Cena do filme "Sociedade dos Poetas Mortos" |
Ainda é verão. Estou na rua, numa das minhas curtas viagens de casa ao trabalho (não dá para ouvir uma música inteira). Às vezes troco o caminho para não fazer coisas repetidas e não lembrar mais tarde como as fiz. A rotina me persegue, com o tempo crispando minha face e esbranquiçando os cabelos. O sinal abre e me lembrei de que Nelson Rodrigues ia escrevendo suas crônicas (na cabeça), observando a vida (como ela é) nesses trajetos: indo e vindo da redação do jornal, pela zona sul do Rio de Janeiro. Sempre de táxi ou de ônibus.
Minha paciência anda se exaurindo, dependendo que o
ar-refrigerado do automóvel esteja no máximo. Agora odeio o calor, o sol no
rosto, a pele vermelha, o engarrafamento, a praia cheia... Não saio de casa sem
o protetor solar no rosto. Desde que li sobre casos de câncer de pele e minha dermatologista disse que tudo pode
manchar a pele, até a luz ambiente, tomei hábito e aplico duas vezes ao dia,
evitando a exposição. De súbito, veio aquele vídeo que figurou muito
tempo na internet: "sunscreen", deixe a vida acontecer e faça tudo que
lhe der na telha, só não esqueça o protetor solar... Queria poder não ter
preocupação nenhuma; uma vida sem cuidados, sem remédios, sem estresse; deixando-me cair sobre ela, como já fui um dia menos encucado.
A idade é inimiga do corpo,
descarregando nos ombros um cansaço diário. Com um frenesi em compasso. Ando rabugento e de saco cheio
com a política, o Brasil, a idiotice útil, a sacanagem e o escambau. Não me
lembro de tanta coisa que me irritava nos meus 20 anos. Antes eu gostava de
quase tudo. Até a cotidiana falta de dinheiro não me tirava do sério. A
juventude nos reserva algo melhor que o dinheiro. A juventude é fonte vertente de paixão, de riso e inocência varonil.
Tomava ônibus lotado, flertava com as meninas que entravam na condução, já de olho nos pontos de onde elas brotavam. O cobrador batendo no mastro com uma moeda: — feche a porta, motorista! Torcia pelos fins de semana ensolarados, com a piscina do clube cheia de gente feliz; depois aquele nariz avermelhado à noite na minha balada domingueira. Era chique o bronzeado marcando presença em todos os lugares, pelo menos na nossa cabeça.
E aqui faço um parêntese. Onde eu morava, nosso domingo só terminava quando, na discoteca, o DJ punha para tocar uma música do Balão Mágico, com a luz já se ascendendo. Se durante a música lenta nada "rendia", e se aquela menina não havia me dado bola (quase sempre), a investida ficava para o próximo domingo. Como nem sempre eu tinha dinheiro para entrar, era grande a chance de ficar chupando dedo do lado de fora, esperando ela sair, pelo menos para olhar. Fui e continuo sendo tímido. E os tímidos temem o ridículo do "não".
Não consegui me apegar ao cigarro e outras drogas. Meu alucinógeno naqueles idos era a música. Comprar discos, ouvir e tocar no violão, seguindo os acordes pelo VIGU — o ópio. (Até encontrar meus amigos da esquina, eu me apresentava solitário entre quatro paredes). Hoje, não ir ao jornaleiro comprar a revista do mês, me parece inglório. A internet encurtou o caminho, deixando o prazer de lado. Está tudo lá no CifraClub; o VIGU foi parar na internet! Tantas facilidades tiram o prazer de viver; de construir sonhos, como aquele de abrir um único pacote de figurinha esperando aquela carimbada.
Tomava ônibus lotado, flertava com as meninas que entravam na condução, já de olho nos pontos de onde elas brotavam. O cobrador batendo no mastro com uma moeda: — feche a porta, motorista! Torcia pelos fins de semana ensolarados, com a piscina do clube cheia de gente feliz; depois aquele nariz avermelhado à noite na minha balada domingueira. Era chique o bronzeado marcando presença em todos os lugares, pelo menos na nossa cabeça.
E aqui faço um parêntese. Onde eu morava, nosso domingo só terminava quando, na discoteca, o DJ punha para tocar uma música do Balão Mágico, com a luz já se ascendendo. Se durante a música lenta nada "rendia", e se aquela menina não havia me dado bola (quase sempre), a investida ficava para o próximo domingo. Como nem sempre eu tinha dinheiro para entrar, era grande a chance de ficar chupando dedo do lado de fora, esperando ela sair, pelo menos para olhar. Fui e continuo sendo tímido. E os tímidos temem o ridículo do "não".
Não consegui me apegar ao cigarro e outras drogas. Meu alucinógeno naqueles idos era a música. Comprar discos, ouvir e tocar no violão, seguindo os acordes pelo VIGU — o ópio. (Até encontrar meus amigos da esquina, eu me apresentava solitário entre quatro paredes). Hoje, não ir ao jornaleiro comprar a revista do mês, me parece inglório. A internet encurtou o caminho, deixando o prazer de lado. Está tudo lá no CifraClub; o VIGU foi parar na internet! Tantas facilidades tiram o prazer de viver; de construir sonhos, como aquele de abrir um único pacote de figurinha esperando aquela carimbada.
E falando em música, saltaram da lembrança meus amigos da
esquina. Lá rolava o violão, o vinho em litro rodando de boca em boca. Era candura com
gosto apurado. Não pelo vinho (rascante), mas pelo som que saía das cordas.
Falávamos da Copa de 1982 e o lamento pela desclassificação; também comentávamos sobre as
musas da TV e aquela que morava do outro lado da rua. "Fama" era o
musical do momento nos cinemas. Também nos cinemas, a risada canhestra de Tom Hulce na pele de Mozart, em "Amadeus", era impagável, ria-se junto. O show do Central Park da volta de Simon e
Garfunkel. A missa das dez no domingo, jogos de pelada na pracinha e nos fins
de tarde o truco. Minha linda juventude passou em gotas; 74 quilos de um corpo
leve e alma flutuante. Onde a infância, a adolescência se juntavam com o homem feito, como num encontro de águas. Ninguém fez mais músicas e nem se viu passagens tão lindas
como naquele rio doce.
Em 1979 vi meu primeiro festival de música pela TV. Foi na
extinta TV Tupi Canal 4. Naquela época já havia lido muito sobre os festivais
da Record, mas aquele era meu primeiro que iria ver torcer e vibrar. Minha
favorita foi "Bandolins" de Oswaldo Montenegro, e me surpreendi
quando o vencedor foi Fagner com "Quem me levará sou eu". Muitas
canções ainda tocam na minha cabeça. Depois os festivais voltaram a despontar na
Globo nos anos seguintes. Era uma fórmula que parecia não se esgotar. Não havia
mais aqueles famosos dos anos de 1960, mas muita gente boa estava ali surgindo.
Como tudo que é bom nos assombra, ali pelos meus 18 anos
comecei a ter medo da vida e da morte, acho que tive uma depressão, sem
saber o que se passava. Perdi um amigo ainda moço, ele tinha um pouco mais
idade que eu. Jogava bola, empinava pipa, rodava pião, ria, contava piadas. Ele morreu de
trombose cerebral antes de completar os 20 anos. Aquilo me jogou no chão. Retraí e voltei para a concha: ter 20 anos não era nada, porque a morte sempre caminhava junto da vida. Quando vejo o mundo hoje se transformando, com tanta tecnologia, fico
imaginando meu amigo despertando do seu sono de morte e vendo tudo mudado. O
mundo que ele deixou já não é mais o mesmo.
Meu refúgio é o quarto da minha alma, e a tela do monitor
brilhando na penumbra. A vida passando e eu aqui querendo rever
outrora, luzes de um arrebol; e saber onde rompeu o fio condutor; onde foi parar a paz de viver, a inocência, a paciência. Meu filme rodando no
DVD é "De volta para o futuro", numa mágica viagem num DeLorean pelo
tempo e espaço. Tiro o álbum da estante e revejo fotos amarelas de um mundo já vivido. Sinais que tudo envelheceu, menos minha memória. Músicas tocam ao fundo, em
viagens a minha esquina das amizades perdidas.
A pior coisa que pode acontecer com a idade é a perda da
inocência da vida. (E olha que demorei muito para perder a minha. Maldita
maturidade!). A inocência é a primeira virtude do homem: sonhador, viajante,
imaginário, lunático, utópico, pueril. Confiar que só há bondade nas pessoas e temer a
Deus nos mínimos pecados. Por onde me deixei guiar? Em que baú eu deixei os meus brinquedos? Teria sido melhor não ter crescido, tornado velho, visto purgatório e infernos; teria sido melhor não ter olhado o buraco da fechadura do futuro; teria sido melhor não ter conhecido a verdade, a maldade, a
hipocrisia e tomado lanhadas nos ombros. Seria melhor ter permanecido nas nuvens, no ilusório, na
fantasia, singelo, resignado e puro. Acreditando que o amor por aquela menina do
colégio era mesmo infinito, como eu pensava.
Faz alguns dias, enviei uma velha canção pelo
WhatApp. Depois de ouvir, uma amiga respondeu com saudade e quis lembrar que,
apesar da distância, nossa amizade já durava 25 anos. Disse ela: "estamos
comemorando bodas de prata de amizade...". Fiquei feliz com a menção: bodas
de amor, porque amizade também é um jeito de amar. Nos conhecemos tomando o
mesmo ônibus, no mesmo bairro — ela lembrou. Verdade, naquele tempo em que o sol acaricia minha pele; tempo de paz interior, ternura, juventude e amor como
canções espalhadas no ar. Quando ela também brotou num ponto qualquer de um avenida, do meu caminho.
© Antônio de
Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Março de 2015.
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