BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A hora de o trem passar



Tramo ferroviário de Semmering

Enquanto ateava fogo à lareira, o bondoso corretor de imóveis narrava uma pequena história à Frances:
“Senhora, entre a Áustria e a Itália há uma parte nos Alpes chamada Semmering. É uma região de montanhas muito íngreme e alta. Assentaram os trilhos nessa parte dos Alpes para ligar Viena e Veneza. Assentaram os trilhos antes mesmo que houvesse trem para percorrer o trajeto. Construíram porque sabiam que um dia o trem chegaria”.
De Viena à Veneza são 420 quilômetros, Semmering está no meio do caminho, com suas montanhas quase intransponíveis e belas paisagens – uma estância turística. O tramo ferroviário de Semmering possui 41 quilômetros de longitude e foi declarado patrimônio da humanidade pela UNESCO, em 1998. De fato, era ousado desbravar esta região montanhosa. Aquele corretor sabia o que estava dizendo ou ele tinha boas razões para afirmar que não devemos nos preocupar com a vida e seus “porquês”; tenham sonhos e assentem os trilhos, o trem um dia vai chegar.

O universo conspira com nossos pensamentos, aspirações e ações; abrindo trincheiras, construindo pontes e caminhos. Chegará o dia em que iremos atravessar por eles e perceber que nada foi em vão, valeu ter lutado. Perguntas sem respostas, distâncias percorridas, vidas doadas — tenhamos paciência e deixemo-nos seguir. Pode ser que tudo mude no meio do caminho, mas haverá sempre uma vida a nos esperar. Apontemos o horizonte como uma seta; conheçamos bem a região, as matas e as montanhas que iremos desbravar; carreguemos chulipas nos ombros e as assentemos; depois sobre elas, os trilhos — bem fixos. Um dia chegará a hora de o trem passar.

Na minha profissão, sou encarregado em planejar. Poucos administradores públicos dão importância a essa questão; não há resultado imediato em curto prazo, há que se debruçar sobre os mapas, sonhar e acreditar. Vivemos a planejar a cidade que queremos no futuro. Aqui haverá uma ponte, um viaduto, uma estrada, uma estação, uma praça para descansar... Não sei quando, mas terá. Talvez não viva o suficiente para ver, mas gosto de imaginar as coisas longínquas, futuras. A quem servirá minhas ideias? Difícil dizer. Eu também me beneficio de um mundo onde meus antepassados também traçaram. Eles também pensaram em mim.

Vasculhando minha infância, no caminho da escola, eu avistava todos os dias uma casa exótica de três andares. Cada metro de fachada era uma miscelânea de peças estampadas — sem arquitetura. Meus coleguinhas da época, diziam que o proprietário, construía essa casa há mais de 20 anos, sozinho. Ficava curioso com o que deveria haver lá dentro; ao mesmo tempo, entender da sua paciência em assentar tijolo por tijolo. Ele não teve pressa, sabia esperar a hora, um dia entraria na casa.

No meu primeiro dia, pela janela do ônibus, via a luz do dia ser sugada pela noite que caía naquela serra de luar. Algo me sufocou, era outra cidade, era um desafio nos meus 20 e poucos anos. Pensei: hoje é só o primeiro dia de cinco anos que tenho que cumprir; viajar, aprender, recomeçar, fazer novas amizades, me relacionar; um sacrifício, como se toda a vida findasse ali. E depois? Será que vou suportar? Será compensador? É isso que quero para minha vida? Perguntas e perguntas, enquanto olhava a estrada. Na primeira aula de introdução à arquitetura, o professor também nos encurralou: Vocês querem mesmo a arquitetura, sabendo que terão que ralar muito osso para serem bem remunerados? Houve um silêncio sepulcral na sala de aula. Não me abati e enfrentei. Os cinco anos se passaram como um vendaval que se aplacou; e já faz 20 anos da minha graduação na faculdade de arquitetura. Amizades construídas, obras projetadas. Tudo passou como tudo também ficou guardado.

Há dias em que acordamos inquirindo à vida. O que estou fazendo aqui? Como vim parar nessa cidade? O que me trouxe aqui? O que farei daqui em diante? Onde me levará essa estrada? Por não encontrarmos a resposta imediata (is blowing in the wind), achamos que estamos diante de um abismo e o fim será a sua queda; e viver será a angústia pelo desconhecido, ou sua grande aventura. E com isso vem o medo de viver, de pisar. Ou devemos voltar ao ponto inicial? Não dá mais.

Há mistérios demais na vida e quase todas as respostas estão pairando no vento, como já disse Bob Dylan. Vale, então, o olhar da paciência, da esperança e da fé; compreender e aceitar os caminhos que iremos percorrer e viver sem ter muitos questionamentos quando as portas se abrem (ou se fecham). Há momentos únicos e de encontros; onde os sonhos se concretizam; onde as vidas se juntam e ruas se cruzam; a noite vira dia, o mar encontra a terra; onde os enigmas se decifram (sentem) de uma forma ou outra. Faz-se luz, onde parecia haver só o breu. Ou, como disse a mulher árabe: maktub — está tudo escrito; está tudo traçado na palma da mão, ou nas estrelas...

O que buscamos? Por que caminhamos? Se for felicidade o que ansiamos, não tenhamos dúvidas quando encontrar. Se for o amor, saibamos reconhecer suas nuances, feições e sinais. Pode ser que ele já esteja ao nosso lado, e o desprezemos. Se não soubermos o que almejamos, quando encontrar, também não reconheceremos. Não há busca sem razão. Se não soubermos o que buscamos, poderemos nos deparar também com o que deveríamos desprezar.

Semmering era um obstáculo natural e o trecho dos trilhos tinha muitas razões para existir: ligar duas cidades, dois países, duas culturas, dois povos. Não havia um sentido qualquer, desprezível. Era justificável, que se fizesse os trilhos antes da chegada dos trens. Quem planejou, foi alvissareiro, um visionário, sem medo do erro e do futuro. Na hora certa, o trem chegou e tornou aquela paisagem à vista dos olhares e contemplativa por muitos turistas. Viena se ligou à Veneza pelos trilhos das montanhas quase intransponíveis. Isso é louvável.

Ah, a história inicial do corretor de imóveis é do livro/filme “Sob o sol da Toscana” (Under the Tuscan Sun) — 2003. No filme, dá para fazer uma viagem pela Toscana, com toda sua exuberância; ainda há a graciosidade de Diane Lane. Mas, agora eu fiquei com vontade mesmo de deslizar pelos trilhos de Semmering — as montanhas. A que horas passará o trem?

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2011.

2 comentários:

Anônimo disse...

Mestre das palavras, capta o que habita em nossa alma e em letras, sílabas, palavras, constrói imagens, refaz o passado, explica o presente, insinua o futuro. Traz a vida que o se esconden o secreto do nosso coração, as lembranças, a emoção, a ilusão, a inquietação. Liberta as impressões entre espírito e alma. Como todo o nosso universo pode caber na ponta dos seus dedos, e entre cálculos, ângulos e plantas, conjura~lo? Nos parágrafos, se descortina, diante dos nossos olhos, a nossa experiência, a nossa fala, nossas reflexões, que por vezes, nem sabíamos existir, mas reconhecemos a nossa casa. Na construção de uma crônica, se resume o nosso viver.

Cizinha disse...

Ja vi o filme "algumas" vezes.....essa parte sempre me chamou a atenção.....mas hoje.....domingo.....nem 8 da manha esperando meus amigos para ir a praia....resolvi buscar no google e nas mesmas palavras que escrevi, achei seu lindo texto. Perfeito, parabens.
Ci