano escolar porque quer ver os filhos se divertirem.
Enfim, incapazes de manter um projeto comum de educação, rivalizando pelo amor dos filhos, muitos pais divorciados só tentam seduzir os rebentos. Sua mãe cuida de sua alimentação? Vem para cá, que a gente come só porcaria, o dia inteiro. Sua mãe verifica que você leia? Vem para cá, que a gente só passeia no shopping.
A criança que deveria ser educada foi substituída pela criança que deve ser seduzida –à força de promessas, concessões, permissivismo e, em última instância, pela desistência educativa dos pais.
Aparentemente, essa nova figura, a da criança que precisa ser seduzida, ganhou a preferência dos pais, divorciados ou não. Terminou o tempo em que a criança se esforçava para ganhar a apreciação dos adultos, e começou o tempo em que os adultos se esforçam para ganhar o amor das crianças. Sumiu assim o incentivo para a criança crescer, enquanto "voltar a ser criança" parece ser o grande desejo dos adultos de férias.
Nasceu assim um novo tipo de abuso, muito mais grave do que a palmatória do passado: um abuso psíquico, no qual o que os adultos oferecem como perspectiva para a vida de uma criança é a própria infância.
Respondendo a alguns leitores, sobre a coluna da semana passada, que tratava da maioridade penal:
1) Acredito, sim, que as crianças deveriam ganhar de volta sua responsabilidade penal. Não é preciso estipular a partir de que idade: cada caso é um caso. Um júri ou um juiz podem decidir quem é imputável e quando.
Um leitor, Luciano Godoi, me mandou uma notícia recente: a Polícia Militar de Cascavel, Paraná, apreendeu dois adolescentes suspeitos de tentarem assassinar os seus pais. Os irmãos, de 14 e 17 anos, acrescentavam o veneno à comida dos pais; parece que eles queriam mais liberdade para sair e achavam que, uma vez órfãos, morando com os avós, eles a teriam. Minha posição seria: que um juiz ou um júri decidam se o menino de 17 e a menina de 14 devem ser julgados como adultos ou não.
2) A ideia de que a redução da maioridade penal seja um instrumento de dominação de classe é um estranho disparate. Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza? Parece coisa de romance ruim do século 19, em que a miséria acarretaria degenerescência moral.
As catástrofes morais não têm a ver com a pobreza; elas têm a ver com os ideais que nós mesmos promovemos, como o da infância, se não da infantilidade.
CONTARDO CALLIGARIS - Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
(Texto original Jornal Folha de São Paulo — 23/Abril/2015)
Postado por Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015
Postado por Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015
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