BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 26 de julho de 2017

O lixeiro, o escritor e a babá

Quando era um petiz, o compositor Francisco Buarque de Hollanda não aceitava o fato do lixeiro fazer um serviço tão pesado e não ganhar mais que seu pai, que sustentava 7 filhos escrevendo à máquina, dentro de um escritório, com conforto. (Ele não aceitava a vida burguesa, mas não pensava em divisão. Curioso.) Ele queria que sua babá — ele tinha uma — se casasse com o lixeiro, mas ele não ganhava o  suficiente para sustentar uma família, pagar aluguel, contas, etc. Foi o que ela se queixou.

Passados quase 70 anos, a sociedade não "evoluiu" a ponto de abolir o recolhimento de lixo de nossas vidas, tampouco fez o lixeiro ganhar mais que um escritor. O lixeiro continua tão útil quanto um escritor, um jornalista, um compositor de música, um professor, um dançarino, um operário da construção ou um filósofo. (A babá, ao contrário, é um luxo social mesmo.) Cotidianamente, o lixeiro continua a passar em frente do seu prédio na zona sul carioca, recolhendo suas garrafas vazias de vinho importado e latas de caviar — presunção.

Durante sua trajetória de vida, aquele menino, que achava o mundo injusto e desigual,  não quis saber do trabalho braçal; ele foi impelido a ser como seu pai: viver dentro do ar refrigerado, compondo músicas e sustentando seus bens e luxos (e tudo que pudesse manter seu público com o velho discurso socialista). Teve talento para criações e não para carregar peso nos ombros. Era um sonho, um desejo pueril, mas pesou em sua escolha de caminho (de mundo melhor e justo), o fato de ser pertencente a ele. Tudo muda (e faz sentido) quando o interessado e sacrificado somos nós. Não há pensamento socialista que renegue o berço.

A desvalorização, se nós podemos dizer assim, de uns em detrimento a outros é milenar e, consequentemente, lógica na escala social da história da humanidade; o que fez, por milênios, o mundo ter sido  mais escravista. O que também se diferencia as pessoas pelo intelecto, talento, expertise e não por injustiça social. A uns foi dado o talento da ideia do que fazer com as pedras; a outros foi dada a força para carregá-las, transformando as ideias do criador em algo para o sustento da vida de ambos. E assim sempre será.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2017

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