BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Escort XR-3

No carnaval de 2016 — já faz um ano —, saí por aí guiando meu carro sem destino. Talvez à procura de um restaurante que não me lembrasse folia e pudesse servir um prato rápido. As ruas, como em todos os carnavais da minha vida, estavam fúnebres, desertas, de asfalto quente como um Saara. Mas algo à minha frente me chamou atenção: um Escort XR-3 fumegando.

Aquela imagem ficou, como leite entornado no fogão: um Escort XR-3 pedindo arrego. Imaginei que chegaria em casa, sentaria à frente do computador, para escrever algo sobre aquela cena. Nada. Não vi uma palavra pingar nas teclas, mas a imagem estava lá, como a fumaça entrado pelo para-brisa. Agora, me recordei novamente daquele dia. Acho que era domingo.

Na minha juventude, quando ainda brincava o carnaval — naquele tempo se dizia "brincar" —, eram cinzas mesmo esses dias; cinzas de minha solidão. O carnaval é completa solidão que finda numa quarta-feira melancólica, de joelhos. Do meu porre, da mulher que não deu certo, da dor de cabeça, da boca amarga de tanta ressaca. Hoje, cai como um alívio esses dias; como se, sobre as asas, avistasse um céu azul no horizonte, depois da turbulência.

Não foram tantos, mas alguns carnavais. O confete entrando pelas narinas, o pisão no pé, uma paquera, um olhar, uma serpentina e uma dama. Mas houve aquele que fiquei atrás de uma "fadinha" as quatro noites, esperando que ela fosse me abraçar ao som de "Bandeira Branca". Nada. Nem um sorriso de canto de boca para esboçar. Completamente ignorado. Quando somos jovens, não somos nada. Talvez, um espermatozoide cabeçudo que balbucia e baba. Mais nada. Somos só uns bocós que vivem a imitar o que ouve por aí e os gestos que outros fazem. Eu era completamente um idiota.

E por falar em carnaval — já fazendo um parênteses —, não poderia passar essa crônica sem lembrar dessa sombra negra que paira sobre o século 21: o politicamente correto. Deparo, agora, com a manchete do "Estadão" dizendo que as músicas "Cabeleira do Zezé", "O teu cabelo não nega" e "Maria Sapatão" foram abolidas de alguns blocos de Carnaval no Rio de Janeiro. Entende, por que prefiro a solidão? Por que não me importaria se um meteoro se chocasse contra a Terra? Alguém ainda vai se matar disso e a família vai testemunhar: "foi o politicamente correto. Eu sei, ele tomou veneno por isso."

Voltando. Mas o que me desperta, hoje, nos carnavais, agora mais longe dos salões, é essa minha vontade de estar ausente, a não necessidade de ser alguém na multidão. Sou capaz, hoje, de suportar a deliciosa tortura de quatro noites em completo pensamento. Como se me retirasse para uma cabana nas montanhas. Os filmes, os livros, as crônicas, o café fresco, eis o meu deleite. Anonimamente, ainda me disfarço no sobe-desce do elevador. Mais nada.

A idade me trouxe isso: a minha mais fiel companhia. Dela eu não me desgrudo e não traio. Porque, por muitas vezes, e muitos lugares, o que tem me incomodado ultimamente é a burrice. A mais acachapante burrice. Aquela que ninguém se envergonha de espalhar por aí. Evito os lugares por causa da burrice pujante. Parece que em todo churrasco, festa, carnaval quem vem primeiro é o ser idiota. O primeiro a ser convidado é o que ri à toa. Aquele que é feliz "porque sim". (A felicidade, como a tristeza, não se admite brotar do nada, no oco. Só os tolos são felizes, já disse eu mesmo.)

Já estou no sétimo ano deste Blog. (Um pouco lento, diga-se, mas respirando.) Tento fazê-lo não morrer. Sempre sobra uma única palavra, um "adeus" para dizer na última hora. Eis-me sempre aqui, enquanto a TV está ligada para ninguém, sem ninguém ver. (Mas eu prefiro a música de companhia. Música e letra.). As palavras regurgitam, quando dá ânsia, contra a vontade da alma. Preciso que elas saem para olhar de cima, depois de anos, e dizer: "eu escrevi isso?"

Mas o que queria dizer: nunca sofri tantas mudanças como nesses últimos anos da minha vida. Precisamente, nos últimos dez (2006 a 2016). A transição dos 50 anos? Talvez. Ah!, a maturidade, como esperei chegar... Meti de cabeça, joguei-me, fiz escolhas erradas, me arrependi do que fiz e depois me arrependi de ter arrependido. Fui escravo do amor, da mulher por quem chorei uma fronha, duas. Depois resignei, enxuguei, afastei e superei. O amor também tem dessas coisas: saber partir de cabeça erguida e aprender.

Algumas coisas deixei aqui, nas escritas, e não quero apagar. Sei que muitas coisas que escrevi, há seis, sete anos, já mudei de opinião — ainda bem! —, mas as deixo registrada, para balizar o dia a dia, decifrar códigos, e me dizer para onde estou indo. Tento evoluir, tirar conclusões de tudo e ir depurando no tempero da vida, nadando contra a maré, encarando a verdade. No pensamento político, nem se fala. Saí do ser idiota que me possuía como um demônio sem inferno.

Se for olhar para trás, verá aqui muitas crônicas que, talvez, não escrevesse hoje. Amadureci depois delas; elas me amadureceram mais. E se tornar velho tem disso: tornar-se calmo, paciente com as ideias e com o mundo que não muda da noite para o dia. Fiz mestrado em ser cínico e cordial. E não tem algo mais cínico que ser cordial. Digo "bom dia" ao imbecil, ao idiota, ao esquerdopata. O fato é, descobri nesses últimos anos que há muita gente patinando (sem patins) no ringue do mundo, da sua clara ignorância. Caindo no seu próprio excremento.

Fui pesquisar um nome (hoje é mais fácil encontrar alguém, mesmo na insignificância), porque lembrei de uma história dos meus 12 anos. A alcunha é Rolf Victor Heur. Ninguém saberá de onde vem, se eu não contar a história. Em 1974, quando as labaredas consumiam o edifício Joelma, em São Paulo, as 1500 pessoas que trabalham no resgate  faziam o que podiam. Houve suicídios? Houve. O desespero levou muitas pessoas se atirarem do prédio em chamas. Aí entra a figura de um dos sobreviventes: Rolf.

Está aí um homem a se mirar. Ele, aos 54 anos, ficou 3 horas na marquise, esperando por socorro na maior calma, fumando. Na época, a reportagem da TV disse que ele se posicionou numa janela contra o vento; as línguas de fogo não chegaram nem lamber seu dorso. Depois que o resgate chegou, ele ainda se manteve calmo e só chorou quando já estava em solo.

A vida com maturidade é isso. Você na marquise de um edifício em chamas, contra o vento, fumando um cigarro tranquilamente; olhando os transeuntes, loucos, atônitos e com menor risco que você. Não se matar, não se drogar, não se jogar, mas esperar calmamente pelo resgate. Esperar a hora pela salvação das almas. Mesmo que suas mãos tremam, não pule. Contra o vento, contra o mundo, sem esperar por plateia e aplausos.
 
O primeiro Escort XR-3 começou a circular no país ali pelo ano de 1985. Já são 32 anos. Como disse no início, vi um modelo na minha frente queimando óleo, e agora entendi aquilo tudo. Sou eu, vagarosamente, rangendo e fumegando por aí também. Resignei: um dia, será o fim de todos nós. Se ele pudesse dizer algo, talvez dissesse: "Já fui jovem, desejado e desfilei nos melhores salões de automóveis. Hoje eu tenho só experiência e a solidão das ruas vazias de carnavais". — Lá vai alguém de respeito — dirá um transeunte como eu.

Um dos médicos que frequento me disse que o corpo humano é como um carro usado, velho. Com o tempo as peças vão dando sinais de desgastes, que precisam ser trocadas. E completou, dizendo das chamadas doenças terminadas em "ite", como: dermatite, esofagite, gastrite, tendinite, pancreatite, etc. Na verdade, não são doenças, mas um sinal que você está envelhecendo, fumegando.

Mas isso (estar fumegando) não me incomoda tanto. Vamos nos acostumando com a ideia do envelhecimento. Escrevi certa ocasião: "Envelhecer é ir deixando o corpo para trás com toda sua juventude para tornar-se somente alma". Os carnavais não me assanham mais, nem as fadinhas soltas no salão. Sinto saudade, sim, dos passarinhos na janela, no pé de laranja no pequeno quintal; do meu quarto sem forro, onde eu e meus irmãos nos amontoávamos — a pobreza é saudade triste. Quando acordava no inverno, nas férias, eu pulava o muro para me esquentar numa fogueira que minha tia ateava no fundo do quintal. Naquela época, eu ouvia pardais e galos cantando. Eu ouvia estrelas.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Fevereiro de 2017

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