SE OS nomes de Kanga Akale, Cha Jong-Hyok e Martin Skrtel não dizem nada para você, sorte sua. Pelo que leio na internet, esses jogadores de futebol estão tirando o sono de quem coleciona o álbum de figurinhas da Copa do Mundo. Pertencem ao ranking dos mais difíceis de achar.
Ocorre que nada parece ser muito difícil hoje em dia. Graças à internet, os aficionados podem trocar figurinhas, comprar álbuns já completos, marcar reuniões, reclamar da situação ou vangloriar-se de seus feitos. "Ja completei 2 albumn to no tersero" [sic], informa um menino de 13 anos num blog dedicado ao tema. É pouca coisa, diante de um paulistano de 44 anos que já completou quatro álbuns e pretende chegar a dez cheios. Antes do início da Copa, naturalmente.
Todos correm contra o tempo. Houve alarme em Bauru: durante quase uma semana, interrompeu-se o fornecimento às bancas de jornal. A editora Panini, como toda poderosa empresa multinacional que se preze (a sede é na Itália), "calou-se" diante do problema, denunciam os críticos.
Surgem cotações no mercado negro, já houve um assalto espetacular e os furtos, como no meu tempo, devem ser comuns em qualquer recreio de escola. Mas é claro que, em comparação com as figurinhas de quando eu era criança, muita coisa mudou.
Este álbum de 2010 é globalizado. Não está escrito em português. A seleção da Grécia atende por Hellas, o nome que tem de fato na língua de Homero, e a histórica Sérvia é Srbija para os colecionadores. O que não constitui desculpa, é claro, para os erros de português que se multiplicam nas páginas da internet sobre o assunto.
A não ser que eu esteja muito destreinado, essas figurinhas autocolantes não facilitam a vida de quem quer ganhá-las jogando bafo. Em compensação, é um grande progresso não depender mais da velha cola branca, para nada dizer da mistura de farinha e água ou da impraticável goma arábica, da marca Camelo, que deixava minhas páginas com a consistência de uma bala de cevada -outra coisa da infância que não me traz saudades.
Não há de ser simplesmente por saudade da infância, em todo caso, que tantos marmanjos (até mesmo, devo dizer, na redação de um importante jornal paulistano) entregam-se à febre das figurinhas. Não se trata de uma doença retroativa e, sim, antecipatória. Já é a torcida pelo título mundial o que se concretiza na luta pelo álbum completinho. Importa dominar, ter ao alcance dos dedos o conjunto dos adversários possíveis.
Num arroubo de alma que só se poderia chamar de ibérico, há torcedores que fazem questão de colar de cabeça para baixo as figurinhas do selecionado argentino.
Completar o álbum é vencer todo acaso e incerteza. Obtida a vitória, começa-se outro, assim como a conquista do tetra não tira a vontade de chegar ao penta, ao hexa, que sei eu. Irremediavelmente antiquado, volto a estranhar essa necessidade (no tocante às figurinhas, porque, em matéria de futebol, prefiro ficar calado).
Nunca pensei, quando era criança, que fosse possível completar um álbum. Corria mesmo a desconfiança de que algumas figurinhas nunca tinham sido impressas. O melhor e mais precário álbum que já tive se chamava "Olé" e era desatualizadíssimo. Reunia, como todo bom time de futebol de botão, pernas-de-pau já aposentados, cenas de campeonatos peremptos e ídolos de bigodinho que, nos meus verdes anos de calça boca-de-sino e cabelo "black-power", já haviam sido esquecidos pelas multidões.
O desajuste, é verdade, mantém-se agora, mas com sinal contrário. Jogadores que supostamente participariam da Copa deste ano foram cortados, contundiram-se, e o álbum já deixou de retratar o tempo presente.
Todo colecionador, assim, corre em vão rumo ao futuro, para realizá-lo apenas como um testemunho do passado. Desfiz-me dos meus antigos álbuns de figurinhas. Se pudesse reabri-los, sem dúvida gostaria de novamente verificar que ficaram incompletos.
Ainda espero que, numa banca de jornal perdida no fim do mundo, possa achar num pacotinho aquele Mengálvio, aquele Dino Sani que me faltavam para completar a coleção. A coleção? Melhor dizer: a página. Para que o álbum, com suas lacunas irritantes e figurinhas impossíveis, não se feche jamais.
Marcelo Coelho - Folha de São Paulo - 19/05/2010
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