Nota: Esta é uma crônica de uma noite de verão para quem tem 50 anos, ou mais, é de São José dos Campos ou morou na cidade nos idos da década de 1980. Só vai entender quem viveu.
Era para ser uma sexta-feira qualquer, mas
aquele dia não podia ser em vão, porque também era meu aniversário. Prontamente,
escolhi botar minha melhor beca: camisa hang ten, calça fiorucci e perfume madeirado do Boticário. Cheguei ao
banco já mirando os ponteiros do mondaine, já com preguiça de dizer "bom dia": — Chega logo fim do
dia! Chega logo, porra! Que hoje eu quero ficar numa nice e tomar todas. Passa,
passa...
O dia voou
mesmo e meu caixa bateu. Quando registrei o ponto, às seis cravada, já sentia na saliva o regozijo
etílico daquela noite. O bar mais próximo era o AMARELINHO, e para lá eu
disparei. De supetão, já trombei com dois amigos de colegial num happy-hour, e
ali formamos uma patota. Depois de algumas risadas com rodadas de chope,
servidas pelo melhor garçom da casa, o corintiano, decidimos, por fim, iniciar
uma "via sacra" pelos bares, já que estávamos no embalo. A noite era uma promessa
e estava só começando; estava calor, céu estrelado, era meu aniversário, e eu me
sentindo o máximo. — Vamos arrebentar a boca do balão!
Antes, faço
um parêntese para descrever aqueles dois amigos de aventura. O magro era
Álvaro. Ele era o "magro", porque passava fácil por debaixo da porta.
O bodão (nunca lembro o nome de batismo) era um gaúcho de um metro e oitenta,
bom de briga e com cara de bode. Precisa mais explicação?
Começamos
pelo GIRASSOL, ali na rua do cartório. Estava já movimentado e um conjunto bom
tocando MPB e clássicos do rock. Como não havia lugar para sentar, ficamos em
pé na calçada e de copos secos. Cadê o garçom?
— E aí,
vamos nessa no MEZON? — Sugeriu bodão.
Para lá
escorregamos. Não havia tanta moçada, mas para não passar batido, tomamos
alguns rabos-de-galo, Campari, Martini e hi-fi. Glut! Glut! E de lá partimos
para o SOBRADO. Barzinho supimpa e com muita pitchula dando sopa. Umas
keep-coolers, depois uma cuba-libre, uma olhadinha aqui e ali (buscando uma piscada), uma conversa, um cigarro, um fósforo... Conclusão, aquele ambiente
estava troncho: todo mundo caçando (com olhares) e a caça não querendo se
servir — pelo menos para nós três. Pulamos para outra parada.
Em frente
ao parque, desopilamos no PARADA 800. Para quem curte um bar different space
e agitado, era ali. Drive-in, com extensão no estacionamento do parque, para um
malho mais longo e atrevido (passar a mão nos peitos). Bateu uma fome, farejei
aquela pizza napolitana do PEREQUIM no ar. Pensei: — Se comer agora, minha
noite já era... A maneira de engambelar a fome foi pedir um drink, acender um
cigarro e chupar um halls. Aquela altura já estava enxergando um mundo
colorido a minha volta (todo bêbado acha tudo lindo). A rua já estava sendo
tomada por patotas e boyzinhos com suas cinquentinhas e cocotas.
Já era
quase duas da matina e ainda faltavam algumas passagens: WESTERN HOUSE, POST-OFFICE,
FRANGÃO e CARLITOS. Tudo sem um Engov no bolso.
— Vamos
nessa, já que mulher está difícil. E beber, isso, sim, está fácil.
Não sei
dizer, com exatidão, onde fomos primeiro, como chegamos, o que se passou e o
que bebemos nessas derradeiras estações — há episódios, comprovados, que bêbado
esquece mesmo! Mas, lá pelas tantas e com a cabeça cheia, uma coisa eu
sustento: rachamos o bico de tudo que falávamos, víamos e imaginávamos.
Misóginos perdidos numa noite de verão.
Quando
completamos o prometido e todos os bares possíveis já estavam passados,
liquidados, visitados e ingeridos, resolvemos fechar a noite numa discoteca,
porque eu já estava dançando sozinho e sem música no meio da rua. O bodão
sugeriu:
— Quem topa
a GARDEN!
O magro
interferiu:
— Não, não.
Eu prefiro a CIRCUS. Hic!
Já no lucro da
noite, qualquer bodega era esperta e toda baranga já passava por Brooke
Shields. Por fim, decidimos que não iríamos a nenhuma delas, escolhemos a
NUMBER TWO, ali perto da caixa d´água. Desfilava mais brotinho.
— E se não
der picas? — Perguntei.
— Vamos
nessa pro "desmanche", LA CAV ou PILÃO. Arrastamos umas veinhas lá,
numa nice —
Interrompeu, rachando o bico, o magro.
Gargalhamos
juntos e muito fácil, porque bêbado ri à toa e de qualquer coisa tosca e
idiota.
Batemos à
porta com a discoteca lotada e muito brotinho, como previsto. — Tá crowd! Eu já
não conseguia sentir língua e paladar; depois, enxergar, a longa distância, era
quase impossível. Dançar, naquela condição, seria um vexame. Meu mundo já girava em
torno de mim sem eu me movimentar: round, round round... O jeito foi
beber mais. Depois de pedir meu último whisky no balcão, vi chegar do meu lado
a mulher da minha vida. Morena, alta, linda, monumento, escultural... Eram tantos predicados. Onde eu
andei esses anos todos que não topei esse brotinho por aí? — Me perguntei com a
mão no peito. Mamado e instigado, fui logo desembestando um xaveco no seu
ouvido:
— Qual o
nome do broto? Você vem sempre aqui? — Mexendo o gelo no copo.
Ela soltou
um risinho e assentiu:
— Hoje é a
primeira vez que venho aqui. Meu nome é Juliana.
Não hesitei:
— Você é
muito linda, mais que demais... (Ela talvez não conhecesse a música ainda).
— Obrigada.
Eu sou tímida. — Disse, olhando para o lado.
Aquela boca era imantada, sedutora, farta; ela era a Sônia Braga que Dancin`Days nenhuma já viu...
Uau! Foi quando o bodão me puxou num canto, me tirando daquele castelo,
e com aquele sotaque de Pelotas, gritou no meu ouvido:
— Tu não
percebeste não, guri?!
O que ele
(tão bêbado quando eu) percebeu que eu não? — Pensei comigo.
Eu, assombrado:
— Nada,
achei ela linda, só isso. Maior pitchulinha, pô!
Ele:
— Ela é
ele, cara!
Pendi a
cabeça para o lado, e depois de constatar o óbvio, que meus olhos não podiam
captar (ela não tinha seios), decidi que era hora de picar a mula. Arrastei-me até
à portaria, fiz um cheque garranchado e despenquei porta afora. Fui bordejando
até encontrar um carro que se parecesse com o meu. No trajeto, baixei na
sarjeta para regurgitar um pigarro amarelo escuro, praguejando aquele
travesti: — Perobo do caralho!
Quando avistei o carro, percebi que meu relógio havia sumido do pulso. Mas nem quis calcular o preju. Olhei para o carro e achei um pouco diferente, daquele que havia saído de casa. Mas, como
os quatro pneus estavam lá e calibrados, abri. Bati a chave na ignição,
funcionou, engatei e sai. Com a graça de Nosso Senhor, apontei na minha rua com
o dia já rompendo. Estacionei o carro em frente ao portão, já imaginando a
bronca do coroa. Aquela trilha sonora de galo cacarejando e cachorro latindo se
misturava com o som da discoteca, que ainda zunia em meus ouvidos. Que bode me
esperava? Oh meu Deus!
No pé de
pano, tirei a chave da porta do bolso e enfiei na fechadura. A chave não entrava.
Insisti uma, duas, três vezes mais. Afastei e olhei a fachada, depois
certifiquei o número para ver se não estava entrando em casa errada. Não
estava. O número conferia, embora duvidasse da cor um pouco desgastada. Foi
quando percebi alguém abrindo a porta pelo lado de dentro. Pensei: — Lá vem
esporro. Quase entalei, quando um senhor crispado e de pijama listrado, que não
era meu pai, abriu a porta. Ele me fitou com os olhos vermelhos de ira e
adiantou:
— Está
tentando invadir minha casa, senhor?
Pela
primeira vez nos meus vinte anos de idade, alguém me chamou de senhor. Objetei:
— Eu moro
nesta casa. É... pelo menos eu acho...
O velho
crispou novamente, com o dedo em riste:
— O senhor só
pode estar bêbado, porque eu moro aqui há mais de 20 anos!
Além da
dúvida "onde eu estava", me surtiu outra: "quem eu era".
Naquela situação não adiantava perguntar a ele, mas a mim mesmo: — Quem sou eu?
Alguém tem um espelho, por favor? E esse cachorro que não para de latir na
minha cabeça?! Distanciei, olhei novamente o número da casa, os apetrechos, os
adornos, o jardim, a rua... Pus a mão no queixo, mirei aquele homem, com cara
de sargento de milícia, e fiz a minha derradeira pergunta:
— O senhor
pode me dizer que horas são e que dia é hoje?
O velho, já
querendo fechar a porta para se livrar de mim, e sem olhar o pulso, refutou:
— Seu
bêbado maluco! SÃO QUASE 7 HORAS E HOJE É SÁBADO, DIA 10 DE JANEIRO DE
2015. Não sabe, não?
Arregalei
os olhos, dei dois passos para trás, mais dois, atravessei o portão e falei
comigo, bem baixinho:
— Acho que
viajei num DeLorean, ou bebi tanto que perdi a noção do tempo.
©
Antônio de Oliveira / arquiteto urbanista cronista / Maio de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário