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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A rebentação

Se procurarmos nos fóruns de discussão na rede de computadores, iremos encontrar várias interpretações para o mesmo assunto, onde para você (e para mim) só tem uma resposta, uma convicção e afirmação. Confrontaremos com inúmeras discordâncias e pontos de vistas, porque cada um enxergará sob seu viés. O que nos faz refletir mais.

Basta recorrer a uma análise simples de qualquer obra literária ou filme, verá que cada um tem algo diferente a dizer. Ou aquilo que mais lhe chamou atenção. Atentamos mais aos capítulos e passagens que nos aflige diretamente, porque o natural do subconsciente é registrar, tão somente, aquilo que nossa alma mais necessita se alimentar naquele instante. De uma forma bem simplista e clara.

Às vezes, os livros e filmes passam por nós e anos mais tarde, aquela cena ainda permanece tatuada em nossa memória. Uma hora irá desflorar, e iremos entender o porquê; e tudo se fechará, como uma peça que faltava naquele pensamento nebuloso e confuso.

No filme “Náufrago” de 2001 — mais uma grande obra desenhada por Tom Hanks — iremos nos deparar com várias mensagens. Cada um irá contar aquilo que mais lhe afetou.

A trama narra a história de um executivo de uma empresa de entregas — FedEx —, que era uma espécie de workaholic e pouca importância dava à família, às pessoas e ao convívio social. Sua vida era o trabalho e só. Depois da pane no avião onde viajava, ele se torna o único sobrevivente da queda e vai parar numa ilha, isolada num canto qualquer do planeta. O restante da tripulação morre e ele fica preso a esse mundo pequeno, desabitado e sem vida aparente. O que é vida afinal?

Ali desenvolve habilidades manuais e primitivas para sobreviver a sua diminuta e solitária vida. Suas necessidades agora se baseiam em habitar, se proteger das intempéries, se alimentar, e assim como um homem das cavernas, “descobrir” o fogo, atritando alguns gravetos.

O dilema de Chuck Noland, papel de Tom Hanks, vai além do fisiológico e do subsistente; ele queria sair daquela vida limitada e encontrar novamente sua civilização; o convívio das pessoas, a cidade barulhenta, o trabalho, a família, sua miséria cotidiana... Sobreviver já não era sua sorte. A solidão era cruel e uma companheira incômoda; o que fez de uma simples bola de voleibol seu alter ego, o amigo inseparável com quem conversava muitas vezes e por isso passou a chamá-la de “Sr. Wilson”. Uma forma de ouvir seu interior.

Mas qual é o ponto do filme?

Para mim, está condensado no desafio em construir uma embarcação que pudesse alcançar o alto-mar, a sua salvação. Malgrado, ali havia um busílis não calculado por ele; seu estorvo era a rebentação que quebrava alta e distante da praia; ultrapassar aquelas altas ondas, que sempre o devolvia ao ponto de partida, à praia da sua ilha deserta. Ele tentava e o mar o arremessava de volta. Aquela rebentação era a barreira que o mantinha preso na sua angústia, sua tragédia maior, no seu mundinho defectível e solitário; sair daquela melancolia que o aprisionava por 04 anos se tornava cada vez mais difícil.

Passados aqueles anos, experiente e conhecedor do ambiente que agora vivia, ele pensou: era preciso mais do que construir uma embarcação; era preciso estudar e entender os ventos, as marés, as estações do ano; e num momento único e derradeiro haveria uma chance de quebrar as ondas gigantes. Antes teria de construir uma embarcação segura, que pudesse levá-lo de volta à vida. Em mar aberto, os bons ventos o levariam para longe e assim ser alcançado por uma mão salvadora, em águas brandas. Lançando-se ao mar aberto, como uma vida longa e ampla, a possibilidade de encontrar a salvação era maior. Ele só tinha que vencer aquela rebentação.

Tudo que traçou deu certo, ele venceu as ondas. A vida já não era mais aquela miserável ilha. Ele estava pronto para ser resgatado, as correntes da prisão foram rompidas; e ele agora navegava em mar aberto e calmo, até ser resgatado por um navio cargueiro. E tudo nele se transforma a partir desse ponto, dessa passagem.

Numa situação análoga, a vida tem feito seres humanos presos em ilhas desertas que não conseguem vencer a rebentação, e sair para mar aberto; por medo, por covardia e em muitas vezes por ignorância vivem como eternos aprendizes de si. Aquele ser conforta-se que o mundo é uma ilha mesmo e aqueles que o quiserem, que venham até ele. Alguém se habilita?

Dentro dos trens de metrô onde viajei pela Europa, era esta ilha de gente que se via; em comunicação única e exclusivamente com seu iphone. Rindo solitariamente das fotos que compartilhavam ou das mensagens que abriam; sempre com ninguém presente, como um ser distante e ausente.

Numa conversa de botequim — aprecio e aprendo muito! — falávamos sobre uma mulher que, à luz dos 70 anos, vivia em sua ilha deserta e desabitada. Qualquer convívio fora do seu mundo revelava o seu lado amargo, sombrio, agressivo, infantil, histérico, com proclamo de vítima social e não aceita por ninguém — sem caráter social. Pensei: com a vida quase chegando ao fim e ela ainda não aprendeu? E não aprendeu mesmo.

É premissa, para viver em sociedade, ser cortês, ter paz de espírito, ter sensatez, bom humor, aceitar brincadeiras e muitas vezes não dizer o que pensa sobre tudo que vem à cabeça. O que não é o caso dessa senhora; criança mimada, que o “mundo não quer compreender”, e com ele não aprendeu com seus tropeços e quedas. Algum momento da vida a tornou assim? Creio que sim: uma fala, um gesto de alguém a fez viver na defensiva e ser intolerante aos outros, sem percepção de si. Com longínqua idade para aceitar a transformação, ela não consegue e já não quer mais construir sua embarcação; romper a rebentação que aprisiona em sua ilha egocêntrica. Mundo pequeno e cruel. Quem irá visitá-la na sua melancolia? Comentamos e apontamos, mas, por resignação, acabamos sentindo pena.

O mar da idade, quando se quer alcançar (mesmo aos 70 anos), é aberto e visto num horizonte de paz. Foi uma luta do barco com a rebentação; ou dos braços cansados nadando sobre revolta maré. Vencer as ondas! Almejar pelo mundo civilizado e social; esperar por mãos afáveis, navegar sereno na embarcação que o vento já conduz sem medo; por fim, encontrar terras habitadas por pessoas e não por iphones.

Mas quanto aos maremotos? Asseguro que minha embarcação é robusta para atravessar. Não haverá novo naufrágio, não retornarei à ilha deserta de mim — all by milself. Não comerei o pão que o diabo deixou amassado, porque simplesmente não quero mais tal condenação. A rebentação já passou, e o maior triunfo é encontrar um porto seguro para viver em terra firme e civilizada.

Cast away — o título em inglês de “Náufrago”. Tudo termina com o personagem parado num cruzamento de duas estradas, num lugar também deserto e incerto — sem setas. A escolha agora é do caminho, porque qualquer seja o escolhido, ele estará lá na sublimação, de corpo e agora também com a alma. Velas ao vento.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sou brasileiro, mas não tenho orgulho

Desculpe. Mas eu não faço parte do coro daqueles que vão a ginásios e estádios esportivos gritar “SOU BRASILEIRO COM MUITO ORGULHO”. Como posso ter orgulho de um país, cuja educação é uma das piores do mundo, em 88º lugar; onde a saúde, que deveria vir de graça a nós, pelos impostos altos que pagamos, obriga-nos pagar mais pelo particular, para ter um atendimento melhor. E achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Como posso ter orgulho de um país, onde os meios de transporte públicos estão sucateados e não funcionam, fazendo cada um de nós um refém do automóvel, que depois temos que pagá-lo em dolorosas prestações; e com anciãos e deficientes físicos amargando uma vida entre quatro paredes, porque as ruas, com suas calçadas esburacadas, não lhes permitem se locomover com segurança. Como posso ter orgulho de um país, onde há mendicância pelas cidades onde passamos, e não é de imigrantes tentando se estabelecer no país, mas de brasileiros mesmos, sem emprego, sem moradia e sem ter o que comer. Onde se criam leis de cotas raciais para pôr fim a tal “desigualdade social”, onde deveria, sim, era investir em educação básica para todos, sem distinção de cor de pele e credo religioso.  Como posso ter orgulho de um país, onde a lei que mais impera é a “Lei de Gerson”, porque brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. Certo? Errado, Sr. Gerson! Como posso ter orgulho de um país, onde o traficante de droga ostenta, empunha armas de grosso calibre e tem mais autoridade que o poder constituído pelo voto que demos nas urnas; onde as pessoas acham graça e votam pela alegria do palhaço que diz “pior não fica”. E achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Como posso ter orgulho de um país, onde as pessoas se emocionam e opinam sobre novelas, mas são incapazes de ler as páginas políticas de um jornal e se indignar com tudo. Como posso ter orgulho de um país, onde a maioria dos postulantes almeja um cargo político, porque no fundo, pretendem se enriquecer com a política, como muitos que já estão lá. Como posso ter orgulho de um país, onde as obras públicas são superfaturadas e dinheiros desviados para abastecer campanhas políticas; onde carros-fortes saem dos bancos com milhões de reais, também para abastecer esquemas de corrupção, como o mensalão; onde há desonestidade em todos os níveis sociais, desde o mais pobre ao mais rico. Como posso ter orgulho de um país, onde um partido político quer se estabelecer único e soberano em todas as esferas de poder, nem que pra isso tenha que mentir, enganar, roubar, extorquir, infringir, aniquilar e eliminar quem estiver pelo caminho. Pela simples razão de poder. Como posso ter orgulho deste país, de gente intelectualmente e culturalmente miserável. Como posso ter orgulho de um país, que empobrece seu povo a cada dia, sugando-lhe até última gota de seu sangue. Aceitamos e achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Agora, diga com sinceridade, você teria orgulho?
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Provou do próprio veneno


Outro dia, uma pessoa quis chamar-me atenção através de uma rede social. Tem isso agora, a exposição de nossos comentários e opiniões reserva às pessoas o direito — sem dar o direito — de invadirem o nosso espaço para tecer comentário, não sobre o assunto que se expõe, mas sobre nossa pessoa. Por uma simples observação.

Como já afirmei em outra crônica, a melhor descoberta da liberdade — e aqui se fala também da expressão — é dissociar ideias, pensamentos, informações e pessoas. Assim como, o sujeito do verbo. A coisa mais fácil é comentar a lógica. É o que procuro fazer. Hoje, faço isso e assim convivo com todos em todos os ambientes, até nos virtuais.

Mas o sujeito do comentário foi petulante e insistiu em querer me rotular, afirmando que, por eu não gostar do comportamento — não da arte — de alguns artistas, que, por suas atitudes têm pensamentos e ideologia esquerdista, eu seria então de direita. Oh my God!

Especificamente, eu dizia da atitude hipócrita de John Lennon (pessoa pública), que após a dissolução do grupo (faz-nos felizes até hoje), começou a erguer bandeiras pela paz e aparecer sem roupa à frente das câmeras de TV (sempre a exposição). Um indivíduo que vivia em guerras internas e individuais, lutando pela paz, parece-me um tanto desvio de personalidade. Isso se chama hoje de marketing pessoal. Outros também fazem o mesmo por aí, como Bono Vox, por quem não tenho nenhuma admiração, exceto por algumas de suas canções.

Cito um trecho de um livro que li sobre Lennon e de como ele viveu a tratar mal seus antigos parceiros, em especial Paul McCartney. Quando Paul foi visitá-lo em Nova Iorque, no Edifício Dakota (o mesmo onde foi assassinado), Lennon o tratou mal já pelo interfone e quase o mandou embora. Ou, o que você está fazendo aqui rapaz? São as guerras internas de um “pacifista”.

A diferença de Paul para John é que o primeiro sempre foi um líder nato. Nos ensaios era quem dava as cartadas e dizia como deveria ser os arranjos. Nas entrevistas, no palco, também era quem falava com o público. Depois da banda, continuou a fazer aquilo que sabia fazer melhor que é sua música, com qualidade. Ninguém, nas redes sociais, irá ver um cartaz com alguma citação de Paul, ele nunca foi de frases. Ele continua atuante aos 70 anos, porque continua a fazer canções como na década de 1960. Sua fala é sua música.

Vejo nesses seres, um tanto de desvio da formação de caráter. Ao mesmo tempo em que pedem a paz no coletivo, vivem guerreando no individual; brigando com o vizinho do andar de cima, ou jogando cadeiras de cima do quarto do hotel, porque excederam nas drogas. Quando vão dar entrevista às câmeras de TV ficam mansos e pedem a paz ao mundo. O lobo em pele de cordeiro é, na essência, um mau-caráter.

Algumas personalidades nacionais, por exemplo, não se deve tocar ou mal dizer. Logo você será tachado disso ou daquilo. Há o que chamo de santíssima trindade da música brasileira. Velhas e novas gerações aprenderam que não se pode comentar nada que desconstrua a biografia de Gil, Caetano e Chico. Por que, antes de tudo, eles enfrentaram bravamente a ditadura militar com sua arte. E hoje?

Observo que, eu não comentaria nas redes sociais sobre Lennon, ou qualquer outro se não fossem públicos, se não estivessem em exposição nos noticiários. E com relação a ele, até hoje se fala. Enfim, a coisa não é de conotação pessoal, mas da figura pública que ele representou e representa até hoje.
O mundo do politicamente correto é patrulheiro. Se você não gosta de Bono Vox, no que diz, fala e se comporta então você é a favor da fome no mundo; você é a favor da opressão que os ricos têm sobre os pobres; você é contra a humanidade e o meio ambiente. Tudo bobagem.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, numa de suas crônicas semanais, citou uma frase que vai de encontro com o comportamento desses “pacifistas”: “fighting for peace is like fucking for virginity" (lutar pela paz é como trepar pela virgindade)”. Bem oportuno, e isso estava escrito na porta de um banheiro em Israel na década de 80. Quem "luta" pela paz e vive em guerras internas e individuais é um oportunista, antes de tudo.

Hoje somos refém dessa praga, como chama Pondé. O politicamente correto tenta corrigir os termos, colocações, comportamentos, direções para que lado devemos seguir, porque toda a humanidade deve caminhar para lá, mesmo sem saber o que irá encontrar. Associa e posiciona o cidadão no mundo sob sua ótica. Se você não está nem aí para as causas ambientais, você não ama seu planeta — tentam lhe pregar. Como se fôssemos robôs e o único teto sobre nossas cabeças é do apartamento onde dormimos; sem olhar para o céu lá fora e por onde andarmos pelo mundo, será sempre o nosso teto. O mundo é minha casa. Deus me livre da prisão desse apê!

Zilda Arns — médica sanitarista morreu no terremoto no Haiti em 2010, quando estava numa missão humanitária. Nem eu, nem ninguém soubemos através dos noticiários que, esta verdadeira pacifista, estava lá, por uma causa. Ela não deu notícia ao mundo. O que fazia, não precisava ter reverência, não precisava aparecer.

A melhor revolução do mundo é aquela interna, de dentro para fora. Cuidar da casa, dos filhos e dar o melhor para suas formações; é o caminho individual que podemos fazer para plantar a semente do mundo, nossa pequena e sadia revolução.

Recentemente, por conclusão da peça de acusação aos réus do Mensalão do governo Lula, o Procurador-Geral da República Roberto Gurgel citou Chico Buarque “Dormia a nossa Pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações” — Vai Passar (1984). Em tudo que deferiu na sua fala, talvez não coubesse melhor citação. Enquanto a Pátria dormia, carros-fortes saiam dos bancos para pagar e manter um esquema de corrupção – o maior já visto, segundo Roberto Gurgel. Com certeza, alguém (esses que andaram dormindo), deva ter pensado, como pode ele citar isso? Chico Buarque não serve à direita. Esta música foi feita para a ditadura e não para os tempos de democracia que vivemos!

Concluo. Em democracia ou em regime de ditadura, a corrupção tem a mesma feição. O compositor escreveu para um e acabou acertando o outro. Como ele sempre se posicionou à esquerda acabou provando do próprio veneno. Esta é outra página infeliz da nossa história, que ainda não desbotou da memória. Estamos passando.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / agosto de 2012.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Batman - a crônica


Em 1989, enquanto ansiava pela estreia nos cinemas do novo filme de Batman, um colega da FAU me apresentou o gibi “O Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller. Devorei o gibi e tirei toda a impressão trocista que tinha de um herói quase morto dentro de mim. A história era de uma figura envelhecida e séria, bem diferente das lembranças do Batman, da série de 1966, com Adam West e Burt Ward. Aquele pastelão que arrancava gargalhadas e a gente ficava pensando de um dia para o outro: como Batman vai se escapar dessa? Ele escapava sempre, até usando a magia e forças de Superman - herói em escala maior de poder que a sua. Mesmo assim, Batman sempre foi um pouco mais humanizado, e por ele ser falível, eu o adorava.

Fui ao cinema e me apaixonei pelo filme de Tim Burton. Primeiro porque retratou uma Gotham City como vi no gibi: escura, de arquitetura inóspita, mas pungente com grandes construções, num cenário esfumaçado. Depois as atuações de Michael Keaton como Batman e Jack Nicholson no papel de Coringa. Batman era astuto, viril, pegador de mulher (tentou Vicki Vale). Ele não deixou dúvida do seu propósito. A justiça de Batman era só encontrar seu alter-ego, o bandido que matou seus pais na porta de um teatro, Jack Napier (o Coringa). Ele o encontra, o transforma em Coringa e o destrói como todos desejavam que fosse feita sua justiça. Depois disso, ele se refugia em sua Bat-caverna e a vida parece voltar ao normal. Mas não na sua ânsia por fazer justiça. Pegou gosto pela coisa e pela máscara.

Em “Batman - Retorno”, o mesmo diretor, o mesmo ator para Batman e um vilão que veio do esgoto e tenta ser político para se vingar da família e do mundo que o abandonou por causa de sua monstruosidade. Um político que sai do esgoto para emergir no asfalto? Parece coisa bem atual e verdadeira... Eles saem dos esgotos, mas não se esquecem de onde vieram, com suas atitudes vis voltam sempre às origens. Danny DeVito foi o Piguim desse filme de 1992, com Michelle Pffeifer como mulher-gato. Nesse filme fica evidente a corrupção, e o povo quase comprando Pinguim com ar de bonzinho, até ser desmascarado por Batman. Ele volta ao esgoto, mas Batman continua sem os aplausos do povo de Gotham.

Como no antecessor “Batman Begins”, no filme “Cavaleiro das Trevas” de 2008 vi um herói sem muita afirmação, failed. Talvez porque não quisesse vê-lo terminar a trama fugindo da polícia. Quem tem que fugir é Coringa, pensei. Disse que Batman parecia um medroso e talvez fosse mesmo. Um anti-herói escondendo atrás de uma máscara.

Voltando à Gotham, a impressão que fica aqui também é que as pessoas têm mais afirmação e aceitação pelos bandidos. Ou não veem neles tanta maldade assim. Fosse o contrário, não deixaria que Batman fosse perseguido. Perceberia nele o defensor da lei, da ordem e da justiça. Não sabemos se é assim que pensam em coletivo, ou se não pensam, mas tudo transparece que pouco importam se ele prende ou não os bandidos. Sendo povo, não nos colocamos no lugar de ninguém, exceto se esse alguém for muito próximo. No resto, iremos confundir sempre Batman com Coringa.

Por que Batman não agrada a população de Gotham City? Pelo mesmo motivo que toda população de qualquer cidade (imaginária ou real), não presta atenção em quem é vilão e quem é mocinho; quem verdadeiramente faz o bem à sociedade e quem é contraventor. O povo não se interessa por Lei; ele só quer saber se sua zona de conforto continua confortável. Batman nunca distribuiu cesta básica a ninguém ou fez campanha pelo seu nome na política. Ele só quis que a população, que ele defende, tivesse mais consciência política e colocasse os atores de sua sociedade nos seus devidos lugares.

Na condição de milionário, Bruce Wayne poderia distribuir parte da sua fortuna e transformar a sua fundação em uma ONG, ajudando os pobres indefesos e excluídos de Gotham; depois equipar a polícia para prender os bandidos, sem parecer Batman. Seria mais bem visto por todos. No fundo, ele escolheu ser Batman, uma figura mascarada, obscura e pouco política; tentando mostrar, quem são os verdadeiros inimigos da sociedade. Mas o povo pouco importa e só quer praia, fazer festa, churrasco e com muito circo para dar risada.

Toda população tende à mediocridade quando só espera acontecer e ser servido. Ninguém quer saber de justiça e ter que pensar; todos querem é que alguém (mais poderoso) dê alguma coisa que não precise se esforçar para ter. Quem clama por Batman como herói somos nós, público, que vamos ao cinema para vê-lo esmagando seus inimigos. Poucos, ou quase ninguém, iria ao cinema se o filme mostrasse a vitória de um bandido. Já a população de Gotham, está acostumada com o bandidismo e pouco importa de que lado ele está.

Saindo do cinema e voltando para nossa vidinha social é o mesmo comportamento, também não enxergamos nossos "Batmans", ou quem simplesmente quer mostrar-nos o lado justo e injusto da sociedade. Queremos os perversos, os corruptos, pelo brilhantismo de serem maus-caracteres e rirem da nossa cara. Gostamos de quem riem de nós - como uma risada mortal.

Na minha infância, os heróis usavam capas, espadas, pistolas a laser, máscaras e voavam. Eram defensores da humanidade, do bem e da paz no planeta terra. Hoje não tenho mais nenhum. Eu não tenho mais heróis. Eles se apagaram da minha memória por anos e não mais voltaram. Sinto saudades dessa pureza. Enquanto podia acreditar eu os adorava, me davam guarita, segurança e confiança. Tudo acabava bem com eles.

Quando ficamos mais maduros deixamos de admirar o imaginário e passamos a admirar-nos em seu lugar. Ou, exercitar a fé em lutar pela vida individual. A espiritualidade voltada cria em nós esperanças. Cada qual vira herói de si.

Gostei quando um sacerdote disse que o mundo cristão precisava passar uma imagem mais humana do Cristo. Caindo por terra a sua infinita santidade e luz – um herói. Para nos servir mais de exemplo é preciso que tivesse mais semelhança conosco na proximidade humana.

Meu pai não foi herói e muito menos bandido. Ele era comum e tinha só o vicio o cigarro, o que lhe acelerou a morte. E nem por isso deixei de me espelhar, ou captei dele alguma coisa que ainda não sei. Foi instantâneo e inofensivo a sua imagem projetada em mim. Os outros meus heróis infantis morreram de overdose ou continuam sendo perseguidos pela polícia. Assim, a história nunca terá um final feliz mesmo.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2012.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Batman, again

Entusiasmei e decidi escrever uma nova crônica sobre Batman. Nova porque em 2008, fiz uma resenha do filme que tinha acabado de ver na época, o Cavaleiro das Trevas (leia abaixo). Nesse novo texto pretendo  deixar de lado o que vi em o Cavaleiro das Trevas e sua falta de afirmação como herói, para tocar no seu lado político; ou por que Gotham precisa tanto dele, mesmo que o tenha achado um tanto covarde e o povo não tenha feito dele um herói como ele é? Para falar a verdade, o povo sente-se pouco atraído por heróis, preferindo os vilões. O texto deve abordar sua realção com sua forma de fazer justiça, com seus violões, Gotham City, Comissário Gordon e os políticos. Aguardem!

Batman x Coringa

Fui ver Batman – O Cavaleiro das Trevas. No final do texto darei a nota para o filme. Antes gostaria de comentar as impressões que tive. Desde o primeiro longa das séries de Batman (Tim Burton -1989) com Michael Keaton ficou sempre aquela sensação de descontinuidade. Cada diretor tirou o seu Batman da cartola. Esse inclusive foi idealizado, ou como diriam, foi levado para as telas por que na ocasião havia saído a HQ de Frank Miller título homônimo “O Cavaleiro das Trevas”. Li o gibi, mas não me lembro bem da história. Era um Batman velho, meio deprê e aposentado. Descoberto pelo seu arqui-inimigo Coringa volta a lutar contra o mal e livrar Gotham City do crime. Nada diferente. Todas as versões posteriores sem Michael Keaton pouco me empolgaram. Achei muito grosseiro. Os dois primeiros foram os melhores, pois mostrava um super-heroi lúcido e viril.

O Cavaleiro das Trevas engana quem pensa que irá encontrar um super-herói que vai lavar nossa alma com suor e justiça, derrotando o inimigo e ainda beijando a mocinha no final. O Batman, de O Cavaleiro das Trevas é pouco eloquente. Nega sua existente, foge de si mesmo, quase um anti-herói. Talvez tenha sido realmente a sua verdadeira identidade. Ele usa a máscara para se esconder, já disse o próprio Coringa. Numa cena desse novo filme Bruce Wayne deixa o promotor Harvey assumir que é o Batman e sai quietinho. Numa outra sequência diz ao promotor que ele é essencial para Gotham pois conseguiu colocar a máfia na cadeia. Este é o Batman de O Cavaleiro das Trevas. Heath Ledger esteve genial no papel do Coringa, por sinal a figura mais centrada, mais firme e transparente da trama. Coringa foi genial, foi melhor que o próprio Batman. O conhecia mais que ele a si mesmo. Numa cena dispara para Batman que precisa dele e ele de Batman; e que Batman o completa. Sabe o que Batman disse? Nada. Calou-se como se dissesse: Você tem razão. No fim, Batman não consegue derrotar Coringa como deveria e é perseguido pela polícia. Os sobrinhos que nos acompanharam no cinema tiveram momentos de bocejos entre uma cena de ação e uns diálogos longos e incompreensíveis. É, deu para bocejar um pouco sim. No melhor de o Cavaleiro das Trevas, Coringa sabia o que queria. Queria o caos, anarquia. tragédia, a ponto de queimar uma pilha de dinheiro que havia roubado. Para Coringa o importante era causar, sem regras. Para Batman ficou a sensação de que não sabia a quem vencer: ao Coringa ou a si mesmo. "Why so serious?" (por que você está tão sério?), disse o Coringa.

Na vida real Heath Ledger (o Coringa) morreu em janeiro desse ano por overdose de remédios. No filme, Batman quase morre em si mesmo. Não foi dessa vez, quem sabe na próxima. Por enquanto está fugindo da polícia de Gotham City. A nota do filme? Seis. (2008).

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2012

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Um bom lugar pra ler um livro

Em 2010, postei aqui uma crônica sobre atendimento público, suas invenções e particularidades em consonância com o mundo moderno, ou o “aguarde para ser atendido”.

Depois de uma maratona de telefonemas, consultas, cafezinho (com e sem leite), revistas “Caras”, salas de esperas, descobri o óbvio das adversidades cotidianas: unir o útil ao desagradável (tirando do caos o prazer); ou como poder desfrutar de um bom livro, para o infortúnio momento da espera, e sem ninguém para puxar conversa.

Fui ao médico para uma consulta de diagnóstico precoce ou preventivo, nada alarmante. Como de praxe, ele me solicitou exames. Fui atrás das autorizações (tem isso ainda),  para tirar qualquer suspeitas dos problemas ortopédicos, que a idade insiste em me dar de presente. O laboratório refutou a guia médica, disse que faltou um relatório mais minucioso... Bem, aí começou meu drama de um mês. Sai atrás, mas sem pressa de chegar; e depois de alguns telefonemas e retornos, me informaram que o médico havia tirado férias em lua de mel (em Paris, talvez) e só voltaria atender no final do mês – mais trinta dias. Minha impaciência e meu sangue começaram a emergir e ser percebida, quando sua secretária, para se livrar de um paciente chato, me apresentou como sugestão outro especialista, que ela também secretariava. Aceitei prontamente a sugestão, mesmo porque – pasmem! – a consulta era um “encaixe” na manhã seguinte.

Na sexta-feira pela manhã, passei no trabalho e segui para consulta. Detesto ser pontual, em meus compromissos costumo ser adiantado. Então, cheguei ao consultório trinta minutos antes, isso também, porque a chance de encontrar uma vaga na rua antes das oito da manhã era bem maior. E foi verdade, achei uma vaga 20 metros do edifício.

Cheguei à sala de espera (quase vazia) e num silêncio doentio (sem trocadilho). O único barulho era das atendentes que conversavam baixinho, assuntos particulares e riam uma com a outra — baixo para não chamar atenção. A TV ligada (sem som) parecia um outdoor de mensagens e nem o closed caption para ler o que dizia o noticiário. Sentei e esperei. Como senti que aquilo pudesse demorar, me angustiei, por esquecer dos óculos que carrego há um ano quando comecei a não ver mais de perto; por consequência, do livro que chegou pelo correio no dia anterior. Que falta me fez ali. Um bom lugar para ler um livro.

Folhei revistas vendo fotos nubladas, quando uma senhora apontou no elevador. Ouvia sua voz mesmo antes do elevador abrir as portas. “A felicidade é barulhenta”, li do autor do livro que deixei no carro. A mulher arrastava uma perna, e por isso era guiada por sua filha — presunção. Quando ela chegou ao balcão disparou a justificar do seu atraso, porque um carro havia incendiado nas imediações do shopping e ela teve que desviar o caminho; e a atendente com aquela cara e olhar de “e eu com isso...”. Por fim, sentaram-se as duas e a conversa prosseguiu em vozes altas, de irritar as moscas que já dormiam no teto.

Durante aquela longa espera, a mulher acompanhante, tirou o celular da bolsa umas três vezes. Pensei: àquela hora da manhã, deve estar acordando alguém... Na segunda vez foi para acordar alguém mesmo; ela ligou para avisar a pessoa que deveria ligar a TV, pois Luan Santana estava no programa da Ana Maria Braga... A velha senhora ao lado ainda comentou: “agora que ela pula da cama, mesmo!”. Mais alguns minutos de espera, ainda iria descobrir seus signos, o que comem, onde moram e mais coisas sobre a dupla barulhenta, mas fui chamado à consulta.

Voltei ao trabalho e peguei o telefone para marcar um dos exames que o médico — que não estava em lua de mel — me solicitou. Fiquei feliz que o exame poderia ser naquele dia, algumas horas. A atendente me indicou um laboratório dentro de um shopping da cidade, justificando que na matriz não havia vaga para estacionar — coisas da vida moderna.

Com a manhã já perdida por conta disso tudo, dirigi-me ao laboratório, sempre na minha impontualidade e agora com meus óculos e o livro.

Chegando lá, uma situação análoga: ar-condicionado, cafezinho de sachê (três tipos), poltronas confortáveis, senhas e espera (longa espera). Durante a demora pressentida, adiantei boa parte do livro. O exame de radiografia dos pés que caminho, durou menos de 05 minutos. Seria como esperar 50 minutos no embarque do aeroporto para um voo de 30 minutos de São Paulo à Curitiba. Peguei o protocolo da retirada dos exames e fui. Só notei as horas depois, já passava da 01 da tarde.

No caminho até o restaurante, veio à memória outra cena do dia anterior. Precisei ir à agência bancária onde tenho conta. Uma vez por mês me dirijo até lá. Para um atendimento “diferenciado”, subo ao setor “VIP”, das contas especiais. O mesmo ambiente: climatizado, cafezinho de três sabores, mulheres lindas, poltronas confortáveis, TV a cabo e muitos aposentados (supostamente com muito dinheiro em conta). Sentei confortavelmente numa das poltronas com a senha no colo e os olhos no painel. Um senhor “aposentado”, sentado ao meu lado, se virou para mim e disse: conforto, cafezinho, ar-condicionado, TV a cabo, mas o atendimento que é bom, nada! Faz 40 minutos que estou esperando para conversar com um gerente...”. Está aí outra dica. Agência bancária, outro bom lugar para ler um livro.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / maio de 2012.

domingo, 1 de abril de 2012

Resurrectio



O padre bradava, num megafone, em meio à procissão: Viva o Cristo ressuscitado! Como uma corrente humana, com suas velas, a multidão de fiéis, respondia uníssono: Viva! Viva! Subiam fogos aos céus, como serpentinas riscando o breu; os sinos da matriz soavam sem parar, cães ladravam nos quintais. Depois vinham cantos em coro, de um cortejo que dobrava quarteirões. A cidade, dos ateus e não católicos que ainda dormia, era acordada por aquela festa da ressurreição, onde a vida venceu a morte – não há mais mistério. Mais importante que nascer era renascer. Aquele era o dia do renascer para vida. Assim na terra como no céu.

No outono, o dia amanhecia frio com uma neblina densa. Enquanto os fiéis caminhavam naquela peregrinação das ruas de paralelepípedos, a luz da manhã se anunciava no céu rubro e as dos postes se apagavam lentamente. Aleijados, coxos, anciões, muitos eram os que saiam nos portões e se inclinavam em orações e terços nas mãos. Era a manhã de um dia feliz. Uma pedra era retirada do sepulcro e do meu peito então; aliviado e sem mais culpa do petiz que se aniquilou ao flagelo do filho de Deus: crucifica-o! Aquilo não saia da minha mente. A ressurreição me tirava da angústia, fazia-me respirar o ar bom daquela manhã e com esperança na vida. Meus pecados infantis iam ao pó correndo pelo meio-fio; no coração era pluma com aquele caminhar penitencial. A dor da sexta da paixão tinha ido embora com aqueles “vivas”, que repetia sem parar. Eu ia à frente com meu pai segurando minha mão.

Já passava das seis horas da manhã, com o dia já luzente, quando a procissão chegava à porta da igreja, com toda a praça já tomada. O palanque de madeira improvisava o altar para celebração da missa da Páscoa (era o mesmo que se utilizavam nos comícios políticos). Ao entrar na praça, o padre, já em cima do altar, nos lembrava daquela manhã – esta era a razão de uma procissão de madrugada – onde Maria Madalena e outras duas mulheres foram até o sepulcro onde o corpo do Cristo fora colocado depois da sua crucificação e morte. E para minha surpresa, e de todos os anos, a pedra fora removida e o sepulcro vazio com as vestes deixadas no canto. Eu desenhava na minha mente aquela cena do Cristo, com todo seu poder e força, empurrando aquela enorme pedra; a felicidade tomava conta de mim. Nenhuma sepultura no mundo tinha aquela inscrição: não está aqui, ressuscitou! Repetia o padre sem parar. A ressurreição era como água límpida para minha sede.

A curiosidade etimológica fez-me ir atrás da palavra. Ressurreição surgiu do latim resurrectio. E de todas as traduções a que mais me acolhe é nascer de novo, para nova vida. É quando nos penitenciamos e nos damos chance de recomeçar num mesmo corpo com desígnio de um novo ser. Contrito e em paz de espírito. Nada de ovinhos de Páscoa escondidos nos troncos das árvores e nem coelhos imaginários; somente renascer em Cristo.

As manhãs dos domingos de Páscoa eram sempre mais frias e cobertas de cerração, hoje já não são mais. Não temos mais fogos e sinos soando; nem toalhas estendidas sobre as janelas das casas e pessoas se inclinando em rezas; nem há mais tantos fiéis em procissão. Mas a Páscoa não perdeu o sentido para o menino que fui, continua o mesmo dia do resurrectio; o dia que podemos renascer para uma nova vida.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Abril de 2011.

domingo, 18 de março de 2012

Cerzir, coser, remendar


Pique-esconde ou esconde-esconde? Você brincava de quê? Não importa a região onde se mora ou o nome que se dá; era esta — acho que continua sendo — a brincadeira de criança mais gostosa que existia. Há algumas razões para entender: não distingue meninos e meninas; as crianças se escondem em qualquer canto e vão que encontram. E como em qualquer brincadeira de competição, a pilhéria é a vitória: venci pela minha astúcia de não ser encontrado — sente a criança. Recordo-me que havia inúmeros esconderijos dentro de casa, no quintal, ou na rua. Era atrás da porta, embaixo da cama, embaixo da escada, atrás do sofá, dentro do guarda-roupa, dentro do cesto de roupas, atrás da casa, em cima de árvore, atrás do poste de luz... O meu preferido era dentro do móvel da máquina de costurar.

Os nascidos a partir dos anos oitenta não sabem que nossas mães tinham máquina de costurar em casa. Minha mãe tinha e minha avó paterna também. Lá em casa era um móvel de madeira ocre; ao abrir a tampa superior saltava a máquina “Elgin” lá de dentro. Na porta frontal havia um nicho para guardar instrumentos, linhas e trapos. Havia um pedal que movia as polias ligadas por uma correia dentada. Havia também aquelas portáteis e pesadas, que você levava para todo lado. Essas eram movidas à mão e guardadas dentro de uma caixa de madeira com uma tampa arqueada.

Não sei dizer se bem ou mal, mas minha mãe costurava muito. Ela não costurava por cruzeiro nenhum, era só para nós. Ela sentava à tarde e costurava nossas roupas, as novas e as velhas. Às vezes eu me metia a querer aprender algo com ela, fazendo minhas máscaras e capas de zorro. Aprendi a pregar botões de tanto auxiliar minha mãe a passar a linha pela bobina e depois pelo buraco da agulha. Hoje, quando um botão cai, eu mesmo costuro — não esqueci o ofício.

Naquela época, as roupas novas não eram compradas em Shopping Center nenhum. Na maioria das vezes eram de confecção própria da máquina de costurar caseira. Até o uniforme escolar e o jaleco que usava na oficina do colégio era feito por minha mãe. Tudo era ela quem fazia. Lembro-me dos calções que usava (hoje se diz short ou bermuda), esses eram de um tecido grosseiro e resistente (brim), com um elástico na cintura e sem bolso. Bem simples para aguentar um “escorregador”, um carrinho de rolimã, ou um chão de cimento.

Quando o calção rasgava (sempre no traseiro), ela recortava um pedaço de pano de outro tecido, um pouco maior que o rasgo, e forrava por dentro; depois cerzia por fora, com a costura aparecendo. Estava remendado para rasgar de novo. A técnica é parecida como consertar câmera de ar de bicicleta. A diferença é que no cerzido, o remendo era latente e ia por dentro da roupa. Já a costura, era como uma cicatriz na pele.

Faz tempo, eu não ouço a palavra cerzir. Fui ao dicionário para ver se ainda existe. Existe sim: cer.zir (lat sarcire) vtd 1 Coser, remendar (um tecido), de modo que não se note o conserto. 2 Unir, juntar. 3 Entressachar, intercalar. Cerzir era o modo mais prático e barato em manter o que ainda dava para usar, porque o estrago não foi grande e o restante da peça estava inteiro. Fazer remendos, unir o que rasgou. Não havia estética e beleza no cerzido e sim a necessidade e a economia em não ter que comprar outro corte de pano para coser uma nova. Hoje jogamos a roupa fora, ou doamos para quem não faz questão de um rasgado. Cerzir era como levar o par de sapato ao sapateiro para colar uma meia-sola.

Lembrei-me dessas histórias outro dia, quando minha camisa rasgou na maçaneta de uma porta. Estava no trabalho e fui voando para casa trocar. Sem a infância para me proteger do vexame e dar risos, enchi-me da vergonha com a face rubra, pela camisa dilacerada. No caminho fui pensando na minha mãe e no cerzido que ela fazia. E como minha vida mudou de lá para cá. A roupa cerzida não faz mais parte de mim. Não preciso mais cerzir o que rasgou. O que fazer com ela agora? Não temos mais necessidade do remendo e a velha máquina de costurar ficou obsoleta, enferrujada, esquecida no porão da memória. E eu perdi para sempre meu esconderijo favorito.

Cerzir é resgatar. É uma forma que temos de melhor conduzir as coisas que ainda têm conserto; pessoas e roupas que têm valor e podem durar por muitos anos em nossas vidas. O que é bom não pode ser jogado fora, só porque está machucado, ferido ou rasgado. Um coração mesmo dolorido e esfolado ainda pode ser cerzido. Ele voltará a ser novo.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cartazes de filmes

Como sabem, velharia é comigo mesmo. Cultivo as coisas antigas sem medo de ser chamado de “retrô”. Por sinal, eu até gosto... Já tentei confundir minha mente (e o coração) a querer gostar do novo, mas eu volto sempre aos objetos abandonados, por mero descuido, no buffet da sala de jantar; como já disse, dos “tesouros enterrados”.

Poucas pessoas entenderem esta frase que escrevi numa crônica de 2010. Cabe explicação. Algumas coisas são tão valiosas em nossas vidas que, acho que deveriam ficar escondidas para serem preservadas. Por isso usei o termo “enterrar”, ao invés de guardar. As histórias fictícias de piratas contam de tesouros enterrados. E quando alguém os enterra, entendo que tinha grande valor e só aquela pessoa sabia da sua existência. O que é bom deve ser enterrado para sempre. No futuro, serão como peças antigas que arqueólogos escavaram para descobrir nosso passado.

Tenho uma paixão - até ontem era contida - por cartazes de filmes (posters). De preferência pelos filmes antigos. Acho que os cartazes tinham um papel fundamental nas campanhas publicitárias, de divulgação e bilheterias, nos tempos do Cinemascope. Quando não havia tantos meios de publicidade e quase tudo se resumia aos jornais e magazines.

Há peculiaridades nesses cartazes. O segundo nome da atriz/ator/diretor era mais relevante que o primeiro e por isso se escreviam em caixa de letra maior. Outra curiosidade era “Cinemascope” (you see it without glasses!) que aparecia como um chamariz nos cartazes. Cinemascope é o que chamamos hoje de “widescreen”. Foi criado pela Twentieth Century Fox, e utilizado na produção e exibição de filmes entre 1953 até 1967.

Como não havia grandes produções a cores, era um chamariz também o “technicolor”. Neste mesmo período, os filmes em preto e branco ainda sobreviviam, embora já se fizessem os “technicolors”. A resistência de alguns diretores era porque alguns filmes em P&B escondiam imperfeições de maquiagem e cenários que o colorido expunha demais. E o público poderia perceber tais imperfeições.

Liguei a tv outro dia e pude ver ainda o final de uma entrevista (que pena!) de um ilustrador de filmes brasileiros. Nem seu nome lembro mais. Ele era ilustrador, na década de 70, de cartazes de filmes brasileiros, na época da pornochanchada, de atrizes como Vera Fisher, Nádia Lippi, Helena Ramos e Aldine Muller; aquilo que chamávamos de “sala especial”. Ele conserva muitos desses cartazes como foram desenhados e produzidos. Uma relíquia.

Reuni uma coleção de cartazes dos filmes de Marilyn Monroe (sempre ela), para mostrar como era esta arte; onde o ilustrador tinha um papel determinante na publicidade, não usando nenhum computador ou tecnologia gráfica para criá-los. A coisa nascia no papel, com pincel e guache. As ilustrações tinham a perfeição de fotografias e puxavam das silhuetas e corpos os destaques mais acentuados: pernas, bocas, mãos e gestos. Noutras eram fotos montadas, com a mesma técnica.

Adorável pecadora - 1960

Como agarrar um milinário - 1953
 
O rio das almas perdidas - 1954
 
Quanto mais quente melhor - 1959


O príncipe encantado - 1957

Os desajustados - 1961

Almas desesperadas - 1952
 
Nunca fui Santa - 1956
O pecado mora ao lado - 1955
Os homens preferem as loiras - 1954


© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Razão e sentimento

Existem algumas frases feitas que, sem percebermos, vamos propagando incontestes. Muitas delas vêm nos confortar e aliviar agruras da alma; ou nos norteiam para um novo estágio. Agarramos a elas naquele instante, como um náufrago em alto-mar agarra sua boia. Um dia, alguém na sua angústia, as criou para negativar algo dentro de si — acredito. Acordamos com aquele nó na garganta e postamos no nosso mural virtual. Aliviados, a sensação é que uma corrente negativa, que acordou conosco, foi enxotada para fora do nosso corpo.

“De hoje em diante, só vou gostar de quem gosta de mim”. Lembrei-me dessa, por acaso.

O triunfo da nossa jornada está fincado na razão. Como um pêndulo em nossas vidas: nem céu, nem terra; nem acre, nem doce; ela nos posiciona de volta ao caminho. A razão é pura sensatez; o nosso lado responsável, que nos centra no mundo com tantos sentimentos díspares. Como um equilibrista na corda, atravessando de um penhasco ao outro. Por vezes, a razão é um trem que demora chegar à estação. E quando chega, fora de hora, o estrago já foi feito, por aquele sentimento indomável. Agora, o que há de lógica quando se tem o coração a frente? Nada! Corações não pensam, não refletem, não enxergam, não sabem escolher. Corações só sentem e algumas vezes decidem também. Eis o perigo.

A frase “gostar de quem gosta de mim” nos evoca à reflexão, quando não se tem controle de nada que sentimos. Fácil de propagar; difícil de cumprir. Roberto Carlos escreveu isso em uma de suas canções mais populares “Só vou gostar de quem gosta de mim”. A frase quer dar um chute na tristeza, pôr um ponto final em tudo; mas pouco nos adianta quando ainda estamos aprisionados. Mais cedo ou mais tarde virá nos domar quando estivermos sozinhos no quarto escuro. Notadamente, o coração é como um burro empacado, que não obedece a seu dono. Ele vai onde não queremos ir, ele escolhe quem não admitiríamos, pela razão, escolher. Ele é um viajante sem destino e sem medo. O que fazer com ele? Expulsamos o do peito? Vamos dizer-lhe: não sinta isso? Ao contrário, deixamos tudo fluir... O autoconhecimento, com os dons espirituais, é a janela por onde a razão irá entrar e dar um basta à teimosia do coração.

Em geral, iremos ceder aos nossos sentimentos; iremos gostar de quem não gosta da gente, sim! Deixaremos feridas expostas por sermos tolos do coração e por deixarmos guiar por ele. Num voo cego para dentro. Na outra ponta, a razão deve estar com seus soldados a postos para qualquer emergência; ela brigará com o coração; e vencida a luta, irá nos colocar num canto de recolhimento, num silêncio necessário e com o tempo a favor. Assim, tomará a vez para decidir. Até a tormenta passar e dizer: agora pode sair, não há mais perigo algum.

Sempre alguém próximo vem nos indagar: “por que você não namora a fulana? Ela gosta de você...” (como se já houvesse consentimento do outro lado). Nunca cobrei a mesma coisa de ninguém, pois sei como é difícil mandar em quem não quer obedecer. Sei que existe esta coisa também, de alguém querendo cuidar da vida alheia, até pelo que você deve sentir. O que lhe causa incômodo não está na sua vida, mas na vida do outro. Ela pode enxergar alguma afinidade ali, mas não está dentro de você. Agora, diga isso ao seu coração. Ele não concorda com o que não sente. O que pode parecer interessante para o outro, pode ser um copo vazio para ele. Ou pelo menos naquele momento não lhe sacia. Os olhos e a mente devem, sim, estar abertos para depurar, com valor, o tamanho do sentimento que o coração escolheu. Sob o domínio da razão, o coração não mandará mais gostar de quem não nos completa. Por outro lado, também não nos fará cair na tolice de teimar gostar de quem por ele não bate.

Lá no século XIX, a sociedade ainda era assim: o pai escolhia o marido para a filha. Mesmo ela não gostando, ela era prometida àquele homem que nunca tinha visto antes. Boa reputação, boa família, trabalhador, etc. Eram esses atributos que o pai dizia. O que se chamava de “bom partido”. Em alguns lugares do mundo, ainda existem essas relações arranjadas, onde o sentimento é desprezível. Os casamentos se dão pela importância das ramificações familiares e não pelo sentimento que selou aquelas pessoas. Aquele que nasce com os olhares.

Outra coisa importante sobre sentimentos. Há um desprezo pelas amizades em troca do encalço do amor, ou de uma projeção de amor, com riscos enormes de falhar. A razão nos fará posicionar para o lado mais eficaz do convívio. Se você não pode se dar no amor àquela pessoa, deixe reinar a amizade. Amigos de verdade são para sempre. Eles não ficam cobrando a presença, mas se curtem do mesmo jeito que um casal bonitinho de mãos dadas no cinema. É fato, não havendo tais cobranças e dependências, nas amizades não existe a dor da separação. Amigos se distanciam, mas não se separam. Só extraímos o que é bom.

Com isso, volto às teses do médico psicanalista Gikovate. Com mais de 30 anos de consultório, algumas pessoas — com o olhar no passado —, ainda querem discordar do que vem dizendo. O mundo vive mudando e o modo de se relacionar também. As relações hoje estão mais próximas da amizade do que do amor romantizado e dependente. Estamos mais prontos para ter relações amorosas por concessões e parcerias do que por dependências sentimentais. E isso é um caminho sem volta. Homens e mulheres estão disputando espaço no mercado de trabalho e quando se juntam para uma relação (por amor), ela é uma progressão do ambiente do qual eles agora compartilham. Ninguém está submisso ao outro; e ninguém manda em ninguém. São parceiros no amor e na construção de uma relação arraigada no respeito e admiração mútua. Como direitos e deveres mais próximos e iguais.

Ainda que tais teorias sejam verdadeiras, o coração continua ainda mandando nos sentimentos; e quando encontramos alguém que cumpre nossos quesitos, pelo brilho dos olhos, pulsação, alma e poros, podemos estar diante não da nossa cara-metade, mas da boa parceria, que iremos constituir, para construir uma vida a dois. Neste ponto, a razão concede, concorda e deixa o coração reinar.

Dessas frases máximas do dia a dia, tem outra que lembro sempre: “antes sozinho do que mal acompanhado”; ou mais correta ainda: “antes sozinho do que estar com alguém que não me atrai”. Esta, eu cultivo. Não sou eu quem diz, mas é minha razão que resolveu agir. Enquanto ela estiver falando, assim será.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

iPod, iPhone, iPad...iEnd

Uma notícia percorreu o mundo com um relâmpago, no dia 05/10/2011. A morte de Steve Jobs, o co-fundador da Apple. Fiquei sabendo quem era depois da notícia. Desculpe a minha ignorância. Como não conhecer (em vida) um ícone mundial? Sou só um usuário e nunca procurei saber quem inventa os aparelhos. Só sabia da existência de Bill Gates e da Microsoft. Gates deve ser melhor no marketing que Jobs. Creio.

Ao anúncio de sua morte, ouvia rádio sobre comentários de futebol, quando o locutor parou para anunciar; quis então, saber quem era. Liguei o computador e fique perplexo com a chuva de comentários nas redes sociais, parecia o fim do mundo, ou a “minha vida não tem mais sentido”. O assunto estava no topo mundial do Trending Topics no Twitter. Vi comentários do tipo: “sinto como se fosse uma pessoa próxima”, ou “morreu um grande ser humano”, ou simplesmente “estou em luto”. Depois choveu maçãs negras com lágrimas, maçãs azuis tristes, maçãs negras mordidas (a mordida era sua silhueta), maçãs com uma e duas mordidas. Quando voltei minha atenção ao futebol, pensei que o “minuto de silêncio” já era para homenageá-lo. Não era.

No dia seguinte, postei um comentário no meu mural no Facebook dizendo que não chorei ontem, nem vesti preto hoje e com Jobs nunca tomei uma cerveja... Não poderia lamentar ou chorar por alguém que, apesar de seus grandes inventos, nunca me senti próximo. Citei Walt Disney e o legado que deixou. Resumi o comentário dizendo que os homens vão, mas seus inventos ficam. Algumas pessoas até curtiram.

Santos Dumont, grande inventor brasileiro — supostamente — deu à humanidade uma das melhores contribuições, o invento do avião. Digo supostamente, porque há controvérsias, pois o restante da humanidade dá o invento aos irmãos Wright. Para nós brasileiros é motivo de orgulho e continuará sendo.

A invenção do avião pôs as pessoas mais próximas, deu agilidade ao universo na sua transformação. É fato que, também trouxe discórdias, sendo utilizado para o mal. Como lembrou um colega de colégio, quando apresentava numa feira de ciências, seu conhecimento sobre Santos Dumont. Disse ele: Santos Dumont se suicidou porque viu um avião, dentro de uma guerra, atacando outro no ar. Não sei se é verdade, ou foi uma forma romantizada para justificar seu fim.

Mesmo as pessoas de grandioso valor, partirão um dia; porém deixarão para as gerações futuras os seus jardins floridos. Caberá a quem ficar cuidar para que fiquem mais floridos. O grande inventor do mundo será aquele que inventar o fim da morte. Enquanto ele não aparece, iremos morrendo, como Jobs.

A humanidade teve grandes homens que contribuíram com suas palavras, seus ensinamentos, gestos e suas posturas diante do mundo. Pelo alarido que tomou conta das redes sociais, Steve Jobs era um desses. Ele não fez campanha pela paz universal, nem andou sobre as águas; sua empresa é, e continuará sendo, capitalista. Ele inventou um brinquedo eletrônico, que muitos não vivem sem agora. Ele inventou algo que o homem do futuro irá aperfeiçoar e melhorar, com certeza. Por que a tecnologia cativa e aproxima as pessoas, mas não as fazem se amarem ainda.

iEnd.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / fevereiro de 2012.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Desapego


Você é desapegado? Muitas pessoas dificilmente irão responder a esta pergunta de prontidão. Pensarão e sairão pela tangente, ou devolverão a mesma pergunta. Uns irão lembrar-se das roupas velhas e puídas que já não usavam e doaram a um bazar e justificarão: sou desapegado por isso. Quase nenhuma dirá que doou uma roupa nova, que custou muito cara, de uma grife famosa. Desapegar é difícil, eu sei. Tem que praticar diariamente. É um ato, antes de tudo, de amor ao próximo.

Tenho isso comigo: se o mal fosse maior no mundo, a humanidade já não existiria mais. Por um fio do equilíbrio dessas forças, o bem ainda controla o mal, ainda é maior; ou eles se compensam. Acredito também, que todos nós nascemos com um chip que vem como um código moral, de ética e conduta. Uns perderão pelo caminho; outros irão buscar mais do que a moralidade imbuída no Ser humano. A benevolência ainda é grandiosa no mundo, isso também se deve aos desapegos e doações de almas, de pessoas que nunca imaginamos existirem. Uma voz que não se ouve, mas que se manifesta no silêncio.

Toda vez que vejo o mundo à beira de conflitos vem à lembrança aquelas pequenas missionárias que vivem na clausura. Optaram por essa vida e só sairão de lá com a morte. Vivem numa entrega de oração pela humanidade, pela paz de pessoas que elas nem conhecem e vidas que nem frequentam. A mente ocupada, sempre. O que muito se explica que elas vivem até depois dos 100 anos. Isso também é uma forma de desapego. Suas indumentárias não têm grife; não andam em carros de luxo; comem comidas que elas mesmas preparam, se purificam e santificam diariamente. Depois oram sem parar, com fé e amor. Tudo para manter o mundo em constante equilíbrio, contraponto às forças daqueles que se agarram aos bens terrenos, e por isso lutam, brigam, guerreiam, se matam. Se há o mal; há muitos querendo o bem da humanidade, e por ela renunciam a própria vida.

Peregrinos que fizeram a primeira vez o percurso de Santiago de Compostela testemunham que no início do caminho, o preparo é como se estivessem que carregar a vida nas costas, como assim dizer: preciso levar tudo para a minha jornada. Ao longo do caminho, a vida vai se desprendendo, se soltando das mãos; pertences são deixados pelos caminhos, sem pena, nem valor. Caminhar é preciso, carregar não é preciso. Enquanto se caminha, se ora e não se pensa em nada, somente cumprir o caminho, com a roupa do corpo e nada mais.

Outro dia, um político local escreveu em seu mural do Facebook: “devemos praticar o desapego...” A mensagem veio de um celular direto de uma igreja, presumo; a mesma que aderiu e resolveu frequentar de um tempo para cá – estava no meio do culto e se empolgou. Ele é político e seres dessa espécie não merecem muito crédito, adoram fazer proselitismo, dizer frases feitas do óbvio da vida e assim ser “curtido” por seus eleitores. Tudo dito, mas sem tirar um centavo do bolso; sem tirar a camisa para vestir àquele descamisado na rua; sem nenhuma forma de desapego em cuidado ao próximo. Algumas pessoas sobem em púlpitos e tribunas, para pregar em seus discursos, que o bom da vida é praticar o desapego. No mundo, há aqueles poucos que se doam sem nada receber. Esses são desapegados até dos discursos hipócritas.

Dentro das igrejas há outros missionários pregando aos fiéis palavras de fé e que a vida não vale pelo apego às coisas terrenas. Alguns desses continuam humildes na vida fora do templo, tentando praticar e viver tudo; outros ostentam riquezas (essas que as traças corroem), numa vida que não condiz com o que dizem acreditar.

Ontem fui dormir pensando nela. Estou pensando nela ainda... Não pensando em sua beleza, mas sobre a pessoa que ela é. Vi no canal GNT um programa sobre a vida fora das telas de Angelina Jolie; de como ela tem-se empenhado nas causas humanitárias pelo mundo: Paquistão, Haiti, Congo... Onde há gente sofrendo, lá está Angelina. Ela e Pitt, seu marido, doaram vários cachês milionários para ajudar povos pelo mundo. Criaram uma fundação por essa causa. Malgrado, alguém veio me dizer: ela faz doações para abater no seu imposto... Discordei. Não é com esse objetivo, ela visita e acompanha muito de perto esses povos, estando nos lugares, pondo o dedo nas feridas e procurando diminuir as dores das pessoas. Há amor no que faz. Se pudesse adotaria todas as crianças órfãs no mundo — creio. Um dos filhos adotivos veio do Vietnã. Que linda mulher!

Depois me indaguei: ela não faz e não fala em nome de nenhuma religião, age em nome dos seus instintos — os mais nobres —, seguindo os passos do Cristo, que as igrejas pregam pelos evangelhos. Perguntei. Quem merece mais o céu? Um padre cantor? Um político bravateiro? Uma apresentadora de programas infantis que odeia crianças? Um pastor que ficou rico com sua igreja? Ou Angelina, que ficou rica com seu talento e depois, por ser bela por todos os lados que se vê e não se vê? Na minha conta, essa já virou santa.

Não vejo o desapegar somente naquilo que nos servia e hoje não mais; dos objetos do passado que guardamos e da vida que tínhamos. Há algumas histórias reais de desapego, ou mais do que isso, de altruísmo. Aquele que doa, em vida, seus órgãos, suas vestes, seu tempo, seus bens; aquele que, além da caridade, oferece o colo, o ombro, o abraço, o amor que tantas pessoas necessitam. Desapegar é preciso; carregar tralhas, rancores é desprezível para o caminhar. E só com a leveza na alma que teremos a paz; e nada mais será importante.

“Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira”. (Pratique o desapego - Fernando Pessoa)
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No coração de todos


Terminei o ano de 2011 sem concluir um texto sobre futebol. Queria escrever sobre o Barcelona; enaltecendo o seu belo futebol. Isso tudo sem saber do resultado final do mundial interclubes contra o Santos. Mas, prevendo o óbvio, já havia comentado por aí que todos os times jogam futebol; o Barcelona joga o “mais futebol”. Estava certo. O Santos – o futebol brasileiro – passaram vergonha; foram 90 minutos de uma aula de como se joga o “mais futebol”. Será que aprendemos? Alguns cronistas esportivos disseram depois: está na hora do Brasil se reciclar, e se render ao futebol de equipe, voltando a fazer o que fez do Brasil cinco vezes campeão mundial. Copiar a si é fácil.

Neymar e o Santos chegaram ao Japão bem antes da competição. Entrevistas humildes, mas atitudes nem um pouco. Na coletiva com a imprensa mundial, Neymar disse que Messi era o melhor e o Barcelona era o favorito. Tudo que podia se dizer e ouvir. Na saída do local, Neymar foi cercado por seguranças com a camiseta do Santos protegendo-o do assédio. Mas, assedio de quem? Não havia ninguém lá que quisesse agarrar o craque nacional, nem mesmo para arrancar um autógrafo. Essa imagem ficou marcada para mim: como a imprensa esportiva brasileira idolatra nossos pseudo ídolos, elevando-os à décima potência e o resto o do mundo nem aí com eles.

Enquanto isso, o Barcelona, ainda em gramados espanhóis, goleava o arquirrival Real Madrid por 3 x 1, no estádio do Real. Só depois da partida viajaram para o Japão. Chegando lá, não houve mudanças de hábitos e nem seguranças para seus ídolos. Eles foram dispensados para passear com suas mulheres e fazer turismos sozinhos pela cidade. Pensei, o futebol tem que ter disso também: humildade. Jogar sem a arrogância, e tudo isso que vem com os salários milionários. Não fosse isso, muitos estariam morando em condições ruins e viveriam pobres por toda a vida.

Não sei precisar qual jogador – há muitas notícias em pencas sobre futebol -, mas um jogador do Botafogo Campeão Mundial da Copa de 1958, no dia seguinte após as comemorações, quando a vida voltou ao normal, continuou pegando seu trem no subúrbio do Rio de janeiro para ir treinar. Naquela época o dinheiro não estava no futebol, mandando. Jogava-se por amor.

Comecei o ano de 2012 com uma notícia um tanto triste. Meu atual ídolo do futebol abandonou os gramados. Marcos, goleiro do Palmeiras, anunciou a aposentadoria. São Marcos, já foi canonizado por todos e se fez indulgente pelos anos de carreira e tudo que seu futebol nos deu. Ao Palmeiras e à Seleção Brasileira. Houve uma comoção geral, até de outros torcedores. Descobri com isso, que ele está no coração de todos. Uns irão justificar que ele foi o goleiro do pentacampeonato de 2002; para não se render que ele envergou a camisa do Palmeiras e hoje é mais um jogador palestrino se despedindo dos gramados.

O que faz Marcos ser diferenciado? Ele nunca esqueceu suas origens; agiu sempre como homem, dentro e fora de campo; na derrota soube perder; nas vitórias soube comemorar. Sem aspereza na voz. Cortês, franco, humorado e feliz pela vida que a bola lhe deu.

Em tudo que fazemos na vida, a humildade deve estar presente. Até mesmo no futebol. Marcos é um dos jogadores mais humildes que já vi dentro e fora de campo.

Quando o time do Palmeiras estava mal no campeonato, com os jogadores fugindo a imprensa, Marcos era quem falava com, sem medo de represálias, sem medo de dizer a verdade.

Na Copa de 2002, Marcos foi um dos maiores personagens daquela conquista – o pentacampeonato. Na partida final contra a Alemanha, onde vencemos por 2 x 0, ousei dizer depois: o Brasil venceu por 4 x 0. Duas defesas de Marcos foram consideradas por mim, um gol de goleiro. A primeira, quando ainda estava zero a zero, foi escolhida como a defesa da Copa. Aos 3min: 44seg do segundo tempo, o jogador alemão Neuville bateu uma falta, de longe, daquelas quase indefensáveis. Marcos pulou, se esticou todo para pôr a ponta dos dedos na bola, e ela bater na trave e sair. Se a Alemanha fizesse aquele gol, a história daquela Copa poderia ter sido outra. Depois, Ronaldo fez dois gols e salvou a pátria. Aos 37min: 40seg, Marcos fez outra defesa num chute queima-roupa, dentro da área, de Bierhoff. O futebol brasileiro também deve a ele aquela conquista. A FIFA deu o prêmio consolador de melhor jogador da Copa para Oliver Khan (goleiro alemão), mas Marcos foi naquela manhã, o São Marcos de todos os milagres. E por essas e outras, ele já virou mito no futebol, e que agora reina no coração de todos nós.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Veículos mais modernos; ruas nem tanto


Henry Ford (1863-1947) — fundador da Ford Motor Company — foi o grande visionário da indústria automobilística; o primeiro empreendedor a fabricar automóveis em série. Ele achava que o consumismo era a chave para humanidade. Numa de suas célebres frases, disse: "o dinheiro é a coisa mais inútil do mundo; não estou interessado nele, mas sim no que posso fazer pelo mundo com ele".

Nunca a indústria automobilística despejou tantos veículos novos nas ruas das cidades brasileiras, como nos últimos anos; nunca o usuário/consumidor comprou tanto, ou trocou tanto de veículo, como nos últimos anos. Economia estabilizada e crédito fácil, um convite irrecusável. Sair do “velhinho” e poder ter um zero quilômetro, agora é sonho possível.

Parece que só vemos vantagens nessa progressão, nessa nova era; onde os veículos, definitivamente, tomaram conta dos espaços das ruas; onde uma nova classe social surge: o consumidor compulsivo. As cidades acanhadas, despreparadas e sem planejamento, ainda suportam aos problemas diários — isso é fato —, mas com ninguém se movendo da cadeira. E com tudo isso, o futuro que se projeta não é o melhor. Falo adiante.

Primeiro vamos aos automóveis. Há no mercado uma quantidade infinita de marcas e modelos; populares e de luxo; nacionais e importados. Estão muito mais seguros que na década de 80, para comparar. Atendem a todo tipo de conforto e segurança aos motoristas e passageiros. Cintos de três pontos para todos; encosto de cabeça em todos os lugares; air bag para todos os lados; freios ABS; bancos e direções ajustáveis na vertical também; GPS no painel; ar-condicionado e direção hidráulica.

Olhando por esse ângulo, vemos que as indústrias evoluíram muito nos últimos anos e isso também é um chamariz para o comprador. Os automóveis nos dão status de poder, ascensão social e ostentação. Ficamos mais felizes com eles. Quem não tinha um, passou a ter; quem possuía um, agora tem dois, ou tem um melhor... Andar de automóvel é o meio de transporte mais eficiente e confortável para quem pode ter. Ninguém ousará dizer o contrário.

Se a indústria dos veículos está no sentido vertical da modernidade e segurança, o mesmo não se pode dizer das vias por onde circulam. Os municípios, onde existe corpo técnico para cuidar das vias, ainda há um pensamento ultrapassado no modo de enxergar o sistema viário, no que se concerne à mobilidade e acessibilidade, em comunhão com a vida na urbe. A visão é caolha e retrógrada. Como venho dizendo, isso não pode ser relevante à vida de morar na cidade. Antes de tudo, vem o viver a cidade, habitar a cidade; vem o ser feliz na cidade. Os deslocamentos são consequências ao modo de vida que buscamos. Por onde passam, os veículos estão abrindo mais faixas e espremendo as construções; em meio a eles está o sujeito a pé; esse que escolheu o meio de transporte mais primitivo para se deslocar. E os técnicos ainda querendo espremê-lo mais contra o muro.

Nos seminários e fóruns de transporte e trânsito (já fui a vários), a retórica é sempre a mesma; fala-se em mobilidade, acessibilidade, calçadas seguras, ciclovias, transportes públicos e a repugnância aos automóveis que entopem as ruas e poluem. Parece que todos enxergaram o futuro, ou reinventaram a roda. Mas, quando voltam para suas cidades — nas ações de planejamento das obras, ou naquilo que deveria mudar —, tudo continua na mesma. Continua-se em tratar com galhardia os veículos (que hoje são mais seguros) dando-lhes mais fluidez na pista; em detrimento à segurança de quem está vulnerável e desprotegido na calçada; esquece-se também de preservar parte das vias para outros meios de transporte, com um objetivo claro: devolver a qualidade que se perdeu no tempo.

Quanto mais faixa para tráfego de veículos se abre, mais veículos irão aparecer. É a lógica do trânsito das cidades. Isso não tem fim. Ou teremos a cidade só para circular e não para habitar? O “quanto mais, mais” serviria — numa forma mais segura, qualitativa e acessível — se pensasse assim para as calçadas e ciclovias também. As calçadas captam ainda a grande massa que trafega nos centros urbanos. Depois vem o transporte público. Há dados sobre isso. Os discursos são cidadãos, mas a prática nem um pouco.

Detesto algumas frases feitas. Esta é uma delas: “esse é o preço do progresso...”. Como urbanista devo abominar essa teoria torta.

A cidade de São Paulo — já na UTI — é um mau exemplo de como não se deve cuidar do transporte e trânsito, onde a engenharia de tráfego já não tem mais eficiência. A frota, estimada em 7 milhões de veículos, cresceu 40% em uma década — com as ruas agonizando. O projeto do metrô está atrasado pelo menos uns 30 anos. E quantas obras paliativas nesse tempo foram feitas para minimizar os impactos? Quanto de dinheiro público se investiu em tais obras, para durarem até o primeiro engarrafamento?

O relator do Código de Trânsito Brasileiro poderia ter grifado o artigo primeiro. Ou, muito dos que pensam nessa coisa diariamente — só consultam os artigos das infrações —, deveriam voltar-se para o que diz esse artigo: “§ 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas...”. Eu grifei. Sendo movimentação de pessoas, por que não zelar dos que andam a pé nas calçadas? Por que não cuidar, ampliar, sinalizar os espaços das calçadas? Tudo que está para fora do lote privado, faz parte da via — é público. Calçada faz parte da via; e a via é de responsabilidade do órgão de trânsito. Está nesse código também.

Em quase todos os municípios do Brasil, a construção e manutenção das calçadas não ficam na conta das Prefeituras; é de responsabilidade do morador ou proprietário do imóvel. Isso não funciona — todos sabem, mas a prática é teimosa. Em contrapartida, com o crescimento absurdo da frota de veículos nos grandes centros, as calçadas estão minguando, ficando obsoletas esburacadas e intransitáveis. Os municípios e seu corpo técnico deveriam assumir a responsabilidade de construir, ampliar, conservar e sinalizar o caminho dos pedestres também. Dentro de um automóvel, seus ocupantes estão bem mais seguros que o cidadão que anda a pé. Por culpa dos órgãos públicos, quem anda a pé ou de bicicleta estão mais sujeitos aos acidentes que o ocupante de veículos. As estatísticas mostram que mais se morre no trânsito por atropelamento. Quem está cuidando disso?

Na minha cidade, desde 2007, há uma Lei em vigor, se atentando às calçadas. Fora a cidade que está aí — onde há calçadas que não terão mais conserto, já morreram —, a questão se volta ao espírito da “calçada segura” que se pode fazer, mas isso não alcançou as almas necessárias, e está muito longe do cidadão comum. Com a devida vênia, não vemos calçadas sendo construídas de forma acessível. E quando ela se contrapõe às entradas e saídas de veículos, são interrompidas para passagem desses (pensamento primitivo). E não é o que diz a Lei! Como já falei aos colegas, a Lei deveria mudar para Lei da “Calçada Acessível”; assim, quem sabe, haveria mais entendimento o que seja transitar sobre um piso livre de barreiras; onde eu e qualquer pessoa, dentro do seu grau de dificuldade de locomoção, consigamos trafegar por esforço próprio. Simples.

Gostaria de falar só desses conceitos, mas há uns números bons para simplificar essa tese. Uma pessoa trafegando a pé na rua, em passo de passeio, ocupa 0,86m² (Neufert, Ernst); esta mesma pessoa, solitariamente dentro de um automóvel, irá ocupar 11,00m² do sistema viário. E não precisa da física para provar que, ninguém irá conseguir colocar 12 pessoas dentro de um automóvel. Para o transporte público de massa — o ônibus padrão —, considera-se 42,00m² dessa ocupação; esse irá transportar o mesmo número de passageiros sentados, que sua área. Rapidez, conforto e menos poluição do ar. A foto acima do texto, que recolhi da internet, ilustra o que seja essa ocupação das vias pelas pessoas nos diferentes tipos de modais de transportes.

Se diminuirmos os espaços das vias para os automóveis com prioridade às calçadas, ciclovias e transporte público será uma alavanca propulsora para uma mudança de conceito e quebra de uma regra viciada. Devolver ao cidadão, a cidade que vive. Em consequência, as indústrias passarão a fabricar automóveis com dimensões reduzidas, para o máximo 02 ocupantes — os smart cars. Como já ocorre em alguns países europeus. Veículos de carga também poderão ser menores. Na outra ponta, para os grandes deslocamentos, os governantes iriam colocar os seus projetos de transporte de massa nas ruas, funcionando. Mais calçadas; mais ciclovias; mais transporte de massa e automóveis menores em quantidade e tamanho. E assim voltar a respirar a vida na urbe.

Outro dia alguém me perguntou: se você defende tanto esse seu ponto de vista, por que você anda de automóvel? Não sou nenhum ativista levantando bandeira; sou um urbanista teorizando conceitos. Neste momento que escrevo essas linhas, é óbvio, ando porque não tem nada mais seguro, confiável, confortável, eficiente, prático, rápido (ainda) para se deslocar. Nem é pelo status. O dia que adotarem políticas claras de transportes na minha cidade; transferindo todos esses itens para um transporte de massa; ainda, dificultar o tráfego de automóveis e valorizar outros modais, fatalmente deixarei o automóvel na garagem, como muitos também farão. Por encontrar facilidade e dificuldade na mesma conjunção.

Os brasileiros que vão à Europa, acham chique poder se deslocar em Paris por metrô; acham maravilhoso poder alugar uma bike e sair pedalando; ficam felizes sentar em cadeiras na calçada dos bistrôs, para tomar um café e ler jornal. Outro mundo? Não, apenas mudança de método. As cidades europeias, seculares, não foram projetadas para automóveis. No entanto, menos densas, seus governantes foram buscar outros caminhos e soluções. Em Paris, a cada 400 metros tem-se uma estação de metrô.


Mapa das linhas de metrô de Paris

Para a realidade brasileira, o senso comum, daqueles que cuidam da área técnica e os gestores públicos, é as ruas sejam construídas para os automóveis em prioridade, sem ater-se com o restante que circula por elas. Vale lembrar, no sistema viário, uma pessoa dentro de um veículo moderno e novo, está mais seguro — e por isso comete mais abusos — do que a pessoa que caminha pela calçada. Essa está totalmente desprotegida e continuará, pois o senso comum herdado é do conceito: rua para o automóvel e automóvel para a rua.

A indústria automobilística, a indústria do petróleo, a especulação imobiliária; são muitas as forças ocultas  interessadas em ganhar com o caos urbano. Esses tomaram as cidades das mãos do poder público; tudo em troca do progresso (urgh!). Do outro lado, o morador/consumidor é voraz e débil. Em tudo está o dinheiro, que Ford dizia ser inútil e não interessar. O resultado é uma qualidade de vida descendo ladeira.

Ford foi um inovador em fabricar automóveis em série, pensando na humanidade. Queria o bem das pessoas. Nunca imaginou que o futuro reservaria muitos enleios: das cidades, das ruas, da urbanização sem planejamento, da emissão de gases, do meio ambiente, dos congestionamentos... Não imaginou os caminhos e rumos tortos que seu invento alcançaria. Ele sabia muito dos automóveis, pena que não entendia nada de ruas.

Quando penso em ir à praia no verão e imagino as estradas lotadas, com as cidades praianas mais ainda, reflito: como deveria ser bom o tempo das carruagens, a praia parecia mais perto, de tão gostoso que era viver.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.