BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

domingo, 18 de março de 2012

Cerzir, coser, remendar


Pique-esconde ou esconde-esconde? Você brincava de quê? Não importa a região onde se mora ou o nome que se dá; era esta — acho que continua sendo — a brincadeira de criança mais gostosa que existia. Há algumas razões para entender: não distingue meninos e meninas; as crianças se escondem em qualquer canto e vão que encontram. E como em qualquer brincadeira de competição, a pilhéria é a vitória: venci pela minha astúcia de não ser encontrado — sente a criança. Recordo-me que havia inúmeros esconderijos dentro de casa, no quintal, ou na rua. Era atrás da porta, embaixo da cama, embaixo da escada, atrás do sofá, dentro do guarda-roupa, dentro do cesto de roupas, atrás da casa, em cima de árvore, atrás do poste de luz... O meu preferido era dentro do móvel da máquina de costurar.

Os nascidos a partir dos anos oitenta não sabem que nossas mães tinham máquina de costurar em casa. Minha mãe tinha e minha avó paterna também. Lá em casa era um móvel de madeira ocre; ao abrir a tampa superior saltava a máquina “Elgin” lá de dentro. Na porta frontal havia um nicho para guardar instrumentos, linhas e trapos. Havia um pedal que movia as polias ligadas por uma correia dentada. Havia também aquelas portáteis e pesadas, que você levava para todo lado. Essas eram movidas à mão e guardadas dentro de uma caixa de madeira com uma tampa arqueada.

Não sei dizer se bem ou mal, mas minha mãe costurava muito. Ela não costurava por cruzeiro nenhum, era só para nós. Ela sentava à tarde e costurava nossas roupas, as novas e as velhas. Às vezes eu me metia a querer aprender algo com ela, fazendo minhas máscaras e capas de zorro. Aprendi a pregar botões de tanto auxiliar minha mãe a passar a linha pela bobina e depois pelo buraco da agulha. Hoje, quando um botão cai, eu mesmo costuro — não esqueci o ofício.

Naquela época, as roupas novas não eram compradas em Shopping Center nenhum. Na maioria das vezes eram de confecção própria da máquina de costurar caseira. Até o uniforme escolar e o jaleco que usava na oficina do colégio era feito por minha mãe. Tudo era ela quem fazia. Lembro-me dos calções que usava (hoje se diz short ou bermuda), esses eram de um tecido grosseiro e resistente (brim), com um elástico na cintura e sem bolso. Bem simples para aguentar um “escorregador”, um carrinho de rolimã, ou um chão de cimento.

Quando o calção rasgava (sempre no traseiro), ela recortava um pedaço de pano de outro tecido, um pouco maior que o rasgo, e forrava por dentro; depois cerzia por fora, com a costura aparecendo. Estava remendado para rasgar de novo. A técnica é parecida como consertar câmera de ar de bicicleta. A diferença é que no cerzido, o remendo era latente e ia por dentro da roupa. Já a costura, era como uma cicatriz na pele.

Faz tempo, eu não ouço a palavra cerzir. Fui ao dicionário para ver se ainda existe. Existe sim: cer.zir (lat sarcire) vtd 1 Coser, remendar (um tecido), de modo que não se note o conserto. 2 Unir, juntar. 3 Entressachar, intercalar. Cerzir era o modo mais prático e barato em manter o que ainda dava para usar, porque o estrago não foi grande e o restante da peça estava inteiro. Fazer remendos, unir o que rasgou. Não havia estética e beleza no cerzido e sim a necessidade e a economia em não ter que comprar outro corte de pano para coser uma nova. Hoje jogamos a roupa fora, ou doamos para quem não faz questão de um rasgado. Cerzir era como levar o par de sapato ao sapateiro para colar uma meia-sola.

Lembrei-me dessas histórias outro dia, quando minha camisa rasgou na maçaneta de uma porta. Estava no trabalho e fui voando para casa trocar. Sem a infância para me proteger do vexame e dar risos, enchi-me da vergonha com a face rubra, pela camisa dilacerada. No caminho fui pensando na minha mãe e no cerzido que ela fazia. E como minha vida mudou de lá para cá. A roupa cerzida não faz mais parte de mim. Não preciso mais cerzir o que rasgou. O que fazer com ela agora? Não temos mais necessidade do remendo e a velha máquina de costurar ficou obsoleta, enferrujada, esquecida no porão da memória. E eu perdi para sempre meu esconderijo favorito.

Cerzir é resgatar. É uma forma que temos de melhor conduzir as coisas que ainda têm conserto; pessoas e roupas que têm valor e podem durar por muitos anos em nossas vidas. O que é bom não pode ser jogado fora, só porque está machucado, ferido ou rasgado. Um coração mesmo dolorido e esfolado ainda pode ser cerzido. Ele voltará a ser novo.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Cartazes de filmes

Como sabem, velharia é comigo mesmo. Cultivo as coisas antigas sem medo de ser chamado de “retrô”. Por sinal, eu até gosto... Já tentei confundir minha mente (e o coração) a querer gostar do novo, mas eu volto sempre aos objetos abandonados, por mero descuido, no buffet da sala de jantar; como já disse, dos “tesouros enterrados”.

Poucas pessoas entenderem esta frase que escrevi numa crônica de 2010. Cabe explicação. Algumas coisas são tão valiosas em nossas vidas que, acho que deveriam ficar escondidas para serem preservadas. Por isso usei o termo “enterrar”, ao invés de guardar. As histórias fictícias de piratas contam de tesouros enterrados. E quando alguém os enterra, entendo que tinha grande valor e só aquela pessoa sabia da sua existência. O que é bom deve ser enterrado para sempre. No futuro, serão como peças antigas que arqueólogos escavaram para descobrir nosso passado.

Tenho uma paixão - até ontem era contida - por cartazes de filmes (posters). De preferência pelos filmes antigos. Acho que os cartazes tinham um papel fundamental nas campanhas publicitárias, de divulgação e bilheterias, nos tempos do Cinemascope. Quando não havia tantos meios de publicidade e quase tudo se resumia aos jornais e magazines.

Há peculiaridades nesses cartazes. O segundo nome da atriz/ator/diretor era mais relevante que o primeiro e por isso se escreviam em caixa de letra maior. Outra curiosidade era “Cinemascope” (you see it without glasses!) que aparecia como um chamariz nos cartazes. Cinemascope é o que chamamos hoje de “widescreen”. Foi criado pela Twentieth Century Fox, e utilizado na produção e exibição de filmes entre 1953 até 1967.

Como não havia grandes produções a cores, era um chamariz também o “technicolor”. Neste mesmo período, os filmes em preto e branco ainda sobreviviam, embora já se fizessem os “technicolors”. A resistência de alguns diretores era porque alguns filmes em P&B escondiam imperfeições de maquiagem e cenários que o colorido expunha demais. E o público poderia perceber tais imperfeições.

Liguei a tv outro dia e pude ver ainda o final de uma entrevista (que pena!) de um ilustrador de filmes brasileiros. Nem seu nome lembro mais. Ele era ilustrador, na década de 70, de cartazes de filmes brasileiros, na época da pornochanchada, de atrizes como Vera Fisher, Nádia Lippi, Helena Ramos e Aldine Muller; aquilo que chamávamos de “sala especial”. Ele conserva muitos desses cartazes como foram desenhados e produzidos. Uma relíquia.

Reuni uma coleção de cartazes dos filmes de Marilyn Monroe (sempre ela), para mostrar como era esta arte; onde o ilustrador tinha um papel determinante na publicidade, não usando nenhum computador ou tecnologia gráfica para criá-los. A coisa nascia no papel, com pincel e guache. As ilustrações tinham a perfeição de fotografias e puxavam das silhuetas e corpos os destaques mais acentuados: pernas, bocas, mãos e gestos. Noutras eram fotos montadas, com a mesma técnica.

Adorável pecadora - 1960

Como agarrar um milinário - 1953
 
O rio das almas perdidas - 1954
 
Quanto mais quente melhor - 1959


O príncipe encantado - 1957

Os desajustados - 1961

Almas desesperadas - 1952
 
Nunca fui Santa - 1956
O pecado mora ao lado - 1955
Os homens preferem as loiras - 1954


© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Razão e sentimento

Existem algumas frases feitas que, sem percebermos, vamos propagando incontestes. Muitas delas vêm nos confortar e aliviar agruras da alma; ou nos norteiam para um novo estágio. Agarramos a elas naquele instante, como um náufrago em alto-mar agarra sua boia. Um dia, alguém na sua angústia, as criou para negativar algo dentro de si — acredito. Acordamos com aquele nó na garganta e postamos no nosso mural virtual. Aliviados, a sensação é que uma corrente negativa, que acordou conosco, foi enxotada para fora do nosso corpo.

“De hoje em diante, só vou gostar de quem gosta de mim”. Lembrei-me dessa, por acaso.

O triunfo da nossa jornada está fincado na razão. Como um pêndulo em nossas vidas: nem céu, nem terra; nem acre, nem doce; ela nos posiciona de volta ao caminho. A razão é pura sensatez; o nosso lado responsável, que nos centra no mundo com tantos sentimentos díspares. Como um equilibrista na corda, atravessando de um penhasco ao outro. Por vezes, a razão é um trem que demora chegar à estação. E quando chega, fora de hora, o estrago já foi feito, por aquele sentimento indomável. Agora, o que há de lógica quando se tem o coração a frente? Nada! Corações não pensam, não refletem, não enxergam, não sabem escolher. Corações só sentem e algumas vezes decidem também. Eis o perigo.

A frase “gostar de quem gosta de mim” nos evoca à reflexão, quando não se tem controle de nada que sentimos. Fácil de propagar; difícil de cumprir. Roberto Carlos escreveu isso em uma de suas canções mais populares “Só vou gostar de quem gosta de mim”. A frase quer dar um chute na tristeza, pôr um ponto final em tudo; mas pouco nos adianta quando ainda estamos aprisionados. Mais cedo ou mais tarde virá nos domar quando estivermos sozinhos no quarto escuro. Notadamente, o coração é como um burro empacado, que não obedece a seu dono. Ele vai onde não queremos ir, ele escolhe quem não admitiríamos, pela razão, escolher. Ele é um viajante sem destino e sem medo. O que fazer com ele? Expulsamos o do peito? Vamos dizer-lhe: não sinta isso? Ao contrário, deixamos tudo fluir... O autoconhecimento, com os dons espirituais, é a janela por onde a razão irá entrar e dar um basta à teimosia do coração.

Em geral, iremos ceder aos nossos sentimentos; iremos gostar de quem não gosta da gente, sim! Deixaremos feridas expostas por sermos tolos do coração e por deixarmos guiar por ele. Num voo cego para dentro. Na outra ponta, a razão deve estar com seus soldados a postos para qualquer emergência; ela brigará com o coração; e vencida a luta, irá nos colocar num canto de recolhimento, num silêncio necessário e com o tempo a favor. Assim, tomará a vez para decidir. Até a tormenta passar e dizer: agora pode sair, não há mais perigo algum.

Sempre alguém próximo vem nos indagar: “por que você não namora a fulana? Ela gosta de você...” (como se já houvesse consentimento do outro lado). Nunca cobrei a mesma coisa de ninguém, pois sei como é difícil mandar em quem não quer obedecer. Sei que existe esta coisa também, de alguém querendo cuidar da vida alheia, até pelo que você deve sentir. O que lhe causa incômodo não está na sua vida, mas na vida do outro. Ela pode enxergar alguma afinidade ali, mas não está dentro de você. Agora, diga isso ao seu coração. Ele não concorda com o que não sente. O que pode parecer interessante para o outro, pode ser um copo vazio para ele. Ou pelo menos naquele momento não lhe sacia. Os olhos e a mente devem, sim, estar abertos para depurar, com valor, o tamanho do sentimento que o coração escolheu. Sob o domínio da razão, o coração não mandará mais gostar de quem não nos completa. Por outro lado, também não nos fará cair na tolice de teimar gostar de quem por ele não bate.

Lá no século XIX, a sociedade ainda era assim: o pai escolhia o marido para a filha. Mesmo ela não gostando, ela era prometida àquele homem que nunca tinha visto antes. Boa reputação, boa família, trabalhador, etc. Eram esses atributos que o pai dizia. O que se chamava de “bom partido”. Em alguns lugares do mundo, ainda existem essas relações arranjadas, onde o sentimento é desprezível. Os casamentos se dão pela importância das ramificações familiares e não pelo sentimento que selou aquelas pessoas. Aquele que nasce com os olhares.

Outra coisa importante sobre sentimentos. Há um desprezo pelas amizades em troca do encalço do amor, ou de uma projeção de amor, com riscos enormes de falhar. A razão nos fará posicionar para o lado mais eficaz do convívio. Se você não pode se dar no amor àquela pessoa, deixe reinar a amizade. Amigos de verdade são para sempre. Eles não ficam cobrando a presença, mas se curtem do mesmo jeito que um casal bonitinho de mãos dadas no cinema. É fato, não havendo tais cobranças e dependências, nas amizades não existe a dor da separação. Amigos se distanciam, mas não se separam. Só extraímos o que é bom.

Com isso, volto às teses do médico psicanalista Gikovate. Com mais de 30 anos de consultório, algumas pessoas — com o olhar no passado —, ainda querem discordar do que vem dizendo. O mundo vive mudando e o modo de se relacionar também. As relações hoje estão mais próximas da amizade do que do amor romantizado e dependente. Estamos mais prontos para ter relações amorosas por concessões e parcerias do que por dependências sentimentais. E isso é um caminho sem volta. Homens e mulheres estão disputando espaço no mercado de trabalho e quando se juntam para uma relação (por amor), ela é uma progressão do ambiente do qual eles agora compartilham. Ninguém está submisso ao outro; e ninguém manda em ninguém. São parceiros no amor e na construção de uma relação arraigada no respeito e admiração mútua. Como direitos e deveres mais próximos e iguais.

Ainda que tais teorias sejam verdadeiras, o coração continua ainda mandando nos sentimentos; e quando encontramos alguém que cumpre nossos quesitos, pelo brilho dos olhos, pulsação, alma e poros, podemos estar diante não da nossa cara-metade, mas da boa parceria, que iremos constituir, para construir uma vida a dois. Neste ponto, a razão concede, concorda e deixa o coração reinar.

Dessas frases máximas do dia a dia, tem outra que lembro sempre: “antes sozinho do que mal acompanhado”; ou mais correta ainda: “antes sozinho do que estar com alguém que não me atrai”. Esta, eu cultivo. Não sou eu quem diz, mas é minha razão que resolveu agir. Enquanto ela estiver falando, assim será.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / março de 2012.