Já se passaram 25 anos e parece que foi ontem... (Eu e essa minha sensação apocalíptica de tempo passando de pressa. E como passa...) Mas aí eu pergunto: o que nos faz lembrar 1994? Os saudosistas dirão que foi o ano do tetra campeonato do Brasil, do trágico acidente que vitimou Airton Senna ou do Plano Real. Mas quase ninguém lembrará que foi nesse ano que estreou uma das séries mais icônicas feitas para a TV, no mundo. (Os chamados sitcoms são a elevação do humor num encontro com a vida real.) Se não foi a maior produção, com certeza é a mais assistida de todos os tempos. Friends é engraçado, sensacional e atemporal.
No Brasil, a série só começou mesmo em 1996. Naquela época, os canais pagos eram de uma raridade, que só quem tinha uma antena da DirecTv podia assistir algo além da programação global. A Warner Brasil passava Friends na mesma sintonia que a TV americana. Eu, porém, só tomei conhecimento quando ela já estava acabando. (Fazia muitas coisas naquela época, menos ver TV.)
As mídias modernas e os streamings deixaram as TVs mais interativas, misturando-se com a internet, e todo mundo hoje pode ficar atualizado com tudo que rola aqui e lá fora. Inclusive com a programação dos lançamentos. Hoje, streamings como Netflix, Prime Vídeo ou de música Spotify colocaram-nos equalizados e ninguém perde mais nada. Basta pagar.
Voltando à conversa. Minha intenção nestas linhas, claro, não é descrever os personagens de Friends e nem contar curiosidades sobre a série. Há no YouTube e na internet uma vastidão de vídeos e artigos. Não serei eu mais um a contar — já contando —, por exemplo, que a moldura amarela pendurada no olho mágico na porta da Rachel/Monica era de um espelho que havia quebrado e o cenógrafo achou que ficaria bom ali. Virou logomarca, estampa de camiseta, souvenir; e ali permaneceu, por longos 10 anos.
O que me faz refletir sobre a série, e como relatei parte na crônica sobre Bridget Jones (ler aqui), é a linguagem: coloquial, comportamental, despojada e como ela separa, de forma substancial, aquela geração desta aqui, ressentidos de 2019. Aquela geração era politicamente incorreta e mais madura. Tinha um linguajar mais solto, sem advertências e óbices de intolerância. Muito diferente da linguagem de hoje, totalmente corrigida, censurada, pautada e forçando a barra para uma narrativa preconcebida.
No Brasil, isso ganhou um nome recente que pegou na internet: lacração. A postagem, as leis de governo, o discurso, a publicidade, a premiação do Oscar, os filmes de Hollywood, as novelas globais e todos os meios que tentam se comunicar através da cultura têm que lacrar na esteira do politicamente correto; vendendo diversidade para parecer legalzinho, como uma forma de corrigir possíveis falhas de comportamentos do passado. Com isso, quase tudo que se produz hoje tem um sotaque dessa narrativa chata, enfadonha e apodrecida. Foi-se o mérito, a frase marcante, a piada improvisada. Em seu lugar entrou o babaca lacrador, que para tudo ruge, corrige e "problematiza".
Como já escrevi numa postagem do Twitter, os progressistas não só querem dirigir nosso presente (apontando para o futuro), mas também se empenham em corrigir o passado. O marinheiro Popeye, por exemplo, na sua "ressignificação" (outra palavra inventada), trocou o cachimbo por um apito. Isso mesmo!, problematizaram o cachimbo de um personagem de 90 anos. Até programas nacionais, como a Escolinha do Professor Raimundo e Os Trapalhões ganharam nova linguagem politicamente correta. Ninguém gostou.
O termo politicamente correto e seu emprego é anterior a Friends, claro. Mas ganhou muito mais fôlego e espaço nos meios culturais a partir dos anos 2000. E isso pôs um freio moral, ético à dialética, orientou textos de escritores e roteiristas. Hoje ninguém consegue mais ter liberdade para criar um roteiro, um diálogo contrário à agenda progressista. Friends é marcado por essa linguagem que não veremos mais: despojada, solta, sem censura e ainda muita engraçada, até hoje.
Os seis personagens criados por Marta Kauffman e David Crane são brancos, de classe média, não-tatuados; não usam drogas, não fumam, não bebem. E por incrível que pareça, eles são heterossexuais — hoje tornou-se necessário dizer isso. Em todos os 236 episódios é possível encontrar muitas cenas, piadas sobre sexualidades com despojamentos e sem medo de uma nota pautada, com exclamação, do NYT. Faz pouco tempo vi a chamada de um artigo que dizia que Friends era homofóbico. Ri alto antes e depois que li a matéria cheia de não-me-toques e discurso politicamente correto. Gente chata, ressentida e sem sexo dá nisso.
Num episódio — difícil lembrar qual — Phoebe beija Rachel na boca. Um beijo até demorado, com muita comemoração do público presente na gravação. Havia um contexto todo ali, claro, até porque, segundo pesquisas, eles já se beijaram um ao outro em algum momento dos 10 anos. Agora, imagina o que a Folha de São Paulo diria hoje? Que havia ali um beijo lésbico; foi o primeiro da série; seriam elas bissexuais? E todo esse bla bla que só interessa a esse mundo lacrador.
Agora, tente imaginar se Friends fosse feita hoje:
RACHEL: Foi morar na república porque brigou com os pais, pois eles estavam se metendo demais na sua vida. Queria sua independência, mas vive mandando WhatsApp para o pai quando a grana acaba. Uma vez por semana, ela também leva suas roupas para a avó lavar.
PHOEBE: Feminista, tatuada, cabelo roxo, piercing no nariz e não depila. Marchou contra Trump e é a favor do islã. Anticapitalista, abortista, toca violão muito mal e canta pior ainda suas músicas sem rimas, com letras falando em empoderamento.
MONICA: Lésbica não assumida, ela tem uma paixão recolhida por Rachel e sofre muito por não ser correspondida e ter que disputar esse amor com seu irmão Ross.
ROSS: Professor de história da rede pública. Marxista até o último fio de cabelo. vive doutrinando os alunos, dizendo que Hillary sofreu um golpe e Obama é o pai dos pobres. Cabelo com coque e maconheiro.
JOEY: O negão da série (entrou pelo sistema de cota hollywoodiana). É um gay preguiçoso que usa calça apertada. Não fica em emprego e vive reclamando de discriminação e preconceito, pois acha que merecia ganhar mais que os brancos.
No Brasil, a série só começou mesmo em 1996. Naquela época, os canais pagos eram de uma raridade, que só quem tinha uma antena da DirecTv podia assistir algo além da programação global. A Warner Brasil passava Friends na mesma sintonia que a TV americana. Eu, porém, só tomei conhecimento quando ela já estava acabando. (Fazia muitas coisas naquela época, menos ver TV.)
As mídias modernas e os streamings deixaram as TVs mais interativas, misturando-se com a internet, e todo mundo hoje pode ficar atualizado com tudo que rola aqui e lá fora. Inclusive com a programação dos lançamentos. Hoje, streamings como Netflix, Prime Vídeo ou de música Spotify colocaram-nos equalizados e ninguém perde mais nada. Basta pagar.
Voltando à conversa. Minha intenção nestas linhas, claro, não é descrever os personagens de Friends e nem contar curiosidades sobre a série. Há no YouTube e na internet uma vastidão de vídeos e artigos. Não serei eu mais um a contar — já contando —, por exemplo, que a moldura amarela pendurada no olho mágico na porta da Rachel/Monica era de um espelho que havia quebrado e o cenógrafo achou que ficaria bom ali. Virou logomarca, estampa de camiseta, souvenir; e ali permaneceu, por longos 10 anos.
O que me faz refletir sobre a série, e como relatei parte na crônica sobre Bridget Jones (ler aqui), é a linguagem: coloquial, comportamental, despojada e como ela separa, de forma substancial, aquela geração desta aqui, ressentidos de 2019. Aquela geração era politicamente incorreta e mais madura. Tinha um linguajar mais solto, sem advertências e óbices de intolerância. Muito diferente da linguagem de hoje, totalmente corrigida, censurada, pautada e forçando a barra para uma narrativa preconcebida.
No Brasil, isso ganhou um nome recente que pegou na internet: lacração. A postagem, as leis de governo, o discurso, a publicidade, a premiação do Oscar, os filmes de Hollywood, as novelas globais e todos os meios que tentam se comunicar através da cultura têm que lacrar na esteira do politicamente correto; vendendo diversidade para parecer legalzinho, como uma forma de corrigir possíveis falhas de comportamentos do passado. Com isso, quase tudo que se produz hoje tem um sotaque dessa narrativa chata, enfadonha e apodrecida. Foi-se o mérito, a frase marcante, a piada improvisada. Em seu lugar entrou o babaca lacrador, que para tudo ruge, corrige e "problematiza".
Como já escrevi numa postagem do Twitter, os progressistas não só querem dirigir nosso presente (apontando para o futuro), mas também se empenham em corrigir o passado. O marinheiro Popeye, por exemplo, na sua "ressignificação" (outra palavra inventada), trocou o cachimbo por um apito. Isso mesmo!, problematizaram o cachimbo de um personagem de 90 anos. Até programas nacionais, como a Escolinha do Professor Raimundo e Os Trapalhões ganharam nova linguagem politicamente correta. Ninguém gostou.
O termo politicamente correto e seu emprego é anterior a Friends, claro. Mas ganhou muito mais fôlego e espaço nos meios culturais a partir dos anos 2000. E isso pôs um freio moral, ético à dialética, orientou textos de escritores e roteiristas. Hoje ninguém consegue mais ter liberdade para criar um roteiro, um diálogo contrário à agenda progressista. Friends é marcado por essa linguagem que não veremos mais: despojada, solta, sem censura e ainda muita engraçada, até hoje.
Os seis personagens criados por Marta Kauffman e David Crane são brancos, de classe média, não-tatuados; não usam drogas, não fumam, não bebem. E por incrível que pareça, eles são heterossexuais — hoje tornou-se necessário dizer isso. Em todos os 236 episódios é possível encontrar muitas cenas, piadas sobre sexualidades com despojamentos e sem medo de uma nota pautada, com exclamação, do NYT. Faz pouco tempo vi a chamada de um artigo que dizia que Friends era homofóbico. Ri alto antes e depois que li a matéria cheia de não-me-toques e discurso politicamente correto. Gente chata, ressentida e sem sexo dá nisso.
Num episódio — difícil lembrar qual — Phoebe beija Rachel na boca. Um beijo até demorado, com muita comemoração do público presente na gravação. Havia um contexto todo ali, claro, até porque, segundo pesquisas, eles já se beijaram um ao outro em algum momento dos 10 anos. Agora, imagina o que a Folha de São Paulo diria hoje? Que havia ali um beijo lésbico; foi o primeiro da série; seriam elas bissexuais? E todo esse bla bla que só interessa a esse mundo lacrador.
Agora, tente imaginar se Friends fosse feita hoje:
RACHEL: Foi morar na república porque brigou com os pais, pois eles estavam se metendo demais na sua vida. Queria sua independência, mas vive mandando WhatsApp para o pai quando a grana acaba. Uma vez por semana, ela também leva suas roupas para a avó lavar.
PHOEBE: Feminista, tatuada, cabelo roxo, piercing no nariz e não depila. Marchou contra Trump e é a favor do islã. Anticapitalista, abortista, toca violão muito mal e canta pior ainda suas músicas sem rimas, com letras falando em empoderamento.
MONICA: Lésbica não assumida, ela tem uma paixão recolhida por Rachel e sofre muito por não ser correspondida e ter que disputar esse amor com seu irmão Ross.
ROSS: Professor de história da rede pública. Marxista até o último fio de cabelo. vive doutrinando os alunos, dizendo que Hillary sofreu um golpe e Obama é o pai dos pobres. Cabelo com coque e maconheiro.
JOEY: O negão da série (entrou pelo sistema de cota hollywoodiana). É um gay preguiçoso que usa calça apertada. Não fica em emprego e vive reclamando de discriminação e preconceito, pois acha que merecia ganhar mais que os brancos.
CHANDLER: Mora com Joey e forma o casal da série. Vive dando chiliques e gritos histéricos quando Joey não arruma a cama onde eles dormem. Tem um pato e um galo de estimação, o que deixa nas entrelinhas se os animais dormem com eles na cama.
F.R.I.E.N.D.S - Essa foto usando canudinho plástico é considerada, hoje, uma ofensa à moral e aos bons costumes progressistas. |
Friends não deixou saudade, porque, como os Beatles, muitas gerações ainda rebobinarão a fita e repetirão como eu tenho feito. O que deixa saudade é aquela geração, de uma era que parece não existirá mais. Na cena final do 236º episódio, eles estão no apartamento já vazio e cada um dos seis deixa a chave sobre o balcão, encerrando aquele ciclo, aqueles longos 10 anos.
Ali, naquele dois cenários dos apartamento e no sofá do Central Perk, nenhum jovem de hoje seria capaz de assumir, sem medo e agruras. Por que aqueles engraçados amigos são únicos e representaram uma geração corajosa, independente, sem amarras e sem falas teleguiadas. Friends fechou um ciclo de uma época que não volta mais.
Certa vez, li um texto que brincava com uma possível viagem à lua. O que (ou quem) você levaria? A pergunta era como se você nunca mais retornasse, mas poderia levar algo. Lembro que alguém (friendmaniac) respondeu que levaria um box de DVD com todos os episódios de Friends. Na época achei curioso e hoje dou razão. Seria uma bela lembrança deste mundo.
Estou namorando um pôster na internet que tem no seu título "It´s the end of an Era" (Isto é o fim de uma Era). E acho que foi mesmo. No rodapé do pôster há um resumo, em números, do que foi Friends: 5192 minutos, 236 episódios, 138 ex-companheiros (as), 25 ocupações (empregos), 10 anos, 9 casamentos, 7 crianças, 6 pessoas, 5 cidades e 4 apartamento.
1994 é uma imagem no retrovisor de um mundo que não veremos mais. Mas Friends respira, ainda encanta e nos faz lembrar todos os dias como foi bom viver aquela geração incorreta. E se um dia quisermos voltar já sabemos o caminho.
Certa vez, li um texto que brincava com uma possível viagem à lua. O que (ou quem) você levaria? A pergunta era como se você nunca mais retornasse, mas poderia levar algo. Lembro que alguém (friendmaniac) respondeu que levaria um box de DVD com todos os episódios de Friends. Na época achei curioso e hoje dou razão. Seria uma bela lembrança deste mundo.
Estou namorando um pôster na internet que tem no seu título "It´s the end of an Era" (Isto é o fim de uma Era). E acho que foi mesmo. No rodapé do pôster há um resumo, em números, do que foi Friends: 5192 minutos, 236 episódios, 138 ex-companheiros (as), 25 ocupações (empregos), 10 anos, 9 casamentos, 7 crianças, 6 pessoas, 5 cidades e 4 apartamento.
1994 é uma imagem no retrovisor de um mundo que não veremos mais. Mas Friends respira, ainda encanta e nos faz lembrar todos os dias como foi bom viver aquela geração incorreta. E se um dia quisermos voltar já sabemos o caminho.
(Ah! Na minha opinião, dos friends quem eu mais gosto é de Rachel — linda! — e o mais engraçado é Chandler.)
© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / outubro de 2019
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