Este mês foi produtivo aqui no Blog, muitas crônicas. E ainda sobrou um espacinho para uma de Nelson Rodrigues. O nome original é "Os setenta anos de Gilberto Freyre" e está no livro "O Reacionário". Mas por que essa crônica, especialmente? Outro dia, uma seguidora do Facebook perguntou sobre a origem do termo "estagiária do calcanhar sujo". A expressão surgiu nesta crônica, de 1970. O mais interessante de Nelson é que ele continua atual, porque os calcanhares sujos continuam na nossa imprensa, diariamente.
Nem sei por onde começar. Digamos que. Eis a
verdade: estou naquela situação de Carlos Drummond de Andrade ao oferecer seu
livro a Marques Rebelo. Na dedicatória, escreve o poeta nacional: “A Marques
Rebelo —sem palavras —Carlos Drummond de Andrade.” Ao que eu saiba, poesia é
uma arte de palavras. E se um poeta não as tem, poderemos talvez chamá-lo de
antipoeta. Na melhor das hipóteses: antipoeta.
Felizmente, o bom Carlos estava usando apenas um
truque de sua prudência mineira. Não queria elogiar o romancista e o conseguiu.
Eu diria que a minha situação é parecida: faltam-me palavras para começar esta
crônica. Queria escrever sobre a socialização do homem. Digo mal. Não é bem do
homem. O correto seria dizer asocialização do idiota.
Não sei se me entendem e tentarei explicar.
Antigamente, o idiota era o primeiro a saber-se idiota; e babava fisicamente na
gravata. Não andava, Como agora, em massas, unanimidades, maiorias,
assembleias etc. etc. Do berço ao túmulo, ele assumia a sua irreversível
miserabilidade de idiota. O mundo dependia de sete, oito, dez ou vinte
individualidades, fortes, criadoras, sim, individualidades que pensavam por
nós, sentiam por nós, decidiam por nós.
Embora minoritários, os melhores faziam o nosso
mundo, inventavam a nossa realidade, ditavam os nossos valores. Até que ocorre
o maior acontecimento do século XX que foi, exatamente, a socialização do
idiota. Pela primeira vez o idiota se organizava. Ele sempre fora, como
indivíduo, o grande impotente. Deixou de ser indivíduo. Impessoalizou-se;
dissolveu-se no coletivo. Aqui no Rio, cinco autores fizeram uma única peça.
Até o amor que, sempre, sempre, exigira a solidão do casal, o amor, dizia eu,
precisou socializar-se também.
Há pouco, trezentos mil jovens se juntaram numa
ilha inglesa. Trezentos mil jovens, 150 mil casais. Foi uma bacanal inédita na
história humana. Um dos beatles casou-se. Queria fazer sua noite de núpcias na
frente das câmaras e microfones. Não bastavam o noivo e a noiva. Era preciso que
cinco, seis, sete milhões de telespectadores invadissem a intimidade do casal.
Ai daquele que, num desafio suicida, tenta
individualizar-se. Vocês se lembram das greves estudantis da França. Os jovens
idiotas viravam carros, arrancavam arrancavam paralelepípedos e
incendiavam a Bolsa. E, então, o velho De Gaulle falou aos idiotas: “Eu sou a
Revolução.” Que ele fosse a Revolução, era o de menos. O que realmente
enfureceu o mundo foi o eu. Era alguém que queria ser alguém. Um dos maiores
jornalistas franceses escreveu um furibundo artigo contra aquele espantoso
orgulho. Aquele guerreiro, de esporas rutilantes e negro penacho, foi o último
eu francês. Os outros franceses são massas, assembleias, comícios, maiorias.
E há o que se finge de idiota para sobreviver.
Muitos não entendem por que professores, sociólogos, sacerdotes, cientistas
—vivem a fazer rapapés, sim, humilhantes rapapés para os lorpas e os pascácios.
Eis um mistério nada misterioso. Ou o sujeito bajula os idiotas ou não terá
onde cair morto.
Por que é que estou dizendo tudo isso? Vejamos:
outro dia, Gilberto Freyre completou setenta anos. Eu me lembrei de Hugo,
Victor Hugo. No seu septuagésimo aniversário, a França parou. Toda Paris
desfilou diante do poeta. Rosas, dálias, lírios, as flores mais inimagináveis
foram atiradas a seus pés. Naturalmente que a maioria dos manifestantes eram os
idiotas, não socializados, não organizados. Mas vejam o abismo que se cavou
entre as duas épocas. Hoje, os idiotas, instalados em sua onipotência numérica,
não concederiam ao grande homem um vago e reles bom-dia.
E assim Gilberto Freyre fez setenta anos debaixo
de um silêncio brutal. Tive o cuidado de ler os jornais. Não vi uma linha.
Minto. Vi num dos nossos jornais uma nota, espremida num canto de página. Quem
a redigiu teve vergonha de elogiar um dos homens mais inteligentes do Brasil,
em todos os tempos. Eis o que eu queria dizer: está em seríssima crise vital o
país que não reconhece seus maiores homens.
Um companheiro ia passando e eu o chamei: “Olha aqui
o que merece Gilberto Freyre.” O companheiro passou a vista e rosna este
comentário; —“Por essas e outras é que o Amazonas tem menos população do que
Madureira.”
Não é a primeira vez, nem será a última, em que
falo de Gilberto Freyre e do seu exílio. Em nosso tempo, o Brasil tem sido o
exílio do extraordinário artista. Os jornais não falam no seu nome, e vale a
pena explicar, para os menos informados, esse mistério. A festiva infiltrou-se
em toda a imprensa brasileira. Outro dia, passei num velho órgão. Enquanto
esperava um colega, vi uma estagiária, dos seus 18, 19 anos, de sandália e
calcanhar sujo. Estava lendo e titulando telegramas. Súbito, pega um dos
telegramas, amassa-o e o atira na cesta. Diz para os lados: Gilberto Freyre não
é autor que se cite.”
Aí está, num simples gesto e numa simples frase,
a Operação Cesta. Os membros da festiva fazem uma vigilância feroz. Qualquer
notícia que não convenha à esquerda vai para a cesta,
sumariamente. sumariamente. Para o leitor, que nada sabe dos bastidores
jornalísticos, pode parecer inverossímil o poder de uma estagiária de calcanhar
sujo. Inverossimilhança nenhuma. Reparem como o editorial é uma coisa e o resto
do jornal outra. A direção opina no editorial. O resto do jornal fica por conta
da infiltração comunista.
No caso de Gilberto Freyre, as esquerdas têm-lhe
ódio. Portanto, não se pinga uma palavra sobre a sua obra gigantesca. Falei no
seu exílio na própria terra. E realmente ele é muito mais notícia lá fora.
Escolham qualquer país europeu. Na Itália, França, Inglaterra, Alemanha, sua
presença intelectual é muito mais poderosa do que aqui. Sim, o estrangeiro é
muito mais sua casa do que o Brasil.
Isso só acontece num país que perdeu a sua
consciência crítica. Bem sei que a “rebelião dos idiotas” é um fenômeno
universal. Mas na Europa, nos Estados Unidos, todas reconhecem a dimensão
mundial de sua figura. Ao saudá-lo, a Universidade de Sussex proclama que,
depois de sua obra, o “Brasil tornou-se mais brasileiro”. Ao passo que, em
nossa terra, as meninas de calcanhar sujo e os barbudos da festiva querem
liquidá-lo pelo silêncio.
Tudo porque, na sua formidável solidão, não
transige com as esquerdas. E, ao mesmo tempo, quantas mediocridades têm uma
delirante cobertura promocional. Mas vejam: nos seus setenta anos, Gilberto
Freyre fez uma obra para sempre. Daqui a cinco anos, os idiotas que hoje o
negam ou, pior, que fingem esquecê-lo, vão desaparecer como se jamais tivessem
existido. Daqui a duzentos anos, Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo; e
sua figura terá a tensão, a densidade, a atualidade da presença física.
Na minha juventude, os literatos patrícios
perguntavam uns aos outros: —“Quando sai tua Guerra e paz?” E todos respondiam:
“Estou caprichando.” Mas a Guerra e paz não saía. Eu só imaginava o escândalo
que seria se, um dia, explodisse, no Brasil, uma súbita Guerra e paz. Até que,
há pouco, fui ler todo o Gilberto Freyre. Li e reli. Fiz a enorme descoberta.
Sua obra tem o movimento, a profundidade, a variedade do romance
tolstoiano.
O Globo, 28/ 3/ 1970
Postado por Antônio de Oliveira / agosto de 2017
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