BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A rua onde você morava


A cidade de Liverpool foi parar no centro do mundo quando aqueles quatro garotos — na época ainda não tão cabeludos — resolveram se juntar para compor e tocar suas músicas; e anos depois serem consagrados como a melhor banda de todos os tempos. Eles saíram de lá para serem eternos em nossas vidas, na minha inclusive. Os Beatles também retribuíram com amor à cidade tudo que Liverpool lhes proporcionou. Canções brotaram em seus discos e cultuaram pessoas e lugares que ninguém jamais imaginou existirem. Lugares e caminhos por onde andaram

John Lennon escreveu na letra da canção “In my life”: “há lugares dos quais vou me lembrar por toda a minha vida...”. Já “Eleanor Rigby”, composta por Paul, ganhou uma estátua em Liverpool. A dúvida é: aquela velha senhora solitária existiu ou foi mais uma ficção imaginada na cabeça de Paul? Aquela cidade ficou definitivamente marcada para sempre na vida dos quatro e depois em nós, que, apesar de nunca termos vividos lá, ficamos herdeiros desse saudosismo, das suas memórias. Eu ainda não a conheço, mas antes ir para minha casinha no campo, vou andar por lá...

Alameda Penny Lane é uma estreita rua de Liverpool, com pouco mais de 11 metros de largura e quase 800 de extensão; localizada no subúrbio da cidade, com comércio tipicamente local, misturado entre residências de tijolos à vista com janelões tipo “bay-window”. A magia é que Penny Lane se tornou a via pública mais famosa do mundo, pois nenhuma outra ganhou versos numa canção e ficou imortalizada nos quatro cantos do planeta. O que ela tem de especial? Nada, aparentemente, mas tem um sabor doce de apego, amor e de boas lembranças de um lugar. Foi lá que Paul McCartney bebeu da fonte e descreveu em seus versos o amor por sua terra natal. Paul extraiu dela sua essência, o sumo na rigidez do seu tapete de pedra: um barbeiro chamado Bioletti, um banqueiro, um bombeiro e uma enfermeira; todos vivendo embaixo de um céu azul suburbano — assim diz a canção de Paul. John Lennon contou depois que Penny Lane não é uma rua, sim um bairro distrital e lá morou numa rua chamada Newcastle Road. Depois concluiu: “só eu morei em Penny Lane”.

Como num museu a céu aberto, há muitas visitações hoje em Penny Lane; contam que, os turistas roubavam as placas da rua para levar como suvenir. A Prefeitura não se cansava de substituí-las sempre que alguém cometia o "bom" delito. De um tempo para cá as placas foram substituídas por pinturas nos muros e nas fachadas: PENNY LANE L18. O sonho não acabou — nunca acabará — e Penny Lane será eterno ponto de partida da trajetória dos Beatles e de um amor que para sempre queremos lembrar.

Olho para dentro de mim e não tenho uma rua para chamar de Penny Lane. Todos nós temos uma rua para chamar de sua, como adotamos uma árvore, um bicho, ou um amor de infância. Lamento. Tento imaginar se a rua onde nasci e vivi merecia uma canção ou um poema. Não consigo ver algo que me chame a voltar nela com versos ricos. Nunca houve barbeiros, bombeiros morando lá, nem houve comércios e muito menos casas com janelas bay-window; mas havia algo parecido: estava embaixo de um céu azul suburbano também. Suas casas pouco mudaram e seus moradores também. Nem é minha intenção de torná-la famosa. Minha rua sempre foi modesta e hoje continua lá com seus paralelepípedos seculares — espero nunca serem trocados pelo asfalto que pune as brincadeiras de rua; a resistência daquele pavimento de pedra preserva ainda a característica de bairrismo e localidade.

Ainda lembro-me dela com seu leito de terra, jogávamos futebol e também brincávamos de queimadas — permitindo assim que meninas também brincassem. Havia passagem de carros de boi de quando em vez, algo tão incomum nos dias de hoje. Ali também era o trajeto das procissões de fé daquele povo. Fora isso não tem mais nada a contar; nem quem morava lá era tão importante assim. Havia sim, uma velha senhora que vivia sozinha numa casa de quintal imenso, e tinha como companhia muitos cachorros e outras criações como marrecos e patos. Minha rua não tinha o aspecto urbano e o romantismo de Penny Lane e Paul também nunca passou por lá.

Nas viagens que faço das minhas memórias, tento buscar e vejo agora a rua onde você morava. Talvez seja ela Penny Lane no meu imaginário; aquela que queria ter meu coração partido em mil poemas. A ela dedicaria uma canção se inspiração me viesse ardente no peito: sairiam notas em versos lindos de recordações, como em Penny Lane. Por muitos sonhos, nunca estive lá também, mas meu coração passa por ela quando em mim derrama sua saudade. Neste momento ela está aqui ao meu lado querendo viver, não vou deixá-la partir de mim. Quero chorar com ela, mesmo sem você. Sentir porções de saudade é bom, mas sentirei só dos momentos que vivi ao seu lado, naquela rua. Prometo, serão breves palavras.

Era uma alameda também suburbana, de pouca extensão, uma suave ladeira de piso de pedras brilhantes, com árvores frutíferas na calçada e casas simples sem arquiteto (simples com cadeiras na calçada...); janelas ornadas de flores com suas moças debruçadas, e nos outonos: que a vida nunca passe tão depressa... Das poucas casas, você morava na maior da rua: térrea e esparramada num terreno de quintal longínquo, como eternos campos de morangos. Do outro lado da rua, morava uma senhora que fazia doces caseiros e estendia roupas cantando madrigais que ouvia do coral da igreja; ela abrigava também sua filha, aquela que era sua melhor amiga da rua. Subiam correndo a pequena ladeira de pés descalços, pulando fogueiras de São João e amarelinhas; as brincadeiras de rua eram sua predileção até anoitecer. Na chuva, você se deliciava com o rio que corria no meio-fio. Entre sua casa e o muro, era o sol, que vergonhosamente se escondia nos fins de tarde de inverno; à noite, as estrelas se amontoavam no céu e cintilavam os telhados terra cota; e não muito longe o repicar dos sinos da matriz que despertavam os fiéis nas manhãs de domingo. É assim que meu coração me traz à rua onde você morava. E agora conduzem também os seus olhos de volta aos meus: doces lembranças.

Esta é a sua Penny Lane, a que imaginei e guardei para você no dia do seu aniversário. A sua canção. Uma rua inteira, sem saída, sem medida, sem cidade, sem rancor, sem mágoa, sem tristeza e sem fim; onde o amor habita infinito, como céus azuis e que continua a sua casa no subúrbio da minha alma. Estará para sempre nos meus ouvidos, nos meus olhos — como em Penny Lane.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2010.

2 comentários:

Unknown disse...

Anttônio, seu texto está simplesmente fantástico!!!!

A música que os Beatles fizeram é aquela que entra pelos nossos ouvidos, mas vai direto ao coração. Lá ela realiza a sua magia, lá ela se torna eterna...

Parabéns!

Aída disse...

mas, que composição bela, Antonio!
Parabéns mesmo!
Ao ler, fiquei imaginando os campos, os morangos, a típica terra SLOW! que bacana,
pudera eu ter esse dom divino de materializar através das palavras, a sensibilidade e doces lembranças!
Saúde ao poeta!