De fato, não há vida só no plano. Entre montanhas e planícies, altos e baixos, construímos nossos estreitos caminhos. Contudo, quando a idade bate à porta, junto as más lembranças dos naufrágios, aprendemos que, o importante é saber lidar com tudo isso; se conhecer, posicionar o leme e navegar sem medo: hoje eu estou bem, nada me tira do prumo...
Fico altivo, quando minha autoestima se espalha pelo dia como um raio de sol: riso fácil, encontros, amigos, piadas, chope, um bocado de bom humor – a felicidade. Já, quando estou no andar de baixo do meu intimo – faz tempo que não visito - fico mais calado, pensativo, introspectivo e observador com tudo ao redor. Sem gritos, de acordar vizinhos ou causar perturbação alheia. Espero passar, e passa.
Há 12 anos, como fazia todas as manhãs, aportei numa padaria perto da minha casa para tomar meu café. O café da manhã sempre foi sagrado no meu dia a dia. E lá, entre uma mordida no pão, um trago no café e umas olhadelas no telejornal matutino, o pensamento viajava longe e tudo que me incomodava naqueles dias vinham em gotas na minha mente – o andar debaixo. Nessa mesma manhã, adentrou de mãos dadas um casal de velhos; ou, como é correto se dizer hoje, de idosos. (Gosto de dizer velhos.) Pela quantidade de cabelos brancos que cobriam suas cabeças, as fendas profundas nos rostos e os passos lentos — como se os pés se agarrassem ao chão —, eles aparentavam ter mais de 80 (depois dessa idade, diz ser ancião). Sentaram-se ao balcão bem à minha frente. A partir daí comecei a observar seus movimentos, ou seus quase não-movimentos; velhos não chamam atenção, mas algo atiçou meus olhos naquela manhã de inverno. Desde quando chegaram não falaram nada um com o outro. Ele só dirigiu a palavra ao balconista para pedir o café, o seu e o dela. Sem perguntar nada a ela, ele disse: “café com leite, um pedaço de bolo e um suco de laranja coado”. Ali ficaram, comendo em silêncio, sem se olhar. Quando ele percebeu que ela já havia também terminado levantou-se com a comanda na mão, e ela o seguiu. Até ao caixa, ainda deu tempo de segurar na ponta dos dedos da companheira. Pagaram e foram embora no mesmo silêncio, de mãos dadas e com os pés presos no chão, de velhos que eram. A partir desse dia, passei a refletir sobre a comunicação pelo silêncio das almas perfumadas.
Meu médico, sempre me recomenda os exercícios físicos para melhor minhas taxas de colesterol; elas teimam em me acompanhar já há alguns anos. Já lhe disse que não me pertencem, mas elas insistem, e não me largam do pé (do meu sangue)... Agora, já depois de outros esforços com dieta, tenho me dedicado às caminhadas de fim de tarde — e assim sigo, chutando as doenças para longe. Quando não há companhia, vou com o fone no ouvido. Caminho, penso e observo. Recentemente, tenho visto um casal de velhos, também caminhando no mesmo parque — em sentido contrário. O caminhar também é lento — com os pés presos ao chão — e também sem dizer uma palavra. Tudo igual. Voltas, voltas e calados; ouvindo somente as batidas do coração e o gorjear dos passarinhos que se aglutinam na copa das árvores. Um silêncio incomum, pois as pessoas que caminham juntas acabam exercitando também a língua. Quando os vejo irem embora, o silêncio vai junto; já fora do parque, ela enlaça em seu braço e vão para casa. Tudo em total silêncio.
“És um senhor tão bonitoQuanto a cara do meu filhoTempo Tempo Tempo TempoVou te fazer um pedidoTempo Tempo Tempo Tempo” (Caetano Veloso)
Quando caminhamos para velhice, nossas células vão morrendo de forma acelerada, e sem nunca fazermos um funeral a elas; a cada dia enterramos milhares delas, sem saber. É como se diz: morrer aos poucos. Por causa desse falecimento amiúde, diminui a ligeireza das pernas, das mãos e os sentidos vão ficando menos aguçados: próteses, óculos de grau, aparelhos de surdez, etc. A memória longínqua permanece assaz, lembrando lugares, cores e pessoas da infância; enquanto os últimos quinze minutos são esquecidos. Onde deixei meus óculos? As únicas coisas que crescem com o envelhecimento são as orelhas e o nariz — dizem.
Mas, na senilidade, é o amor que nunca morre; torna-se célula viva que não corrói com o tempo e como chama que não se apaga. Depurado em porto seguro, o amor sobrevive às intempéries da vida como uma rocha à beira mar. Já li por várias vezes que amar é uma decisão e não um sentimento. Na senilidade decidimos pelo amor; sem abandono, sem palavras duras, sem tréguas, sem cobranças — no silêncio. Não há mais o que falar; não há mais o que alcançar; nem o que pensar, sentir, reclamar, julgar, profanar, maldizer e provar. O tempo urge. O tempo é assim, faz o amor se condensar, purificado pelo filtro da alma; criam-se ramos e raízes que se aprofundam na terra e sustentam a ponta da vida sobre os ombros já arqueados. Fala-se sem palavras, fala-se no silêncio do coração, fala-se nos olhares, fala-se nos gestos de bondade e se acolhe nos braços, quando se cai. E quando não, transpassa a morte e vai além da vida.
“As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...”. (Mário de Andrade)
Lembro, então, das flores do quintal. A polinização é um fenômeno da natureza que acontece quando as flores se reproduzem; é o transporte do pólen que fecundará formando nova espécie. O vento se encarrega de levar as sementes (o amor ao vento) para que se fecundem em outro solo e desnude outra flor igual; e outra flor fará o mesmo, infinitamente... Sem nenhuma ação humana. Assim, também precisamos de elementos naturais para fecundar o nosso amor na alma. O tempo fecunda o amor quando já não vemos mais estrada para caminhar e o corpo range; quando ninguém nos vê mais com beldade; quando ninguém mais se interessa por nós; e nem a vida nos quer mais — só o amor nos anseia. O tempo é o vento para nós, aquele que transporta o amor para a terra fértil; o tempo conduz os caminhos para que os laços eternos se estreitem. No silêncio das palavras, na quietude como broto de flor. O amor é mais bonito e precioso quando envelhecemos. Quando as almas ficam silenciosas e perfumadas.
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / fevereiro de 2011.
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