BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sábado, 3 de outubro de 2015

Cheguei tarde para amar. Ou: Síndrome de Scarlett


Difícil começar a escrever algo quando não se encontra um fio condutor da conversa, ao mesmo tempo em que a emoção vai aflorando, expelindo pelos poros. Seria fácil, se tudo na vida fosse como ela própria acontece: começo, meio e fim; mas, quase sempre, temos só o meio sem fim nem começo. Então, parto por algum trecho onde a ponta se solta. O amor invisível, obscurecido, adormecido e cego por razões que ele mesmo não sabe. Aquele que não acontece no seu tempo e perde o trem da história. Já passou, amadureceu fora da época de colher e sofre agora seu sumo acre.

Se não houvesse tantos amores intempestivos, o mundo seria um mar de águas calmas com manhãs ensolaradas, porque todos estariam amando na essência, no seu tempo, em sintonia do "amar e ser amado". Nem antes, nem depois, mas no mesmo segundo, como os ponteiros do Big Bang. Menos separações, menos ruínas, tragédias, desarranjos, discussões, com mais entendimento e aconchego na alma.

A sincronicidade — aprendi o seu significado por aí —, ou aquilo que dizem "o universo conspira", é a outra estrada que cruza nosso caminho, por onde surge alguém que não sabemos quem é (por ação divina? Creio.). Só se percebe com a lupa do coração. O que nos envia as pessoas na nossa vida não é só o vento a favor. Há algo, além disso. Não apague a chama que ilumina sua estrada, porque haverá escuridão com solidão lá na frente. Ela pode ser a única luz na sua vida.

Comecei a pensar sobre um tipo de pessoa que ainda existe por aí, que açoita o amor. Lembrei, então, de Scarlett O'hara. E por que lembraria da personagem de um filme da década de 1930 (no apagar das luzes daqueles anos)? É fácil entender aquilo que chamo de "Síndrome de Scarlett", porque identificamos em alguém ou em nós mesmos. Claro, ela é uma figura feminina, mas também poderia ser a de um homem.

A cena final do filme "E o Vento Levou", Rhett Butler, disse à Scarlett: "Frankly, my dear, I don't give a damn". (Francamente, minha querida, eu não dou a mínima...) A frase pronunciada, fora do contexto, pode parecer a de um homem machista, de um pulha. E era a de um machista, como são a maioria dos homens, independente da sua época. Capitão Butler era um homem viril, militar, corajoso, grosseiro e cavalheiro guardião ao mesmo tempo, mas também um grande amante. Ele amou Scarlett até o limite de sua decência. Até onde não se viu um tolo babaca, sob qualquer condição.

Quando ele percebeu que era hora de partir, ele se foi; partiu sem deixar um vestígio na mulher amada, para que ela se suportasse sozinha e se colocasse em seu lugar.  Durante o tempo da conquista e dedicação, ele fez tudo por ela. Livrou-a do perigo da guerra civil, da pobreza, da fome e lhe deu uma família, retomando seu conforto e riqueza. Aceitou não ser amado por ela, aceitou. 

O que fez Scarlett? Ela subjugou o amor, não lhe deu trela, a devida importância. Mirava um amor impossível de outro homem (Ashley), que ela também não amava. Scarlett não amou ninguém; ela só amou seu regozijo. Era infantilizada, mimada, paparicada, entojada (palavra exumada). Desejava todos os homens aos seus pés. Por essas e outras, se casou algumas vezes (três), nunca por amor. Sempre pensando em proteção ou fuga da realidade (a realidade que não vinha da guerra civil). Usava seu charme e beleza para conquistas e o choro nos momentos de  fraqueza e desespero — quando os problemas pareciam insolúveis e a beleza não dava conta. E sempre com os homens sob domínio.
Scarlett e os homens
Rhett Butler a conhecia de longe e chegou a dizer: "por que você insiste em casar com homens que não ama?". Ashley era o homem que ela sonhava, porque, no íntimo, sabia que ele não a queria. Buscava o amor impossível, justamente por que não o teria nunca. Por outro lado, tinha medo de se entregar ao homem que a amava, porque teria que amá-lo na mesma medida; depois, amadurecer, assumir família, se sentir completada e livre por esse amor. Medo, puro medo. E esse homem estava ali, disposto: Rhett Butler. O problema em Scarlett não estava na guerra e nem nas terras da fazenda que perdeu com ela (nunca mais sentirei fome!), mas o amor. Ela não o conhecia.

De 1939 pra cá, o tipo Scarlett não evoluiu. Elas ainda se topam por aí, em cada esquina. Lindas, maravilhosas, sentimentais, frívolas, mimadas e infantis (não quero dizer que tenha que ter todos os adjetivos juntos). Do outro lado, os capitães Butler também continuam a não dar mole a elas. Farpas trocadas e o amor sendo levado ao vento... 

Naquele momento de nevoeiro e despedida, Rhett Butler ainda alfinetou: "Minha querida, você é uma criança. Você acha que dizendo: 'Sinto muito', todo o passado pode ser corrigido. Aqui, pegue o lenço. Nunca, em qualquer crise de sua vida, que eu soubesse, você tinha um lenço". Ele cansou.

A história termina, pelo menos para o público, sem sabermos se Scarlett agora estava dizendo o que realmente sentia (Oh Rhett, do listen to me, I must have loved you for years, only I was such a stupid fool, I didn't know it.) ou se era mais um dos seus truques sentimentais, ao alcance de compaixão e pena. Estaria retirando do seu coração uma pedra que a impedia de dizer do seu amor? Isso não saberemos.

Em muitas ocasiões, por solidão e carência, lembramos de amar as pessoas que já não temos mais, que se desgovernaram por outros estreitos. Não por escolhas, mas por que deixamos ir, lhe demos distância e liberdade achando que um dia voltariam. E não voltam. Quase sempre, nesses casos, o arrependimento é a faca que apunhala no peito, deixando marcas profundas. É precioso amar o quanto antes, quando ainda há tempo e sincronismo. Quando o amor está vivo, pulsante e pode olhar nos olhos. Quando o amor é a nossa casa de acolhida.

Eu sei o que é chegar depois e não encontrar ninguém — quando o trem já partiu. Quem é que nunca se arrependeu de um amor que escapou por entre os dedos? Aquele que viu passar, como um cometa que se desintegrou na escuridão do universo.

O amor chegou tarde quando eu estava de malas prontas e partia para outra estação. Cheguei tarde para amar e não havia mais nada de nós ali. Só uma poça d'água; só um resto de você.

(You think that by saying, 'I'm sorry', all the past can be corrected. Very difficult to believe now...)

E.T: Fui alertado por uma postagem no Facebook — talvez seja a palavra que não encontrei — sobre a palavra que mais define Scarlett: Histriônica. Ela queria ser o centro de todas as atenções, mais relevante que a própria guerra que passava na sua janela e sobre sua vida. Nunca mais esquecerei: HISTRIÔNICA.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Outubro de 2015

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Bonjour Paris


Antes que me escape da memória, e termine esse dia, despertei com saudade de uma viagem. Há pouco mais de dois anos fui conhecer Paris. E já digo, sem pestanejar por nenhum lamento: em cinco dias, não dá para pisar todas as suas pedras; melhor, tampouco mil dias dariam para explorar todas suas rues et les boulevards e se embevecer da riqueza histórica que traz, como tragos de um bom vinho.

Mas, durante esse curto estágio, pude conhecer o que há de mais precioso e belo na "cidade luz". E aqui cabe uma explicação: Voltaire, Rousseau, René Descartes, Diderot, todos esses filósofos pensadores ficaram marcados como os iluministas (ideias de luz). Por isso, o cognome "cidade luz" ficou conhecido, mundialmente. Fui saber, então: o iluminismo surgiu no século XVIII na Europa, e tinha como filosofia o uso da razão (luz) contra as ideias ultrapassadas (trevas) e as influências culturais da igreja católica. Esses iluministas queriam maior liberdade econômica e política: liberdade, fraternidade e igualdade. Nada do que imaginava, porque a cidade era muito iluminada à noite.

Saindo da história e voltando à viagem. Pisei em Paris, junto com minha amiga de jornada, vindo de ônibus de Londres, numa viagem de oito horas (cabe outra crônica). Já passava das sete horas da manhã e aquela sensação (non sense): onde eu estou? Fomos atrás de táxi e nada. Ninguém estava disposto a nos levar do outro lado da cidade (por causa do trânsito), ou mais precisamente na zona 3 da cidade: Avenue Henri Martin, Nanterre. Mas, ninguém se perde em Paris, quando se encontra o "M". Descemos numa estação puxando nossas malas pela escada. Aí ficou fácil, encontramos o trem que nos levava para nossa hospedaria (hostess) na região de La Defense. (No terceiro dia, ficamos geograficamente craques em deslocamentos sobre trilhos.)

Levamos algumas horas até conseguir entrar naquele flat no terceiro andar de um prédio antigo (sem elevador) — como se fosse fácil encontrar algo moderno em Paris. Até que uma parisiense simpática abriu a porta e eu fui me entender com ela no meu inglês "book eight". Depois de nos mostrar nossos aposentos, desapareceu.

Fomos atrás da cidade sozinhos, olhando um letreiro aqui e ali e, como qualquer um perdido, perguntando a um transeunte qualquer. E aqui faço uma ressalva: mentira, que o parisiense é mal-educado e não fala outro idioma senão o francês. Eles são educados, sim! Onde fica o Center George Pompidou? — Perguntamos. Estava logo ali, no próximo quarteirão, quando um dia estava um oceano longe dos meus olhos.

Como já disse: pouco tempo não dá para pisar todas as pedras, como também não dá para visitar o Louvre. Um dia é impossível visitá-lo e conhecer todas as exposições; olhar profundo nos olhos daquelas figuras ilustradas. As que olhei, eu me perguntei: — O que pensava o gênio quando pintou esses olhos? Deparei com uma máxima: há mais japoneses (gente de olho puxado) tirando fotos e selfies da Madona (Mona lisa) que nas ruas de Tóquio. Isso é verdade.


Lembrei agora que me senti como um personagem de filme. Em 2005, vi um filme nacional chamado "Mais uma vez amor" com o excelente Dan Stulbach e Juliana Paes. O filme narra uma vida nada comum de um casal que passa 25 anos tentando se estabelecer juntos; se buscando um ao outro. Ele era muito pés no chão, enquanto ela voava... Numa cena, ele mostra a ela um quadro que tinha no seu quarto, da Torre Eiffel em construção. — Um dia estarei lá — disse ele. Era seu sonho conhecer a cidade. Passado alguns anos, depois de muitos desencontros, ele recebe uma carta de Lia (Juliana), com uma foto. Ela aparecia sorridente com a Torre dos sonhos dele ao fundo. Ela realizava, enquanto ele ainda sonhava.

Vou me ater à Torre Eiffel. De onde se olha a paisagem parisiense se vê a majestosa. A torre cabe em qualquer foto de onde estiver. A impressão que temos é que a cidade se reduz, para que ela se agigante. Descemos numa estação um pouco longe e com chuva caindo (como se não fosse comum: Paris = chuva) e um único guarda-chuva que comprei em Londres (vermelho e com a marca "The Beatles"). Andamos muito pela Champs Elisier até chegar. Nos passos que aproximávamos a chuva ia parando e um grande arco-íris se formou ao lado da torre. Não resisti e cliquei várias vezes: click! click!

Ali, alguns metros da torre descobrimos uma pizzaria que tinha uma cerveja em caneca de litro. Não era a pint dos pubs londrinos, mas a litre dos bares parisienses. Voltamos no dia seguinte para subir a torre, antes comer  uma deliciosa pizza, com sabor italiano. O garçom era um menino turco (pouco mais de 17 anos), que se arriscou um português conosco. Quando pedimos a conta (can you have a bill?), com um risinho no canto da boca, ele respondeu: — "a dolorosa?". Soltei uma risada, depois pensei: algum brasileiro passou por aqui e deve ter lhe ensinado também os nossos palavrões. (Brasileiros adoram ensinar os palavrões da nossa língua)

A verdade é, sai do restaurante com a bexiga cheia. Foram duas canecas de um litro. Quando deparamos com a fila quilométrica para subir a torre, eu pensei em banheiro. Não conseguia pensar na emoção. Eu só pensava: banheiro, banheiro e cachoeira. Segurei ao máximo, até na primeira parada do elevador. Não quis nem olhar nada, saí em disparada para a primeira porta que apareceu. Aliviei.

Lá do alto da da Torre Eiffel vi uma cidade encantadora, mais ainda à noite. Deslumbrei: cheguei no topo de um dos corações do mundo (o mundo tem muitos corações); pensei também naquelas cidades modernas, como Las Vegas, com outdoor e letreiros enormes piscando sem parar. Parece cansar os olhos. Paris, não. A cidade é retangular, horizontal e de cor amarela nas luzes que se sustentam nos seus postes seculares. Revigorei minhas forças.

Dois dias depois parti, sem pisar todas suas pedras, mas com a promessa íntima: Eu voltarei, e não ficará pedra sem minha sola!


© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2015

sábado, 30 de maio de 2015

Cine Palácio

Continuando minha viagem pelo tempo e espaço, através do meu DeLorean imaginário (preferindo ainda as visitas ao passado), lembrei agora das salas de cinema de antigamente (nem chegando ao mudo, mas ao falado, em technicolor); aqueles com a cara na rua e lanterninha. Aí o leitor ainda jovem vai perguntar:  — "Como assim, cinema? Era tão diferente e tão necessária crônica?". Era mais do que isso.

Os cinemas, nas cidades como a minha, eram um acontecimento, um desfile em carro alegórico; uma referência geográfica e arquitetônica; como igrejas também eram. Tinha sua feição: um prédio de estilo próprio e opulento, com fachada na calçada, bilheteria, foyer e bombonière. Havia alma em suas colunas e cheiro em seus assentos. Sem toda praticidade e rigidez do moderno: ocultos dentro dos shoppings. Para muitos, era única e verdadeira forma de engolfar a solidão. Belle époque, diriam os franceses.

Uma vez um amigo me disse: "Já reparou? Toda cidade pequena tem uma rádio clube...". Ele quis dizer que as cidades se copiam no nome das coisas, até nome de ruas e botequins... Eu acrescento: toda cidade pequena tem uma rádio clube e um cine palácio. A minha tinha os dois. Disse que tinha, porque não tem mais. A rádio incorporou outra frequência, mudando de nome como parte de um grande grupo de comunicações. O cine Palácio (se me permite o maiúsculo na palavra) virou um estacionamento. (Os automóveis ficaram mais valiosos que as películas de filmes.) E assim, todos os outros quatro que, nas décadas de 1960 e 1970, tinham também fachada para rua. Todos mudaram o uso e o valor imobiliário. Agora temos mais. São vinte salas distribuídas nos três shoppings da cidade. Todos embutidos (como recheio de bolo) e sem fachada. Não servem para apreciar, mas para entrar e assistir.

Não consigo lembrar quando foi a última vez que vi um filme nessas antigas salas — as cadeiras nem tinham estofado, era madeira rija como carteira escolar. Eu vi meus últimos filmes, em cinemascope, no cine Palácio da praça. Nas grandes estreias, as filas dobravam quarteirões, como quando passou "ET — O extraterrestre", "Tubarão" e "Grease — Nos tempos da brilhantina". Inesquecível!

Depois eu lembro, já nos meus 22 anos, ter ido ao cinema com um amigo de trabalho ver "O Exterminador do Futuro", esse já no cine Paratodos. O cinema tinha um cheiro. O que guardo da memória daqueles cinemas era aquele mesmo cheiro de porta igreja. O vertiginoso cheiro de pipoca.

Mas os cinemas tinham outra serventia ao povo do lugar. As cidades não possuíam teatro e por isso eram nos cinemas que aconteciam os eventos, como colação de grau do ginasial e outras condecorações. Que lugar poderia ter cadeiras e palco para avistar quem recebia um diploma? Por isso, entendo que os cinemas tinham palco: multifuncional. Já vi bailes acontecerem em salas de cinema. Tiraram as cadeiras e aquilo virou um salão de dança. Não haveria necessidade do palco, se fosse só projeção de película. Nenhum ator despencaria da tela para conversar com o público, como imaginou Woody Allen, em A Rosa Púrpura do Cairo.

Vou dizer da minha primeira sessão de cinema: eu ainda tinha sete anos (ou por aí), foi no cinema do meu bairro. (O Cine Santana ainda preserva o nome e a sala como era, de piso inclinado e bilheteria.) Lá, numa semana da criança, todos os alunos da minha escola foram ver "Tom e Jerry". Entrei com a sessão começando e um barulho insuportável de crianças, comendo e dando gargalhadas. Na escuridão, tropecei e fui me arrastando até encontrar um lugar. Foi aí que veio o moleque dentro do menino. Meti a mão no vão entre o assento e o encosto da cadeira da frente, até que um puxou o assento e sentou, esmagando meus dedos. Não era estofado, mas madeira com madeira e meus dedinhos como salsicha no meio. Foi um grito de espantar da tela "Tom e Jerry.

Depois, já mais crescido, ia sozinho ver os filmes do Mazzaropi, porque no nosso cinema só sobravam aqueles filmes já fora de cartaz e mais do que visto em outras salas — película gasta. Mas bom era o que antecedia os longas. Além dos filmes de propaganda institucional do governo militar, como as obras da Transamazônica, havia o sensacional Canal 100. Foi quando eu tive minhas primeiras inspirações pelo futebol. Aquela câmera que flutuava ao nível do campo, em câmera lenta. Era como se eu estivesse dentro do jogo.

Antes do cine Palácio, eu via cinema sentado no paralelepípedo. Explico. Todo sábado, na praça da matriz, um cinema era montado num canto daquela rua que não dava em lugar algum (somente carrinho de pipoca passava). A gente chamava de Cine Praça. Aninhávamos no chão de paralelepípedos para viajar nos filmes de cowboys e do Tarzan. Conheci quase todos os filmes de Tarzan, sendo frequentador do cinema na praça. Quando enjoávamos de ver no lado certo, íamos para trás da tela e assistíamos os filmes ao contrário, inclusive as legendas, já que sabíamos muitas películas décor.

O cinema quase acabou um dia — acho que muitas vezes o cinema quase acabou, como quiseram dizer do rádio também. Tudo acaba por culpa de algo que sucede e pensam ser melhor. Com o cinema e o rádio, a culpa era da televisão. Era, mas não foi. Que nada! O cinema resistiu pelo glamour, exuberância e se aprimorou. O Netflix, por exemplo, é uma evolução do cinema que foi parar dentro de casa, sem cheiro de pipoca.

Mas, recentemente, vi o filme "Cine Holliúdy" de 2013. Gostei muito. O filme deve ser visto com legenda, inclusive, com tantos termos e um dialeto desconhecido por nós sulistas. Você por um acaso sabe o que é "Ispilicute"? Fui pesquisar do que se tratava, e conversando com outra pessoa que também viu o filme, descobri: "Ispilicute" quer dizer bonitinha, faceira, exibida, vaidosa. Assim como "Forró" veio do "For All", o termo "Ispilicute" também  veio do inglês, e quer dizer, na raiz: She´s pretty cute.

Mas, voltando ao que ia dizer. O filme é a história de um sujeito que, junto com sua mulher e filho, resolve desbravar o sertão do ceará, passando seus filmes para a população da cidade, antes da chegada da televisão. No fundo, ele teme que a vinda da televisão ao seu "país", e principalmente no seu sertão, acabe com a magia do cinema. A verdade é, o filme ambientado em 1970, já existia muitos aparelhos de televisão por aí. O cinema, na sua rasa concepção, era insubstituível. Quem irá contar suas histórias depois? E os golpes mortais de Bruce Lee?

Voltei ao velho Palácio, do meu Bang-bang à italiana, para terminar essa viagem.  Passei na calçada em frente, outro dia, e resolvi entrar para ver. Alguém poderia achar que eu estava buscando meu carro. Não! Eu estava buscando a tela, o projetor, as cadeiras, a bilheteria, a galeria, o foyer, a bombonière, o lanterninha. Não havia mais nada. Havia ainda o piso ainda inclinado (enrugado pelas rodas dos automóveis) e as colunas agora sem alma. Olhei para a parede do fundo e imaginei. Então, parecia que brotavam de seu reboco, os fantasmas de Clark Gable, Vivien Leigh, Johnny Weissmuller, Maureen O'Sullivan, Giuliano Gemma... Eles estavam todos ali ainda — imaginei. 

O cine Palácio se desfigurou como roupa velha e desbotada que se põe depois para lustrar os móveis. Senti ali como o personagem do filme que citei acima: sem ação, abatido ao ver os cinemas fechando as portas para suas calçadas. Agora ele é só um Titanic profundo de saudade: naufragado, incrustado e enterrado no fundo mar. São memórias, entende? Tão somente memórias.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Maio de 2015

terça-feira, 26 de maio de 2015

A menina sem estrela — A cegueira


Nelson Rodrigues

Nota: Trago ao Blog, mais uma vez, o grande cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues. Neste texto, muito intimista, ele nos comove com a revelação de um das passagens mais tristes da sua vida: a filha Daniela que nascera cega. Aliás, cegueira que ele temia mais que a morte. Com vocês Nelsaço!

Já contei o pedido que me fizeram na igreja. Depois da missa, uma senhora veio me dar os pêsames. E sussurrou o apelo: — “Não escreva mais sobre velórios”. Eu não disse que sim, nem que não. A senhora passou adiante, e veio o seguinte da fila. E, depois, quando recebi o último abraço, saí para a rua. Mas aquilo continuava na minha cabeça. Não escrever mais sobre velórios, nunca mais.

Mas o que a senhora pedia era uma rigorosa impossibilidade. As nossas lembranças estão debruçadas sobre velórios e sobre cegos. E eis o que me pergunto, ainda hoje: — o que é a memória senão um pátio de milagres? Um pátio de agonias, e de gemidos, e lágrimas de pedra? No capítulo de hoje, vou falar da espanhola, a epidemia fabulosa.

Falarei também do Carnaval que se seguiu à espanhola. Esse Carnaval iria desfigurar a cidade, o seu povo, influir em nossos costumes, sentimentos, ideias, valores. Só não quero falar de cegos. Ou por outra: — vou dizer ainda uma palavra sobre minha garotinha. Terminei o capítulo anterior descendo com o dr. Abreu Fialho, o oculista que examinara os seus olhos.

Ah, me lembro da grande viagem da rua Visconde de Pira-já ao posto 6. Dr. Abreu Fialho guiava, ele mesmo, o carro; vou a seu lado, na frente. Ele fala. Estamos entrando em General Osório; mais adiante, começa Francisco Sá. As pessoas que passam são as mesmas da véspera, e de outras vésperas, e de todos os dias passados, presentes e futuros. Eu sinto a bondade contra-feita do médico, a sua compaixão não confessa, apenas insinuada. Minha vontade foi fazer-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “O senhor acredita na ressurreição de Lázaro?”.

Vou dizer a verdade, toda a verdade. Dr. Abreu Fialho, apesar de toda a cerimônia, de toda a polidez exemplar, não dava uma esperança à minha filha, não concedia uma hipótese compassiva, nada, nada. Agora vem a verdade: — eu odiei o dr. Abreu Fialho. Seu nome todo é Sílvio Abreu Fialho. Pois odiei o dr. Sílvio Abreu Fialho. Odiei o oculista que não acreditava em milagre.

Ele fora à minha casa a pedido de d. Lidinha, minha sogra. Examinara minha filha por bondade; e devia ter pena, quem não teria pena, mágoa de uma menininha cega? Quase, quase pedi: — “Dr. Abreu Fialho, quer me fazer um favor? Minta. Diga que talvez, quem sabe. Invente uma esperança, dr. Abreu Fialho!”. Mas não lhe disse nada, nem ele mentiu.

Deixou-me na porta da TV Rio. Eu estava tenso, mas calmo. Apertei-lhe a mão, agradeci a carona. E foi só. Mas minha decisão estava tomada. Eu não acreditaria na cegueira de minha filha. Não era cega. Para mim, não. Sei que certos casos são clinicamente óbvios. Mas se era óbvio o de minha filha, pior para o óbvio. Ao mesmo tempo, me preparei para uma batalha feroz com todos os oculistas do mundo.

Eles diriam (todos, todos) que minha filha é cega. Mas eu não acreditaria, jamais. Viessem todos à minha porta. Saltassem de ônibus, caminhões na minha porta. E fizessem alarido na minha porta, jurando que Daniela é cega. Eu responderia à massa ululante de especialistas: — “Mentira, mentira, quinhentas vezes mentira!”. Lembro-me de que, ao chegar em casa, à noite, Lúcia falou-me de tudo, menos da garotinha. Eu estava exausto de odiar o dr. Abreu Fialho, ou por outra: — já não o odiava mais. Olho minha mulher, sinto a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Eu sabia, ela sabia. Mas não lhe disse nada, nem ela a mim. Houve um momento em que Lúcia me perguntou: — “O que é que o dr. Abreu Fialho te disse?”. Menti: — “Aquilo mesmo”.

No dia seguinte, fomos ao dr. Paulo Filho. Minto. O dr. Paulo Filho é que veio a nós. Era amigo do dr. Cruz Lima e meu amigo. D.Lidinha o chamara. Nos braços da mãe, Daniela era infinitamente miúda. Dr. Paulo Filho pôs, em cada olho, a pequenina chama da lâmpada. Eu, ao lado, mudo. Ele acaba o exame e vai falar. Disse a sua verdade: — um olho, perdido; mas outro vivia. Pergunto: “Há esperança? Há!?”. Ele acreditava que, numa das vistas, a boa (ou melhor), a menina viesse a ter uns 20% de visão. Minha alegria morrera. Eu pensava: — “Está mentindo”. Quando se despediu, me precipitei: — “Voucom o senhor”.

Ainda no elevador, crispei minha mão no seu braço: — “Eu quero saber a verdade. Aquilo que o senhor disse é fato? Pode falar,doutor, não me esconda nada”. E repeti: — “Quero a verdade e nada mais”. Foitaxativo: — “É isso mesmo. Eu acredito que, na vista melhor, a menina venha ter uns 20% de visão”. Eu não queria mais do que os 20%. Ou até dez. Dez por cento. Se Daniela tivesse 10% de visão, numa das vistas, ela seria para mim uma nababa de luz.

Hoje, minha garotinha tem três anos e meio. Eu a carrego e vejo os seus olhos. São de um azul doce, triste e diáfano. Ainda não enxerga. Não faz mal. Direi a todos os oculistas do céu e da terra: — “Não é cega”. De vez em quando, tenho vontade de telefonar para o dr. Abreu Fialho, e contar-lhe que,por um momento, fui colhido por um surto de ódio tremendo.

Aqui, deixo de falar dos cegos. Mas antes de passar para a espanhola, quero dizer uma palavra final. O oculista que desenganar os olhos de minha filha estará fazendo como aquele menino da rua Alegre. Sim, aquele menino que furou, com o alfinete, os olhos do passarinho. Bem. Vamos pensar na espanhola.

Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos.

Era em 1918. A morte estava no ar e repito: — difusa, volatizada, atmosférica; todos a respiravam. Na minha janela, da rua Alegre, eu olhava a rua. As casas, tristes, inconsoláveis. Mais adiante, em Pereira Nunes, morava Adolpho Bloch. Teria seus dez anos, talvez. Andava perdido, pelas esquinas de Aldeia Campista, como um órfão total. Hoje, Adolpho mora num palácio; seu chão é de mármore. Vizinho do Copa, suas varandas pendem, por um lado, para a piscina; e, de outro lado, para o grande mar. Mas, em 1918, Adolpho era um menino miserável, e tão humilhado e tão ofendido.

Não, não. Estou fazendo confusão de datas. Em 1918, Adolpho ainda não estava em Pereira Nunes, nem no Brasil. Viria para cá em1922, só em 1922. Mas como eu ia dizendo: — durante toda a espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão. 

(Rodrigues, Nelson, 1912-1980. A menina sem estrela)

sábado, 9 de maio de 2015

Crônica de um joseense bêbado


Nota: Esta é uma crônica de uma noite de verão para quem tem 50 anos, ou mais, é de São José dos Campos ou morou na cidade nos idos da década de 1980. Só vai entender quem viveu.
Era para ser uma sexta-feira qualquer, mas aquele dia não podia ser em vão, porque também era meu aniversário. Prontamente, escolhi botar minha melhor beca: camisa hang ten, calça fiorucci e perfume madeirado do Boticário. Cheguei ao banco já mirando os ponteiros do mondaine, já com preguiça de dizer "bom dia":  — Chega logo fim do dia! Chega logo, porra! Que hoje eu quero ficar numa nice e tomar todas. Passa, passa...
O dia voou mesmo e meu caixa bateu. Quando registrei o ponto, às seis cravada, já sentia na saliva o regozijo etílico daquela noite. O bar mais próximo era o AMARELINHO, e para lá eu disparei. De supetão, já trombei com dois amigos de colegial num happy-hour, e ali formamos uma patota. Depois de algumas risadas com rodadas de chope, servidas pelo melhor garçom da casa, o corintiano, decidimos, por fim, iniciar uma "via sacra" pelos bares, já que estávamos no embalo. A noite era uma promessa e estava só começando; estava calor, céu estrelado, era meu aniversário, e eu me sentindo o máximo. — Vamos arrebentar a boca do balão!
Antes, faço um parêntese para descrever aqueles dois amigos de aventura. O magro era Álvaro. Ele era o "magro", porque passava fácil por debaixo da porta. O bodão (nunca lembro o nome de batismo) era um gaúcho de um metro e oitenta, bom de briga e com cara de bode. Precisa mais explicação?
Começamos pelo GIRASSOL, ali na rua do cartório. Estava já movimentado e um conjunto bom tocando MPB e clássicos do rock. Como não havia lugar para sentar, ficamos em pé na calçada e de copos secos. Cadê o garçom?
— E aí, vamos nessa no MEZON? — Sugeriu bodão.
Para lá escorregamos. Não havia tanta moçada, mas para não passar batido, tomamos alguns rabos-de-galo, Campari, Martini e hi-fi. Glut! Glut! E de lá partimos para o SOBRADO. Barzinho supimpa e com muita pitchula dando sopa. Umas keep-coolers, depois uma cuba-libre, uma olhadinha aqui e ali (buscando uma piscada), uma conversa, um cigarro, um fósforo... Conclusão, aquele ambiente estava troncho: todo mundo caçando (com olhares) e a caça não querendo se servir — pelo menos para nós três. Pulamos para outra parada.
Em frente ao parque, desopilamos no PARADA 800. Para quem curte um bar different space e agitado, era ali. Drive-in, com extensão no estacionamento do parque, para um malho mais longo e atrevido (passar a mão nos peitos). Bateu uma fome, farejei aquela pizza napolitana do PEREQUIM no ar. Pensei: — Se comer agora, minha noite já era... A maneira de engambelar a fome foi pedir um drink, acender um cigarro e chupar um halls. Aquela altura já estava enxergando um mundo colorido a minha volta (todo bêbado acha tudo lindo). A rua já estava sendo tomada por patotas e boyzinhos com suas cinquentinhas e cocotas.
Já era quase duas da matina e ainda faltavam algumas passagens: WESTERN HOUSE, POST-OFFICE, FRANGÃO e CARLITOS. Tudo sem um Engov no bolso. 
— Vamos nessa, já que mulher está difícil. E beber, isso, sim, está fácil. 
Não sei dizer, com exatidão, onde fomos primeiro, como chegamos, o que se passou e o que bebemos nessas derradeiras estações — há episódios, comprovados, que bêbado esquece mesmo! Mas, lá pelas tantas e com a cabeça cheia, uma coisa eu sustento: rachamos o bico de tudo que falávamos, víamos e imaginávamos. Misóginos perdidos numa noite de verão.
Quando completamos o prometido e todos os bares possíveis já estavam passados, liquidados, visitados e ingeridos, resolvemos fechar a noite numa discoteca, porque eu já estava dançando sozinho e sem música no meio da rua. O bodão sugeriu: 
— Quem topa a GARDEN!
O magro interferiu:
— Não, não. Eu prefiro a CIRCUS. Hic!
Já no lucro da noite, qualquer bodega era esperta e toda baranga já passava por Brooke Shields. Por fim, decidimos que não iríamos a nenhuma delas, escolhemos a NUMBER TWO, ali perto da caixa d´água. Desfilava mais brotinho.
— E se não der picas? — Perguntei.
— Vamos nessa pro "desmanche", LA CAV ou PILÃO. Arrastamos umas veinhas lá, numa nice — Interrompeu, rachando o bico, o magro.
Gargalhamos juntos e muito fácil, porque bêbado ri  à toa e de qualquer coisa tosca e idiota.
Batemos à porta com a discoteca lotada e muito brotinho, como previsto. — Tá crowd! Eu já não conseguia sentir língua e paladar; depois, enxergar, a longa distância, era quase impossível. Dançar, naquela condição, seria um vexame. Meu mundo já girava em torno de mim sem eu me movimentar: round, round round... O jeito foi beber mais. Depois de pedir meu último whisky no balcão, vi chegar do meu lado a mulher da minha vida. Morena, alta, linda, monumento, escultural... Eram tantos predicados. Onde eu andei esses anos todos que não topei esse brotinho por aí? — Me perguntei com a mão no peito. Mamado e instigado, fui logo desembestando um xaveco no seu ouvido:
— Qual o nome do broto? Você vem sempre aqui? — Mexendo o gelo no copo. 
Ela soltou um risinho e assentiu: 
— Hoje é a primeira vez que venho aqui. Meu nome é Juliana.
Não hesitei:
— Você é muito linda, mais que demais... (Ela talvez não conhecesse a música ainda).
— Obrigada. Eu sou tímida. — Disse, olhando para o lado.
Aquela boca era imantada, sedutora, farta; ela era a Sônia Braga que Dancin`Days nenhuma já viu... Uau! Foi quando o bodão me puxou num canto, me tirando daquele castelo, e com aquele sotaque de Pelotas, gritou no meu ouvido
— Tu não percebeste não, guri?!
O que ele (tão bêbado quando eu) percebeu que eu não? — Pensei comigo.
Eu, assombrado: 
— Nada, achei ela linda, só isso. Maior pitchulinha, pô!
Ele: 
— Ela é ele, cara!
Pendi a cabeça para o lado, e depois de constatar o óbvio, que meus olhos não podiam captar (ela não tinha seios), decidi que era hora de picar a mula. Arrastei-me até à portaria, fiz um cheque garranchado e despenquei porta afora. Fui bordejando até encontrar um carro que se parecesse com o meu. No trajeto, baixei na sarjeta para regurgitar um pigarro amarelo escuro, praguejando aquele travesti: — Perobo do caralho!
Quando avistei o carro, percebi que meu relógio havia sumido do pulso. Mas nem quis calcular o preju. Olhei para o carro e achei um pouco diferente, daquele que havia saído de casa. Mas, como os quatro pneus estavam lá e calibrados, abri. Bati a chave na ignição, funcionou, engatei e sai. Com a graça de Nosso Senhor, apontei na minha rua com o dia já rompendo. Estacionei o carro em frente ao portão, já imaginando a bronca do coroa. Aquela trilha sonora de galo cacarejando e cachorro latindo se misturava com o som da discoteca, que ainda zunia em meus ouvidos. Que bode me esperava? Oh meu Deus! 
No pé de pano, tirei a chave da porta do bolso e enfiei na fechadura. A chave não entrava. Insisti uma, duas, três vezes mais. Afastei e olhei a fachada, depois certifiquei o número para ver se não estava entrando em casa errada. Não estava. O número conferia, embora duvidasse da cor um pouco desgastada. Foi quando percebi alguém abrindo a porta pelo lado de dentro. Pensei: — Lá vem esporro. Quase entalei, quando um senhor crispado e de pijama listrado, que não era meu pai, abriu a porta. Ele me fitou com os olhos vermelhos de ira e adiantou:
— Está tentando invadir minha casa, senhor?
Pela primeira vez nos meus vinte anos de idade, alguém me chamou de senhor. Objetei:
— Eu moro nesta casa. É... pelo menos eu acho...
O velho crispou novamente, com o dedo em riste:
— O senhor só pode estar bêbado, porque eu moro aqui há mais de 20 anos! 
Além da dúvida "onde eu estava", me surtiu outra: "quem eu era". Naquela situação não adiantava perguntar a ele, mas a mim mesmo: — Quem sou eu? Alguém tem um espelho, por favor? E esse cachorro que não para de latir na minha cabeça?! Distanciei, olhei novamente o número da casa, os apetrechos, os adornos, o jardim, a rua... Pus a mão no queixo, mirei aquele homem, com cara de sargento de milícia, e fiz a minha derradeira pergunta:
— O senhor pode me dizer que horas são e que dia é hoje?
O velho, já querendo fechar a porta para se livrar de mim, e sem olhar o pulso, refutou:
— Seu bêbado maluco! SÃO QUASE 7 HORAS E HOJE É SÁBADO, DIA 10 DE JANEIRO DE 2015. Não sabe, não?
Arregalei os olhos, dei dois passos para trás, mais dois, atravessei o portão e falei comigo, bem baixinho:
— Acho que viajei num DeLorean, ou bebi tanto que perdi a noção do tempo. 
© Antônio de Oliveira / arquiteto urbanista cronista / Maio de 2015