Cena da série "Call the Midwife" |
O
senso comum da mobilidade urbana é que os investimentos e projetos devam ser
destinados, sempre e em primeiro lugar, ao transporte público de massa. Isso é o
que se repete nos seminários e fóruns por aí. Ninguém mais irá discordar, porque é consenso entre todos. Mas por que o poder público e
seus gestores — palavra da moda — insistem em transportes que falham? Por que
nos últimos anos vimos cidades abarrotadas de ciclovias e ciclofaixas que
viraram elefantes brancos? Investir
em ciclovias é mais barato e dá visibilidade (pensaram); transporte
público, como metrô e BRT, demanda um custo elevado e o resultado é em longo prazo. Todos
ficam invisíveis.
(Seria mais fácil apontar aqui as soluções, e não as falhas. Entretanto, os erros persistem, os grandes centros agonizam, e ninguém quer pôr o dedo na ferida.)
(Seria mais fácil apontar aqui as soluções, e não as falhas. Entretanto, os erros persistem, os grandes centros agonizam, e ninguém quer pôr o dedo na ferida.)
Confesso
que fui um entusiasta — e sem perceber o modismo — ao enxergar as bicicletas
como meio de transporte urbano. Ou: uma ramificação, um agregado do transporte
dentro das cidades. Meu torpor durou pouco e passou. Quando fui arrastado para dentro, e vendo a cidade nas suas entranhas, percebi que havia mais problemas diagnosticados por um urbanista debruçado sobre um mapa de papel. (Esses
olhares que faltam aos técnicos da área.)
Olhar a cidade tecnicamente é pensar em máquinas, soluções de engenharia e ficar só nisso. Às vezes, a cidade é acelerada, em outras vezes é mais lenta, sem aparente razão, porque, organicamente, ela pulsa; e essa respiração é, antes de tudo, social e fisiológico. E antes de qualquer receita que se dê, olhando seus arranha-céus com asfalto quente, ela já fervilha sem nenhuma ação do poder; como sinais claros das angústias, traumas, sofreguidão e carências da população que nela habita. Desigualdades, onde, de um lado, uma classe média alta vê as ciclovias como necessidades; enquanto, nas franjas da cidade, a pobreza se espalha com pessoas morrendo nos corredores de uma UBS. Esse olhar que é preciso ter sobre o tecido urbano.
Olhar a cidade tecnicamente é pensar em máquinas, soluções de engenharia e ficar só nisso. Às vezes, a cidade é acelerada, em outras vezes é mais lenta, sem aparente razão, porque, organicamente, ela pulsa; e essa respiração é, antes de tudo, social e fisiológico. E antes de qualquer receita que se dê, olhando seus arranha-céus com asfalto quente, ela já fervilha sem nenhuma ação do poder; como sinais claros das angústias, traumas, sofreguidão e carências da população que nela habita. Desigualdades, onde, de um lado, uma classe média alta vê as ciclovias como necessidades; enquanto, nas franjas da cidade, a pobreza se espalha com pessoas morrendo nos corredores de uma UBS. Esse olhar que é preciso ter sobre o tecido urbano.
Esses
dias eu deparei com uma manchete no portal G1. A matéria dizia que algumas mães da classe média carioca não têm usado mais as chamadas cadeirinhas para crianças no
automóvel. E isso tem um motivo. E não tem nada com a questão que elas resistem
à lei, ou porque a estrovenga toma muito espaço. Elas até acham necessário o
suporte. O que amedronta essas mães é a segurança de algo que não tem a ver
com a segurança no trânsito. Vem de fora, à margem da vida que se trava na
cidade.
Uma
criança presa numa cadeirinha — pensam elas — seria mais difícil retirar de
dentro do carro em caso de um assalto, por exemplo. Muitas até treinam seus
filhos como proceder diante da violência que apavora a cidade. Pensar em
modos de vida progressistas e avançados num país como o nosso é muito surreal e
chega a ser utópico. É abnegar outros fatores e não levá-los em consideração. A violência urbana não pode ser desdenhada num pais com 60 mil assassinatos/ano. Não tem como mascarar os monstros urbanos por um projeto bonitinho de uma ciclovia à beira mar. O
brasileiro, desde sempre, carece, e por isso peleja, por coisas básicas para sobrevivência nas
cidades: moradia, educação, saúde e segurança. O fator transporte vem em
segundo plano.
Quando
começou a surgir a moda das ciclovias e ciclofaixas, muitos adeptos achavam que
era só construir que a população iria aderir. (Foi o que disseram os franceses a nós.) E logo, todos veriam as maravilhas de um
mundo sobre duas rodas; depois exigiriam mais e mais ciclovias nas cidades. Pensando assim, saíram
construindo muitas ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas por aí — um dia o
ciclista irá aparecer. Tomou uma proporção gigante, que até as cidades menores
adotaram a ideia. Com isso, foi-se empurrando os carros das ruas, subtraindo
estacionamentos e prejudicando claramente a economia da cidade. Os ciclistas convocados se
recusaram e tudo ficou reduzido a grupos de ativistas. A grande urbe tem
fome e sede de outras necessidades. Inclusive de justiça.
Hoje,
essas ciclovias estão só nas cabeças desses ativistas ciclochatos, como ficou
claro durante o governo do PT em São Paulo. A população, na sua maioria, não só não
aderiu como rechaçou muitas das que foram construídas,
principalmente a da Avenida Paulista. O saldo ilusório do prefeito foi que ele
não conseguiu se reeleger. Um dos motivos foi esse: dobrar-se de joelhos aos
grupos minoritários e autoritários, que dominavam sua agenda diária, e depois ser esmagado
nas urnas pela maioria que ele não ouviu. A população estava certa.
E por
que as bicicletas não deram certo, sendo o Brasil um país tropical, abençoado
por Deus? Como falei, há um choque de culturas, desigualdades, nos grandes centros do país; é difícil enxergar a olho nu o que é e o que não é prioritário na vida na urbe. Falta emprego, moradia, segurança, cidadania, cultura, educação, respeito, igualdade. Asseguro, pois, a maioria das pessoas iria preferir andar em transportes com segurança, conforto, preço justo e rápido. Bicicleta no Brasil é sinônimo de lazer. Não tem vocação para servir de transporte. Isso é desvario, e eu afirmo.
Também no Rio de Janeiro, a prefeitura abandonou o projeto de
aluguel de bikes. Em pouco tempo de uso, os estacionamentos (bicicletários)
foram destruídos, com muitas bicicletas quebradas e sem condições de uso.
Estamos falando de um país terceiro-mundista, que ainda não adquiriu
maturidade e respeito aos bens públicos e privados. País onde a pichação
virou rotina nos grandes centros. País onde o cidadão acorda de manhã já
pensando em malandragem e como tirar proveito do outro. País onde a justiça faz, muitas vezes, injustiça ou demora a punir. Como ser civilizado,
criando programas de aluguel de bicicletas assim? Em junho último, o jornal O
Globo relatou o problema com aluguel de bicicletas na cidade do Rio de Janeiro:
“Mas não é só responsabilidade da empresa as dificuldades que os usuários estão enfrentando. A má educação também tem uma boa parcela de culpa já que, com frequência, o funcionamento do programa é interrompido devido a atos de vandalismo. Desde que a Tembici assumiu a operação do sistema, em maio, foram 260 bicicletas vandalizadas, cerca de 10% do total.”
Faz alguns anos fui a um desses seminários sobre
bicicletas, ciclovias, etc. Com certa preguiça para ouvir o blá blá costumeiro.
Já estava ficando enfadonho quando apareceu um holandês para falar (em bom português) sobre o plano cicloviário da cidade do Rio de Janeiro. O cara era engraçado, eloquente, mas sua fala desviava quando confrontava com a realidade do país e das cidades. Na verdade, os aspectos socioculturais não eram considerados. Bem, ele estava prestando consultoria e só poderia falar bem e confiar no programa que propunha.
A certa altura, ele disse que muitos problemas de transposição de bicicletas, que conflitam com grandes avenidas (Avenida Brasil, por exemplo), a solução seriam os túneis somente para bicicletas... Posicionei-me melhor na cadeira, dei uma fungada e quase levantei o braço. Depois, deixei que ele concluísse e fui embora sem fazer-lhe nenhum questionamento sobre seu brilhantismo. Eu não poderia estragar e a plateia iria me condenar por colocar óbices na sua fala tão convincente. Ele ganhou aplausos uníssonos.
No mesmo Rio, que ele falava, na praia de Botafogo, bem próximo à marina, tem um desses túneis para pedestres. A passagem atravessa sete pistas da Avenida das Nações Unidas, com 35 metros de extensão. Um dia, há muito tempo, fui atravessar por ali. Era um cheiro forte de cocô e urina impregnados no ar. (Saí de lá com ânsias de vômito.) Um dormitório de mendigos, onde o risco de assaltos, ataques e estupros era eminente. Por isso, ninguém o utilizava, e todos preferiam se arriscar atravessando as sete pistas ou andavam um pouco mais até o próximo semáforo.
Olhar sobre um mapa e não enxergar, do chão, do broto, a cidade que pulsa com suas desigualdades e problemas crônicos; onde pobreza e riqueza convivem juntos no mesmo quarteirão é fazer projetos que nunca irão sair do papel. Imagina construir mais túneis iguais a esse (!), sem antes tirar os mendigos, os drogados, trombadinhas, os marginais, os punguistas, a fome das ruas; depois, estamos falando de uma cidade cercada, sitiada por morros com toda violência oriunda do tráfico de drogas. Imagina só.
Não obstante, com esse modismo, iniciou-se também um comércio (antes não havia) de novos e caros modelos de bicicletas. E aí — estamos falando de Brasil — as bicicletas começaram a ter valor também no mercado negro. O roubo de bicicletas de luxo só aumentou. Um amigo relatou que no prédio onde ele mora, certo dia (à luz do sol), ladrões invadiram o prédio arrombando o portão da garagem e foram direto ao local onde ficavam as bicicletas. Levaram as que puderam com preferência àquelas que têm valor maior no mercado. Como elas não tem placa ou chassi são facilmente passadas para frente.
A certa altura, ele disse que muitos problemas de transposição de bicicletas, que conflitam com grandes avenidas (Avenida Brasil, por exemplo), a solução seriam os túneis somente para bicicletas... Posicionei-me melhor na cadeira, dei uma fungada e quase levantei o braço. Depois, deixei que ele concluísse e fui embora sem fazer-lhe nenhum questionamento sobre seu brilhantismo. Eu não poderia estragar e a plateia iria me condenar por colocar óbices na sua fala tão convincente. Ele ganhou aplausos uníssonos.
No mesmo Rio, que ele falava, na praia de Botafogo, bem próximo à marina, tem um desses túneis para pedestres. A passagem atravessa sete pistas da Avenida das Nações Unidas, com 35 metros de extensão. Um dia, há muito tempo, fui atravessar por ali. Era um cheiro forte de cocô e urina impregnados no ar. (Saí de lá com ânsias de vômito.) Um dormitório de mendigos, onde o risco de assaltos, ataques e estupros era eminente. Por isso, ninguém o utilizava, e todos preferiam se arriscar atravessando as sete pistas ou andavam um pouco mais até o próximo semáforo.
Olhar sobre um mapa e não enxergar, do chão, do broto, a cidade que pulsa com suas desigualdades e problemas crônicos; onde pobreza e riqueza convivem juntos no mesmo quarteirão é fazer projetos que nunca irão sair do papel. Imagina construir mais túneis iguais a esse (!), sem antes tirar os mendigos, os drogados, trombadinhas, os marginais, os punguistas, a fome das ruas; depois, estamos falando de uma cidade cercada, sitiada por morros com toda violência oriunda do tráfico de drogas. Imagina só.
Não obstante, com esse modismo, iniciou-se também um comércio (antes não havia) de novos e caros modelos de bicicletas. E aí — estamos falando de Brasil — as bicicletas começaram a ter valor também no mercado negro. O roubo de bicicletas de luxo só aumentou. Um amigo relatou que no prédio onde ele mora, certo dia (à luz do sol), ladrões invadiram o prédio arrombando o portão da garagem e foram direto ao local onde ficavam as bicicletas. Levaram as que puderam com preferência àquelas que têm valor maior no mercado. Como elas não tem placa ou chassi são facilmente passadas para frente.
Lá no Rio também — parece que as piores histórias só existem lá, mas não é perseguição, não. São aquelas que me vêm à lembrança —, em 2015, um médico foi esfaqueado e depois veio a falecer quando um menor o abordou para roubar sua bicicleta, enquanto ele pedalava no entorno à Lagoa Rodrigo de Feitas. Claro, o menor não foi punido, mas a família do médico ficará enlutada para sempre. Como tem-se dito nas redes sociais: é vida que segue. A solução dada foi uma lei para proibir o porte de armas brancas. Inacreditável!
(Os verdadeiros ciclistas, que gastam para ter uma boa bicicleta, sem modismo e ativismo, pilotam por esporte, em grupos, e não andam em ciclovias. Eles pedalam por aí, em rotas e trilhas de terra. Tudo fora do convívio urbano.)
(Os verdadeiros ciclistas, que gastam para ter uma boa bicicleta, sem modismo e ativismo, pilotam por esporte, em grupos, e não andam em ciclovias. Eles pedalam por aí, em rotas e trilhas de terra. Tudo fora do convívio urbano.)
Mas, por que essa ressurreição das bicicletas como meio de transporte? Primeiro, porque na Europa ela voltou com força e é usada como acessório dos deslocamentos. Nem precisa dizer que, bem antes, eles investiram muito em transportes de massa, deixando as ruas menos densas de automóveis. (Não adianta trazer o modelo, se não trouxermos também as pessoas. Isso também é claro.) Depois, porque virou moda mesmo nas cidades brasileiras. Coisa de político populista em consoante com essa classe média alta, chique, descolada, hipster, vegana; essa turma que só vê maravilhas, arco-íris, vantagens e não enxerga os becos escuros e violentos da cidade em sua volta.
Não há demanda, hoje, que justifique os investimentos em ciclovias. As prefeituras adeptas escondem as estatísticas, os dados, os números para não ter que se explicar depois à opinião publica o porquê do empenho em algo que tem pouco ou nenhum uso. E não dá para afirmar que esse delírio (e tara) por bicicletas é coisa de governos do PT. Tem muitos gestores públicos, de outras legendas, ainda embarcando nesse modismo desmedido.
A bicicleta como transporte deu certo (e sem ciclovias) no passado, até a década de 1960. Quando as ruas ainda não eram dominadas pelos automóveis, as bicicletas eram o meio de transporte do jornaleiro, do leiteiro, do padeiro, do florista e da parteira. Na série inglesa "Call the Midwife" (está no Netflix), ambientada no subúrbio de Londres, no final da década de 1950, mostra as parteiras montadas em bicicletas indo atender à população carente. (Vale a pena assistir. Imperdível!) Ali, ainda sem as grandes aglomerações urbanas e o fomento da indústria automobilística (que tomou depois também o terceiro mundo), a bicicleta era o jeito fácil de locomover com a vida mais lenta e menos agitada. E depois sem a conversa chata desses ciclo-ativistas.
Este é o país que precisamos considerar quando pensamos em soluções práticas de urbanismo. Um Brasil servido na bandeja da corrupção, cercado de violência por todos os lados; de instituições carcomidas e falidas; um país que teima em não dar certo como suas ciclovias. Por que será?
© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / agosto de 2017
Não há demanda, hoje, que justifique os investimentos em ciclovias. As prefeituras adeptas escondem as estatísticas, os dados, os números para não ter que se explicar depois à opinião publica o porquê do empenho em algo que tem pouco ou nenhum uso. E não dá para afirmar que esse delírio (e tara) por bicicletas é coisa de governos do PT. Tem muitos gestores públicos, de outras legendas, ainda embarcando nesse modismo desmedido.
A bicicleta como transporte deu certo (e sem ciclovias) no passado, até a década de 1960. Quando as ruas ainda não eram dominadas pelos automóveis, as bicicletas eram o meio de transporte do jornaleiro, do leiteiro, do padeiro, do florista e da parteira. Na série inglesa "Call the Midwife" (está no Netflix), ambientada no subúrbio de Londres, no final da década de 1950, mostra as parteiras montadas em bicicletas indo atender à população carente. (Vale a pena assistir. Imperdível!) Ali, ainda sem as grandes aglomerações urbanas e o fomento da indústria automobilística (que tomou depois também o terceiro mundo), a bicicleta era o jeito fácil de locomover com a vida mais lenta e menos agitada. E depois sem a conversa chata desses ciclo-ativistas.
Este é o país que precisamos considerar quando pensamos em soluções práticas de urbanismo. Um Brasil servido na bandeja da corrupção, cercado de violência por todos os lados; de instituições carcomidas e falidas; um país que teima em não dar certo como suas ciclovias. Por que será?
© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / agosto de 2017
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