Passei os últimos dois meses envolvido com a política, exclusivamente com a eleição presidencial. Não desgrudei do celular, das mensagens e notícias a toda hora. E as pesquisas? A cada uma que saía, uma agonia tomava conta de mim. Aquilo me consumiu diuturnamente, que minha ira se espalhou pelos terrenos áridos das redes sociais.
Desde o atentado, minha fúria só aumentou que cheguei a pensar: — "não é dessa vez que tiramos o pé da lama. Não é!". Imaginei que aquela faca, pontiaguda, poderia ter cortado também todos os nossas artérias de sonhos de país. No fim, a turbulência passou e agora estamos limpando a sujeiras das solas dos sapatos para entrar o ano de alma lavada. O saldo foi algumas amizades perdidas nas redes sociais, xingamentos (sem desculpa) e uma vida que segue agora o seu curso. Afinal, o Brasil se sairá bem desse lamaçal. Eu espero.
Apaziguado, tirei os livros da estante, voltei às leituras. Acordei e baixei no meu e-book um livro que ainda não havia lido de crônicas rodrigueana (não sei se existe o neologismo). O "Óbvio Ululante" é um apanhado daquilo que Nelson Rodrigues nos deixou de melhor, fora da dramaturgia. E por que eu falo isso? Ontem, não consegui pregar o olho, e já era tarde. Antes de apagar o abajur, li uma crônica que ele se lembrava de uma paixão de infância. A moça (menina moça) era Lili, uma rechonchuda que morava no caminho da sua escola. Lili apanhava do pai e o pequeno Nelson ouvia seus urros e gemidos da rua. Comecei a pensar, então, na minha infância, que depois puxou pela adolescência. Lembranças e lembranças que não estancavam, retardando ainda mais meu sono.
Não tenho voz e cor da infância. É como um filme de Chaplin: preto e branco, sem voz e com uma trilha sonora de fundo. Minto. Lembro, sim, da cor do meu uniforme escolar: camisa branca, calça boca de sino azul marinho e conga alpargatas. Eu já falei também do tom rosa velho da minha casa, que já foi azul clara, com o número 139 sobre a veneziana. Mas voz nenhuma vem. Assim, eu na minha mais tenra idade (aos 10 e 11 anos), atravessava uma ponte gelada para estudar em outro bairro. Mas nenhum gravador registrou uma sílaba que tenha dito. Súbito, penso que fui um faroleiro na vigília do mar. A solidão do mar noturno e um silêncio de vozes, enquanto ondas gigantes chicoteiam pedras e cais. Eu sentia mesmo era paixão.
Ali, antes dos 10 anos, eu já havia me apaixonado. Depois, já nos 11 anos, e assim foi até a fase adulta. (O homem que nunca se apaixonou, não viveu.) As paixões não tinham desejo sexual, mas silhuetas, admiração e contemplação como paisagens. Elas mudavam de direção, mas eu era o mesmo menino: traquino em bando, e tímido no privado. O olhar era lânguido, e a boca balbuciante e sussurrante. (Talvez por isso não encontre uma frase da minha infância.) Nas paixões platônicas não se têm fala, não têm "eu te amo", não tem olhares penetrados, não tem sorriso encarado. Tudo é calado e só sentido; um coraçãozinho já ardendo e sofrendo.
Na quinta série (ali nos meus 11 anos) havia uma garota. Ela era Mônica. Loirinha dos olhos castanhos arredondados. Encantadora, com uma educação aristocrata e beleza nata. Mas eu não era o único. Havia uma fila de meninos de olhos naquela menina simpática de silhueta delicada. Naquela época, as meninas na escola usavam saias três dedos acima dos joelhos. (Com um espelho pequeno dava para ver a calcinha.) Aquele par de pernas era totalmente permitido pelo regime militar, com a panturrilha branca sobre as meias também brancas.
Um dia, fomos expor numa feira de ciência. Um fotógrafo do jornal nos clicou. No dia seguinte, estávamos na front page. Ela linda, sorrindo, olhando para a lente. Ao lado, duas meninas distraídas. E eu com meu amigo cabelo de fogo ao lado, em pé, fazendo caretas. Guardei aquele recorte, mas hoje não sei mais onde está.
No ano seguinte, sem se despedir, ela já não estava mais na escola. Seus pais haviam se mudado para Goiânia, se não me falha a memória. Foi a notícia que chegou. Ela foi embora, mas eu tinha o recorte do seu sorriso pueril. Logo minha paixão se dissipou no nevoeiro da ponte sobre o rio. Outros encantos surgiram, com outras meninas na escola e suas saias de pernas à mostra. Mas paixão não houve por um tempo, até esquecer o recorte.
Como disse, nas minhas lembranças não há muitas falas. Havia, contudo, uma voz fraca. Era do meu pai me chamando sobre o muro do vizinho. Aos 52 anos, sua voz já era cansada pelo cigarro e as dores no peito. Então, algo me vem sempre quando adentro nesse quarto escuro. Se não há voz, há um cheiro imortal. E ele exala na atmosfera da minha vida, até os novos dias, como um perfume da eternidade. Pode até parecer esquisito, mas a aromática lembrança é uma mistura de batata frita, argamassa e tijolo molhado.
Foi um dia qualquer entre 1973 e 1974. Acho que era 1974 (já tinha 12 anos). Nossa casinha passava por uma reforma. Meu pai puxou a casa até à divisa com o vizinho do lado direito. Construiu um paredão que, para rebocar, precisou erguer andaimes. Lá no alto, a cumeeira, os caibros e terças de um telhado à francesa, de uma água só. Um forro de madeira fechava nossa casa para suportar o frio do inverno. Essa era a obra necessária: espaçar centímetros e acolher.
Fecho os olhos e vejo esse dia. Eu sentado à mesa de tampo laminado azul (diziam fórmica), fazendo um desenho com uma régua de madeira. Uma cortina improvisada dividia aquele ambiente do externo, da parte da obra, do paredão. Tudo era improviso naquela cozinha sem reboco e pintura. O cheiro da obra (argamassa e tijolo) se misturava com cheiro de batata fritas que saia do fogão da minha mãe. (Foi uma época que comíamos batatas quase todos os dias.) A batata era cortada serrilhada, de espessura fina. Era cedo ainda para o jantar, havia luz do dia. O barulho da frigideira era sinfônico.
Eu estava naquela fase dos meus desenhos de futebol. Explico. Aprendi a desenhar os lances de gol vendo as ilustrações de Gepp & Maia, que saiam semanalmente no Jornal da Tarde. Um dia levei um desses desenhos à escola (o gol do título do Palmeiras de 1974), e ganhei, dias depois, um autógrafo do goleiro Leão, que tinha parentes na minha cidade e aparecia por ali de vez em quando. Não me lembro se foi minha professora de português que conseguiu. Virei tão especialista em desenhar gols, que passei também a criá-los também. Desenhava os gols impossíveis, com a bola batendo na trave cinco, seis vezes antes de entrar. E sempre era um gol com titularidade de um Leivinha, de um Ademir da Guia ou Edu. Até um amigo me perguntar: — "Esse gol é mesmo verdadeiro?".
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Copa de 1974 - por Gepp & Maia |
Aquela tarde/noite ficou como um quadro, um Michelangelo na galeria da minha memória. Quando você entra na grande sala, ele está lá, estampado na parede. A reforma, o desenho, os tijolos sem reboco, minha mãe e a fritura que saia do seu fogão. Aquele dia virou segredo de confessionário, um quadro que eu não desenhei sobre a mesa azul. Ele se fez sozinho em mim.
Fiz esses parágrafos para chorar de saudade...
Volto às paixões que alimentei pelas garotas da minha adolescência. Eu, como quase todos, me apaixonava pelas meninas da escola. Houve depois uma Maria Rita que usava meia 3/4, que eu torcia para encontrar no caminho, na ponte, e chegar na escola ao seu lado, como quem exibe um troféu. Sem declarar nada, devo ter dito muitas bobagens e coisas de meninos.
Mas houve uma paixão por uma garota — na minha lembrança era uma moça e não uma petiz — que morava perto de casa. Meus olhos a descobriram durante as peladas de rua, porque eu jogava no paralelepípedo na frente do seu portão. Ela morava, melhor, ela surgia numa casa que ficava no alto de um terreno, numa edícula. Uma família pobre como a minha, de três filhos. Era seu irmão quem compunha o meu time de rua. E quando ela saia para ir à padaria, meus olhos travavam até que dobrasse a esquina.
À noite, eu sentava no portão para vê-la vindo da escola, pontualmente às oito e quinze da noite. (Era um horário estranho para aquela escola onde ela estudava. A aula começava às quatro da tarde e ia até às oito, já no jantar.) Ali, no portão, eu fazia plantão, para vê-la desfilando suas bochechas rosadas, segurando os livros e cadernos apertados juntos aos seios já com sutiã.
Até que um dia, ela desceu a rua ao lado de um rapaz arcado, magro e bem mais velho. O quanto mais velho? Sei lá, uns 17 anos. Ele era loiro, nariz pontiagudo e tinha o cabelo liso, fino e penteado do lado, caindo na testa. Achei que era só um garanhão, porque não imaginava que ela pudesse se interessar por uma tábua envergada. Mas o medo vinha junto: e se ela ceder? Todos os dias eu me perguntava: "o que ele tanto fala à ela que eu não consigo dizer?". Passaram alguns dias, aquela deusazinha da rua, de bochecha rosada, desceu a rua com ele com as mãos sobre seus ombros. Ali eu sepultei minhas esperanças e mais uma das minhas paixões se encolheu para sempre. Acho que chorei por dentro, por me achar mais feio que uma tábua envergada.
De nada valeu querer chamar sua atenção, por muitas vezes, com meu futebol de rua, que jogava descalço sobre o paralelepípedo em frente ao seu portão. Ela não me via com olhar nenhum. Eu era mais um daqueles sujinhos da rua. Além de tudo, eu era sardento e tinha cabelo grosso, espetado e sem shampoo. Para piorar, me apelidaram de "gordo", mesmo não sendo. Depois, a arcada dentária tinha diastema. Talvez sejam essas minhas desculpas para não me aproximar. O medo do "não" entalou e morreu comigo.
Guardei ali, nas juntas dos paralelepípedos das antigas ruas, meus dedões estourados de chutar bola descalço. Claro, isso foi antes do surgimento do kichute. E o primeiro apareceu nesses idos, ali pelo meio dos setenta. Era o calçado que estava ao alcance de todo garoto pobre de periferia. Dava para jogar bola no paralelepípedo da rua, na terra do campinho e depois servia para ir à missa de domingo. E havia também o segredo do cadarço. Ninguém amarrava o kichute de forma convencional. Ou era na canela ou era por baixo, dando voltas na sola, com as travas não permitindo que o cadarço se arrastasse no chão. Eu amarrava por baixo. Achava que ficava mais firme nos pés.
Hoje, tenho respeito pelas ruas de paralelepípedos, porque elas guardam em si histórias de crianças, de peladas descalços, de brincadeiras de queimadas, enterros, procissões e paixões. O paralelepípedo é o que decora minha alma de infância. O paralelepípedo é o adorno que emoldura a simplicidade das casas. Não são ruas de passagem; são de imortais peladas, onde deixei meu dedão sangrando por muitas tardes. São ruas da feliz esperança, de paixão pelas meninas de bochechas rosadas. E tudo com o aroma bom da frigideira de batata fritas. Minha infância não teve voz, mas teve muito cheiro bom.
© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e
cronista / novembro de 2018