BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O presente de Natal


Quando decidimos reformar a casa, pedi licença à memória de meu pai — o arquiteto — e me atrevi a arranjar o projeto. Comecei e saiu. Queria ter sido mais que o arquiteto, queria ser o eterno morador da casa que meu pai construiu. Onde vivi os melhores anos da minha vida.

A arquitetura é para viver, isso já foi um conflito, agora é um conceito que carrego comigo, quando ainda sonhava com a carreira. A peleja da forma versus a função. Nossos mestres insistiam nessa polarização, que brigava um mundo belo com o necessário. Sempre pensei e me pus ao lado de que tudo tem um porquê; mesclando função com a estética: a minha arquitetura. Há que ter vida na arte para que não caia na frieza, insossa — capa de revista. Arquitetura tem alma!

Sem saber disso, meu pai foi idealizador e construtor da nossa casa. Ele, contudo, não teve um projeto discutido e aprovado; nem um par de esquadros, um escalímetro e muito menos dispunha de um Neufert para consultar antes de iniciar a sua obra. Havia, todavia, a necessidade de abrigar a família, dar guarida com alguns milheiros de tijolos de barro. Era tudo o que tinha a mão e no coração.

A casa é meu pai, ele é a casa eterna que morávamos; e somente ele a pôs de pé. O arquiteto da nossa vida. Minha irmã, não entendeu e não a culpo por isso: não ver alma por dentro do barro do tijolo. Havia pressa em retornar à velha casa e também ansiedade. Como cobrá-la a entender de arquitetura enquanto punha água para ferver, se também não sou cobrado por entender de culinária; e o máximo que aprendi sobre esta arte foi fritar um bife acebolado. Ela nunca soube quem foi Mies van der Rohe, ou quem projetou a casa da cascata foi Frank Lloyd Wright — como gomos que saem das pedras com a queda d'água. Nunca também soube, que Gaudí esculpia sua arquitetura nas formas humana e depois de pronta a desenhava: curvas sem fim.

O pedreiro também não entendeu, o pintor se esquivou. Por que o nicho na parede a revelar a parede velha, desbotada? Havia a demão da tinta, a primeira. Ela não é velha; velha é nossa dor. A cor e suas nuances me remetem ao passado: o rosa velho que meu pai pintou antes. Era a última casca de tinta, depois dela era o reboco e os tijolos de barro (sua alma). Aquela cor rosa velho era o paspatur do retrato do arquiteto construtor. Arquitetura só existe para mim se tem memória eterna. E a memória nos trás lágrimas nos olhos. A arquitetura me emociona. O pintor pintou sobre a memória com tinta branca.

Era Natal. Depois da missa do Galo, íamos para casa comer a modesta ceia preparada por minha mãe. Aquela casa pequena de parede cor rosa velho — meu pai a pôs de pé. Era raro o Natal que ele estava conosco. O trabalho, muitas vezes, o consumia até na noite de Natal. Era um preceito, pôr pão na nossa mesa. A cozinha era quente, no forno havia assados que minha mãe preparava. E a criança resistia ao sono à espera da meia noite e assim celebrar: é Natal! Depois da reza, ceávamos e conversávamos um pouco mais, para depois ir para cama. Enquanto desenrolava a conversa, com os olhos caídos de sono, eu contemplava o Menino Jesus no presépio. Era um tempo de luz incandescente e amarela, como fotografia.

Era o nascimento da esperança: como será o próximo Natal? Não havia presentes e nem árvore de bolas coloridas. Montávamos um pequeno presépio sobre a mesinha de madeira que ficava ao lado do aparelho de TV preto e branco. Os presentes vinham antes do Natal. A fábrica onde meu pai trabalhava, era o verdadeiro papai Noel que acreditávamos. Ela nos dava o único presente que ganhávamos no Natal. Nunca falhava, apesar de não poder escolher o que ganhar. Os presentes eram distribuídos conforme a idade e sexo.

Houve um Natal, porém, que o presente não veio. Meu pai adoeceu e a fábrica o afastou. Não fomos à festa de entrega e muito menos tivemos brinquedos. Esqueceram de nós. A desolação era percebida. Como um Natal sem brinquedos? Era verdade, mas não chorei (eu sentia, mas não chorava). O Natal passou sem presente. Como cobrá-lo? Aceitei calado. 
 
Alguns dias se passaram depois do Natal, e uma Kombi estacionou à nossa porta. Eu não acreditava e meus olhos brilhavam. A Kombi estava cheia de brinquedos para nós. Não que todos fossem para nós, mas havia a possibilidade de escolher um entre muitos. Até me esqueci que o Natal já havia passado. As visões que me vêm não me trazem à lembrança a cor da Kombi, se era branca, vermelha ou azul; mas de uma coisa eu não me esqueço: havia muitas bolas gigantes de plástico. Não sei qual foi o brinquedo que escolhi, não me lembro. 
 
Hoje, acredito que o serviço social da empresa, tenha sentido nossa falta no dia da entrega dos presentes e quis, assim, reparar o erro mandando aqueles brinquedos depois. Da minha cabeça, nunca mais saiu esta cena, quando a Kombi estacionou no meio da rua e o motorista perguntou pelo meu pai. Foi um dia feliz.

Acostumei-me a não ganhar muitos brinquedos na infância, e por isso me lembro dos poucos que tive. Como meu irmão escreveu em sua crônica (Você já aprendeu a descascar laranja?), nossa infância nos reservou habilidades de construir, muitas vezes, o nosso próprio brinquedo. Num aniversário — tão raro de se comemorar — eu ganhei um bumbo de plástico e com ele ensaiava uma percussão que mais atormentava do que agradava as pessoas. Lembro-me também de um caminhão basculante, de cabine vermelha e caçamba amarela — este já no Natal. Depois outro: uma mini-mesa de sinuca. 
 
Havia na minha rua, um menino que tinha muitos brinquedos em seu quarto. Brinquedo caros, diga-se. Quando era convidado, eu ia lá brincar de autorama, de forte apache e com um pião prateado gigante que, além de ter som, piscava uma luz vermelha. Eu adorava, embora soubesse que não era meu. Eu só brincava quando ele me deixava pôr a mão.

Eu já tinha 18 anos, quando meu pai partiu. Foi em 23 de dezembro de 1981. Um edema pulmonar o levou na véspera do Natal. Eu estava na sala de espera do hospital, quando o médico trouxe a notícia. Ele foi novo, quieto, sem reclamações, como sempre viveu a vida inteira. Lembro-me, que o único veículo de transporte que ele teve na vida foi uma bicicleta Hércules, que o levava e trazia do trabalho.

Já me perguntaram algumas vezes, se meu Natal passou a ser triste depois desse. Não! Nunca. As crianças estão aí preenchendo com alegria o lugar da tristeza, que às vezes insiste em brotar; e quando elas crescerem e se casarem, outras crianças virão. Crianças trazem alegria; as novenas de Natal, a esperança; a estrela de Belém nunca se apagará; e o Menino Jesus continuará na manjedoura. Como poderei ficar triste quando se anuncia o nascimento?

Para os artistas, não existem obras acabadas, elas são abandonadas por eles pelo caminho — lembrou-me um amigo. Ela foi junto com sua partida. A casa foi o presente que meu pai idealizou e ergueu com as mãos de pedreiro e alma do arquiteto que o nomeei. Ele a queria, talvez, bem mais aconchegante. Ele nos deixou assim seu presente de Natal para que um dia eu pudesse mexer e modificar a sua obra, tornando-a eterna. Com tijolos que ele mesmo assentou. Sua alma está lá. Assim, o Natal, sempre será comemorado sob o telhado que meu pai construiu.

Definitivamente, não existe Natal triste; sempre haverá o Natal, com a lembrança do baú de brinquedos que guardamos em nossa memória, em forma de saudade. FELIZ NATAL!

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / dezembro de 2010.

8 comentários:

Carlos Imoto Arquiteto disse...

Casa No Campo
Elis Regina
Composição: Zé Rodrix e Tavito
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
Meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais

Carlos Imoto Arquiteto disse...

Mies van de Rohe, Frank Lloyd Wright, Gaudí, Oscar Niemeyer, Le Corbusier são alguns ícones da arquitetura e que em meus pequenos projetos sigo alguns conceitos e idéias. Mas esta letra que postei acima, me faz sempre refletir que complicamos, inventamos demais á arquitetura. Assim como tudo na vida o mais simples é o melhor caminho. E seu mestre, seu pai soube como ningúem interpretar a arquitetura da vida, onde menos é mais.
Um grande abraço

Carlos Imoto Arquiteto disse...

http://www.youtube.com/watch?v=MRFVfRBfo6I&feature=related

Anônimo disse...

ANTONIO,MEU PRIMO, MEU AMIGO, MEU IRMÃO:
PASSAMOS POR MUITAS SITUAÇÕES "COMPLICADAS" PELA VIDA AFORA MAS, TEMOS SEMPRE A LEMBRANÇA DE ESTARMOS JUNTOS NUMA GRANDE FAMÍLIA E SUAS LEMBRANÇAS DE NATAL ESBARRAM NAS MINHAS E SINTO UM GOSTO BOM DE PAZ QUE VEM DA ALMA,DO AMOR DE DEUS QUE APRENDEMOS DA SIMPLICIDADE DE NOSSOS PAIS E QUE MOSTRAM A ETERNIDADE.
QUE BOM QUE VOCÊ É UM ARQUITETO COM ALMA E ENXERGA ALÉM DAS PAREDES, ISSO COM CERTEZA ENCHE DE ORGULHO O ARQUITETO PAI QUE CONSTRUIU SEU "NINHO"TIJOLO POR TIJOLO COM AS PRÓPRIAS MÃOS.
FELIZ E SANTO NATAL!!!
BEIJO NO CORAÇÃO,
BIA

Sandra Eliana Roos disse...

Lindo e inspirado texto, uma verdadeira declaração de amor por seu pai.

Sandra Roos

Lení Hespanhol disse...

Poxa. Antônio! Estou com meu paizinho da UTI respirando por aparelhos... e suas saudosas palavras referidas a seu pai, me fizeram simpatizar com sua lembrança do pai maravilhoso que teve, semehante ao meu, que me encheu de boa recordações ao longo da vida.... Meu melhor presente de natal esse ano, será ter meu paizinho recuperado de volta em casa...

Andrea disse...

Parabéns. Linda mensagem, transbordando de amor. Somos pessoas com pais distantes mas nunca ausentes. Vc. foi muito feliz em suas palavras e sentimentos.

Anônimo disse...

Antonio,

Tudo voltou na mémoria, como se fosse hoje, a casa pintada de rosa velho, a bicicleta e a imagem do seu pai. Que felicidade poder ter conhecido tudo isto e ter feito parte da sua história.

Parabéns pela sua mensagem.

beijos

Ednéia Renó