BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O avião azul


Tarso e o avião

Cronistas leem outros cronistas para poder se inspirar, ou tirar água da pedra, quando a fonte seca – dar ânimo. Não dá para viver de inspiração a todo o momento; muitas vezes vamos buscar no cotidiano, nos livros, nos filmes e na vida alheia; ou simplesmente nos deparamos com algo em nosso caminho que nos faz pensar mais profundamente na vida. Os objetos, os retratos, as lembranças, em tudo podemos encontrar almas desgarradas e assim desfragmentar as palavras ocultas. Aquelas que só o coração sabe entender.

Perdi um irmão recentemente. Foi dolorido, da lembrança da convivência e agora sem sua presença abriu-se um vazio. Algo que não se preenche com mais nada, só a saudade, ainda doída. Aquela pessoa que nos dávamos e por muitas vezes conversámos tolices cotidianas, agora partiu. Não haverá mais a conversa dos olhos; tudo virou oração.

Minha diferença de idade para ele era 08 anos. Quando era eu criança ele me levava para todos os lados que podia. Lembro-me de uma cena quando ele pediu para minha mãe deixar andar com ele num brinquedo em um parque de diversões; o brinquedo não era para minha idade, mas ele me colocaria no colo, me protegeria. Acho que minha mãe não deixou, pois não me vem a cena dele me segurando. Era caridoso, tinha alma boa, alternando entre o semblante fechado e o riso fácil quando queria.

Tive a primeira experiência de trabalho por intermédio dele. Era ele quem me pagava um pequeno salário, para manter nosso quarto de dormir arrumado e limpo - para mesada não sair de graça. Eu fazia isso todos os dias quando chegava da escola, e quando terminava ia ouvir os discos que tínhamos em casa. Todo final de mês ele me pagava uma quantia, que dava para o lanche na padaria.

Foi nesta época que ele comprou um chevette azul – outro dia me confundi e disse que era verde. Ele vivia lustrando o carro, lavando e encerando - seu primeiro patrimônio. Não sei por que, mas o carro era apelidado carinhosamente por ele de “avião”. Presumo que seja, porque não havia limites em seus rumos e viagens. Com ele íamos para roça pescar, íamos ao estádio ver jogo de futebol e para onde quisesse. Tenho uma lembrança nítida, dele lavando o carro todo final de semana em frente ao nosso portão. A lembrança desse carro me veio nesses dias após sua partida e trouxe-me aqui a saudade que descrevo nessas curtas palavras que lhe rendo. Estas que brotam do coração.

Nesses dias, ainda tragado pela dor, entre muitos abraços que recebi, veio uma frase que guardei, e de certa forma, abreviou um pouco meu sofrimento e de todos os seus queridos que ficaram: “As pessoas não morrem, elas apenas vão à nossa frente, abrindo o caminho”. O avião azul, agora encontrou o seu dono, num voo infinito, no mais longínquo céu...
(*) Para Natália, Filipe e Thiago

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2011.

Um comentário:

Thania disse...

Quando alguém que amamos parte, sempre leva um pouco de nós, mas sempre deixa um pouco de si. Podemos sentir esta existência como um perfume que exala no ar. Não tocamos, não vemos, mas sentimos e é tão real quão fugidio. Não somos mais os mesmos, não podemos ser. Agora nosso coração bate por dois. Não somos mais sós, porque em nós, habita uma saudade doida, mas também uma presença sentida. Em pequenos, doces momentos, vamos compartilhar com eles nossas histórias, nossos pensamentos, nossas lembranças. Como alguém pode ser tão presente, estando tão ausente? Toda uma vida, toda uma existência resumida nas batidas de um coração.