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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O tempo que é tudo

Andar pela rua faz bem. E andar por aí, despretensiosamente e sem rumo, me faz pensar na vida, no big bang, em gêneses e apocalipse, nos homens, nas guerras, na globalização; faz pensar em mim... Buzinas, sons, luzes, cartazes, gente nesse vai-e-vem, entregue em sua catatonia; mergulhada em seu tédio e melancolia sem fim. Uns cruzam meus olhos; outros me tentam ultrapassar com o celular no ouvido. Onde vão parar? Quanto tempo eles terão? A cidade me devora, lembrei-me de uma canção... Andar agora me faz mal, com os porquês que me entopem.

Por um instante, eu só queria ser servido desse entendimento. Eu, como os outros que estão desse lado da vida, não pedi para estar aqui. Vim porque vim; vim sem convite; vim porque a vida deve ser missionária, talvez; vim porque todos têm que passar por aqui — o caminho. Vim de um gene contrário; não como animal ou inseto, mas com um cérebro evoluído. Seja esta a grande angústia e viver a se inquirir. Cá estou e onde está Deus que não vejo? Em tudo que zunia, fui pensar no tempo que temos; no tempo que nos resta. As horas passam; e os segundos, nem se fala...

Tente resumir sua vida em um dia. Você nasce à zero hora e morrerá 24 horas depois. Uma vida de mosca doméstica (elas vivem um pouco mais). Foi o tempo que lhe deu o Criador: somente 24 horas para viver como Ser Humano. O que fará com seu tempo? Agirá da mesma forma com o tempo que pensa ter, da longevidade da morte distante? Quando o cachorro do seu vizinho começar a latir, irá pular o muro e agredi-lo? Interfonará à portaria, pois sua vizinha do andar de cima usa um aspirador de pó bem na hora da sua siesta? Brigará? Roubará? Corromperá? Matará? Mentirá? Fará maldade, ou usará o seu mísero tempo para fazer o que pode ser melhor para você e os que te cercam? Lembre-se, você só tem poucas horas. Talvez fosse melhor ter um cérebro de mosca ou não pensar no fim tão próximo.

O tempo é o causador de tudo que fazemos com nossa vida; achamos controle sobre ele e não temos, na verdade, nenhum; achamos que somos indestrutíveis e iremos sair ilesos pela porta dos fundos, também não somos; achamos que chegaremos à velhice, como bônus da vida, e teremos tempo antes para dizer: perdão pela vida mundana que muitas vezes vivi. A morte parece distante, longe do nosso ideal de vida. Não penso nela, pois é melhor ver o amanhecer a me encher de esperança, do que me deitar com ela; então, deixo que chegue como um ladrão que me arrebata na noite escura.

Vejo, por exemplo, os jovens que morrem em acidentes de trânsito. Morrem porque veem a morte muito distante da aurora da vida; morte não entra nos assuntos das rodas. Mal sabem que essa sombra vive rodeando suas vidas, como um cão faminto - dizem alguns especialistas. Veem a morte mais próxima, sim, do avô que balança em sua cadeira na varanda; já a juventude que goza de plena saúde, de músculos fabricados em academia, é uma viagem sem fim. Só não vão perguntar quantas vezes, aquele pacato velhinho, já esteve à beira do precipício; quantas vezes, ele teve que parar para pensar mais na vida e o que estava fazendo com ela. Chegou até ali porque na linha da vida desviou os perigos, no tempo não estava escrito: hora de morrer. Pode ser que a morte nos encontre quando nós mais a procuramos. O tempo é o causador dessa falha de circuito.

Escreveu Rubem Alves sobre a morte de Ayrton Sena: “Enganam-se os que pensam que Senna competia contra os outros. Os outros também desejavam ser heróis, todos saíram juntos, em procissão, como se numa liturgia, a desafiar a morte”. Quem busca adrenalina não quer competir com ninguém; somente há um tempo, o de vencer; tem controle e se deixou na distância de sua morte; pode encontrá-la numa curva da estrada, na entrega de sua dor, ou na pista de fórmula 1.

O grande clássico das telas nos anos oitenta, Blade Runner — O caçador de androides (1982), traz à reflexão, entre outros recados subliminares, o tempo que temos de vida. Sua trama tem como cenário uma Los Angeles de 2019; onde replicantes e seres humanos quase que se confundem nas semelhanças físicas e também nas emoções. Ao mesmo tempo, em que quatro replicantes da linhagem Nexus 6, vão atrás de seu criador com o objetivo de aumentar seu tempo de vida, um caçador implacável os persegue. Ao deparar com o seu criador (Deus), o replicante beija-lhe os lábios e o mata afundando-lhe os olhos por trás dos seus óculos; o criador negou que lhe pudesse dar mais tempo de vida. Na cena final, no terraço de um edifício, o replicante — personagem de Rutger Hauer — se agacha e sussurra suas últimas palavras: “todos esses momentos vão se perder no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. Antes, ele poupou a vida daquele seu caçador. Um filme para ser lembrando sempre.

A vida de replicantes que vivem somente quatro anos e as nossas, que poderemos viver mais, têm o mesmo mistério do tempo que nos resta e para onde iremos depois. Queremos mais do que nos foi dado. A humanidade e a ciência vivem a buscar alquimias que tentam prolongar a vida humana. É obscuro o mundo que não sabemos se existe depois. Uns dirão que é isso ou aquilo, dimensões infinitas; os de fé dirão que é a eternidade com Deus. Não importa, ninguém quer saber disso agora. Querem viver e muito, correndo atrás do tempo.

Agora meu tempo voa como um puma ligeiro no deserto escaldante; e o tempo de encerrar esta crônica já expirou alguns minutos. Hora de encerrar...

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2011.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Espírito empreendedor

Como todo usuário de computador, às vezes preciso fazer uma manutenção ou corrigir algum erro de sistema quando a máquina emperra (em Minas diz quando trem engasga). Não entendo nada, sou apenas aquele que desfruta. O profissional ao qual recorro é um rapaz novo, pouco mais de 20 anos; ele mora num bairro próximo onde eu resido. Um sujeito calmo, atencioso e que gosta de explicar nos mínimos detalhe os defeitos que encontra. Na hora, entendo o que diz, mas logo depois que começo a usar disperso.

Não faz muito tempo precisei que ele fosse até minha casa. Ele marcou um horário e chegou numa pontualidade britânica. Abriu, avaliou, arrumou e cobrou só a visita. Deixou um cartão comigo. Depois precisei dele por causa da bateria de um leitor de livro que tenho, parecia que não funcionava mais. Dessa vez levei até ele. Ele tem uma oficina simples na frente da casa onde mora; aproveitou a garagem de cinco por cinco metros para fazer seus consertos. Observei uma quantidade de computadores abertos sobre a bancada. Uma iluminação ruim, num local meio desorganizado – talvez só para mim. No período que permaneci, ele parou duas vezes para atender o celular, parece que não lhe falta serviço. Ele se transporta numa motocicleta com uma caixa na parte de trás. Deixei o aparelho e ele ficou de me retornar no sábado à tarde. Conforme prometido, ele me ligou no sábado dando uma satisfação de que não encontrara a peça, mas não iria desistir em resolver meu problema. Por sorte, o aparelho voltou a funcionar normalmente e, por hora, não precisei mais de sua ajuda. Ele não me cobrou nada. Não entrego meu computador para ninguém mais, tamanha é minha confiança em uma pessoa, no mínimo, prestativa e honesta.

Toda semana eu levo meu carro para lavar, nem que seja para aquela lavagem rápida, de tirar a poeira – só na lata. Descobri um lavador ótimo. O local fica numa avenida movimentada, mas sem publicidade, somente um banner escrito “lavador”. É um terreno enorme, onde funciona também uma garagem para caminhões. Não importa a hora que chegue lá, o proprietário sempre para de fazer o que está fazendo para me atender. Às vezes, quando está ocupado, ele chama um funcionário. A lavagem simples custa 10 reais, mas ele capricha; com um spray de óleo nas partes específicas da ferragem e tinta preta nos pneus. Depois de lavar, ele enxuga. Sempre com uma conversa boa enquanto faz o serviço. Diz que seus filhos menores o ajudam, mas prefere a escola em primeiro lugar, quer que sejam estudiosos – talvez porque não tenha estudado. Somente a menina ele não trás, acha que não é serviço de mulher. Ainda pretende instalar um trailer para vender lanches e bebidas num canto do terreno. Sempre com muita disposição, trabalho e com as ideias à frente. Ele também é jovem.

Outro dia andava por uma feira e encontrei-me com o Ivan. Chamei-o pelo nome como há 20 anos. Ele me olhou assustado debaixo daquele guarda-sol do seu carrinho de picolés. Sorriu e quis saber de onde eu o conhecia. Ele era vigia na agência bancária na qual trabalhei – faz tempo. Naquela época, ele andava numa bicicleta com uma cesta, e carregava uma caixa de isopor com salgadinhos e quitutes que sua mulher preparava. Antes de entrar para o trabalho, Ivan vendia seus salgadinhos no estacionamento do banco. Agora, o encontrei vendendo picolés em saquinho plástico, esses que chamam sacolé. Pelo tamanho da embalagem – grande – há mais picolé do que se fosse ao palito. Ele ainda me mostrou que o leite condensado está no fundo do sacolé, fazendo um dégradé com a cor amarelada do maracujá. Perguntei se era de sua fabricação, ele assentiu: “Minha mulher faz. Temos uma pequena fábrica de sorvetes e picolés. Ela faz e eu vendo”. Mesmo com a pele queimada pelo sol escaldante do dia-a-dia, alguns riscos nos cantos dos olhos, o sorriso de Ivan é o mesmo de 20 anos atrás. Ele deve amar o que faz.

Poderia parar por aqui com essa história do Ivan (me emocionei ao encontrar com ele), mas antes me veio outra lembrança. Ainda há muitos jovens – graças a Deus – dentro das escolas sonhando com um futuro, em ajudar a si e ao seu país. Querendo ser bons profissionais e inovando; buscando alternativas para uma vida sustentável e mais feliz. Vi numa matéria de um jornal local, um grupo de alunos de uma escola técnica da minha cidade, ganhou um prêmio pela criação de um reciclador automático de garrafas pet. Mesmo não os conhecendo, fiquei orgulhoso; seus pais devem ter ficado muito mais.

Bem diferente daqueles estudantes que invadiram e depredaram a reitoria de uma Universidade, só para ter o direito ao uso de drogas no Campus. Ainda bem que esses mimados são minoria; o mundo e o futuro cuidarão deles. Só valem pelo esperneio que fizeram. O espírito vencedor está mesmo nos verdadeiros homens, esses que estão na rua vendendo sacolé com sorriso no rosto.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / novembro de 2011.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Dessa vez é para sempre...


Alguns leitores já devem ter ouvido esta frase: “Dessa vez é para sempre”. Ou, “Dessa vez é pra valer”. Muito presente no vocabulário de quem está vivendo uma nova relação, como quem resolveu dar mais uma chance para antiga. As idas e vindas do amor, como assim cantou Roberto Carlos: “Eu que sempre fui tão inconstante / Te juro, meu amor / Agora é pra valer...”.

Após o desastre da relação anterior, dizem que, a melhor forma para sepultar ou pôr uma pedra em cima, é viver uma nova paixão. E sempre quando iniciamos uma nova relação, os primeiros dias são de descobertas, das qualidades infinitas, das coisas em comum; uma nova música tocará naqueles encontros ao luar, com fadas, sininhos e harpas. Estarão mesmo vivendo um momento de torpor, do sexo bom, de pernas bambas e alegria incontida. Ela foi feita para mim; nascemos um para o outro, dirão.

Os dias passam e começam a perceber que a outra pessoa vai perdendo o encantamento; que tudo que imaginou, ou projetou nela vai se desmilinguindo. Os olhos já não têm o mesmo brilho; aquele ardor se esfacela. Já não está inebriado com sua voz. Acabou a fase do encanto. Uns deixarão a relação pelo caminho e simplesmente dirão: “não deu química”. Outros irão extrair o sumo, ou na verdade, enxergar o que está por trás daquela pessoa que cruzou o seu caminho. Ela tem algo mais do que o encantamento que se perdeu nos olhos.

Receio o destino das relações, quando alguém me vem dizer que encontrou a sua cara-metade, sua alma gêmea. Fico estático esperando a próxima notícia, ou aquela frase que poderá dizer de partir para outra, pois não foi dessa vez. Os anúncios das pessoas sobre si são sempre mentirosos. Na outra ponta, tem aquela que irá dizer: “ele fuma e é um ateu convicto, mas tem um bom caráter e uma integridade impar...”. Esses têm mais chance de progredirem no amor. De cara, ela já identificou o que não gosta nele, mas percebe-se a alma, o seu lado bom de conviver. Vai extrair o sumo.

Conheço casais que estão junto mais de vinte anos e nunca se casaram; nunca passaram perto de um cartório ou de uma igreja. Simplesmente resolveram andar juntos, na mesma passada, olhando para o mesmo horizonte e sem pressa de chegar. Há outros que conheci que namoraram por anos, depois planejaram um casamento cheio de pompas, mas a relação não durou muito tempo. Não há explicação. Está certo que, há casais que se casam porque é única forma oficial de se separar, como já ouvi uma vez de uma pessoa: “eu tive de me casar com ela para conseguir-me separar. Antes ela não aceitaria...”.

Com os desfechos do primeiro e do segundo casamento, é melhor não mergulhar novamente em outro. É necessário o tempo do arrefecimento, da calmaria no peito. E por isso, acredito que o tempo da espera, o tempo do “enquanto o amor não vem” é mais importante. É quando cuidaremos de nós sem a presença de outra pessoa. Suportar a si primeiro é regra para se relacionar com alguém. E quanto tempo pode durar isso? Difícil mensurar. O tempo da secura poderá durar meses ou anos. O importante é não ter pressa e assim confundirmos tudo novamente, fazendo repetições. Esvaziar-se do sentimento anterior, da dor da mágoa. Nas condições que muitas vezes deixamos uma relação, ao atracarmos com a primeira pessoa que cruza o caminho, fatalmente não dará certo; é essencial fazer a limpeza antes. Para uma nova relação amadurecer, é preciso desistir as agruras e fazer a escolha certa; tolerar, ter paciência, compreender, resignar... Tudo irá complementar.

Enquanto ele crescia dentro da empresa, ela se apequenava nos serviços domésticos, lavando, passando, cozinhando. Ele nunca fez elogio da casa que encontrava quando chegava. Ele andava estranho nos últimos dias e ela farejava que ele tinha outra, e tinha. O divórcio veio como um relâmpago. Ele saiu de casa e foi formar uma nova família com a moça com a qual trabalhava; essa estava na segunda pós-graduação; com ele fazia cursos de línguas e se falavam o dia todo. Casaram-se e logo os filhos vieram. A ex-mulher voltou para casa da mãe; foi recomeçar a vida onde nunca havia imaginado. Saiu para o mercado de trabalho, aos 35 anos e sem experiência nenhuma. Ralou, chorou, sofreu, ganhou peso. Dos bens materiais, só lhe restou a pequena casa que hoje aluga. Trabalha num subemprego e leva marmita para almoçar. Ainda bem que não teve filhos. Da próxima vez não errarei mais, disse ela.

Muitos se lembrarão de casos análogos, com a história que acabei de narrar, ou se verão dentro dela. De mulheres que casam com maridos intelectualmente mais adiante do que ela, ou vice-versa. Daquele modelo de família patriarcal, onde homem trabalha e mulher cuida de casa, já não há mais chance de prosperar. A analogia que faço é da escada que subimos com quem está ao nosso lado. Ele enxergou na anterior, uma pessoa que não estava mais ao seu alcance, no mesmo patamar. Já a colega de trabalho, ele a percebia na mesma direção e degraus próximos da escada que subia. Depois uma atração aqui, um olhar ali, e enfim o despertar.

É preciso também ter percepção do time da relação, a hora de partir sem deixar sequelas. Ninguém tem o direito de ficar aporrinhando a vida do outro. O amor acaba, posto que é chama (já disse o poeta); e as chamas se apagam aos vendavais das janelas abertas. Felizes os que apaziguarão os ventos e ainda viverão até onde a morte os separa, mas na maioria das vezes acaba mesmo antes. Isso não há mal nenhum. Só o trabalho de recomeçar.

Lembra-se de quando a gente chegou um dia a acreditar, que tudo era para sempre? Sem saber que, o “para sempre”, sempre acaba.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / novembro de 2011.