Páginas

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Tolerância zero

O mundo está de TPM. Ou, como cantava aquele transeunte na rua “O mundo está ao contrário e ninguém reparou". A TPM — da miséria nacional — tomou conta do nosso cotidiano. Meninas fiquem felizes, o que antes era uma chatice somente do staff feminino, agora virou aborrecimento geral. Bem, como homens não menstruam, sobrou-lhe o pior: a irritação com tudo que lhe afeta no metro quadrado a sua volta. O que antes era um evento feminino, agora virou epidemia nacional! Fulano matou cicrano porque era gay, exemplo de TPM. Vamos absolver o indivíduo, ele é filho de deputado — outro exemplo. Estamos diante de um fenômeno que, pela intolerância, cometem-se crimes: açoitam, violentam e matam. Nada de preconceito, ou marcha disso e daquilo, somente as leis já bastariam.

Como remédio, instituíram a pregação do “seja politicamente correto”; censurando e repudiando os incorretos. No campo do livre arbítrio — onde estabelecem os regimes democráticos —, não se pode dizer e escrever mais nada sobre nada. Alguém ou algum grupelho, com TPM compulsiva, irá gritar: você ofendeu a mim e minha classe, por isso vou te processar! Acabou o humor! Acabou a livre opinião, o livre pensar... Tudo virou homofóbico e preconceituoso. Não podemos opinar sobre o que se passa em nossa cabeça. Nem para dizer nossas verdades sobre as unanimidades nacionais (todas elas são burras, diria Nelson Rodrigues). Claro, você só poderá opinar, sim, se for para ridicularizar (até ofender) aquele que está a sua direita; já o que estiver à esquerda, aí é preconceito.

O artigo quinto da Constituição Brasileira — muitas vezes esquecido — diz: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Poderíamos parar por aí e cortar o mal pela raiz, baixando as leis contra os crimes de qualquer natureza. Mas não! Eles incitam a manifestar em favor desses grupos, agora organizados — alegando ser do “bem” — em favor do ladismo político que os servem. Pegar na mão daquele grupo, para dizer aos microfones: "esse pobre foi ofendido por um humorista que fez anedotas preconceituosas!" Por outro lado, o chargista que se transforma em mulher para protestar, a favor desse mesmo grupo, é louvado e levado para frente das câmeras de TV. Cabe dizer, um oportunista de marca maior. O mundo está ao contrário e ninguém reparou mesmo.

Em suma, querem mesmo é fatiar a sociedade por seus credos, cor de pele e opção sexual. Disseminando mais o ódio. Não bastavam as leis? Assim, cada qual irá sobressair individualmente a sua maneira e ganhar um pouco de holofote nos meios de comunicação; depois será usado politicamente por este ou aquele vigilante político. Assim também, ninguém irá se unir — numa causa única —, também em praça pública, para extirpar aquele político corrupto, que diz estar ao seu lado. Quando menos organizado a sociedade; melhor para seus fins. O restante, aquilo que se chama povo, este não diz nada, foi privatizado e permanecerá calado planejando seu próximo final de semana onde poderá ser feliz na praia.

Saibam estes grupelhos — como gados no curral — que, nenhum desses que dizem defendê-los, fariam se não houvesse, como objetivo de seus interesses, a política. Ninguém quer uma sociedade justa e igualitária, senão, não rasgariam a Constituição do país. Do outro lado, aquele que se posiciona como vítima, ficará bem quisto perante uma parcela da opinião pública, vendendo uma imagem do bonzinho excluído; ou alguém irá defender uma pessoa única por ter sido molestada por preconceito de ser heterossexual? O chique é se posicionar ao lado de quem faz bem o papel de vítima social. Tolos!

Você idolatra alguém? Se for sim sua resposta, você já tem a minha repulsa. Detesto a forma como algumas pessoas se dirigem a alguém que, por sua obra, admiram. Não visto camiseta estampada com alguns desses que julgam estar acima de qualquer pecado; os sacralizados, como já disse o músico Lobão. A única camisa que visto, às vezes, é do meu time de coração e outra dos Beatles. Agora, não uso para fazer apologia das minhas preferências. Mas, o idólatra, julga seus escolhidos acima mesmo do pecado. Tudo que fazem ou já fizeram essas “divindades” é o que mundo precisa, é o melhor que podemos seguir. Cito, por exemplo, Che Guevara. Na minha adolescência fui conduzindo, como quase toda minha geração, a seguir os passos desse facínora que, parte do mundo resolveu colocá-lo no altar, ao lado de muitos santos cristãos — estes de verdade. Uma grande tolice, que as pessoas vão pregando por aí e adotando como referência universal. Não sigo ninguém. Admiro as pessoas comuns, aquelas que pecam, mas sempre tentam acertar seu torto caminho e são anônimas.

O que reina no mundo? Os interesses pessoais, financeiros e políticos. Como se diz, “não existe almoço e jantar de graça”. Você pagará ou já pagou por este almoço. Não sonhe caro leitor! Ninguém irá dizer: estou lhe fazendo este bem por que gosto da sua amizade, do seu bairro, da sua gente; ou simplesmente para retribuir algo que você fez de bem ao seu próximo. Há sempre um interesse maior e político por qualquer relação que se estabeleça nessa esteira. Alguém irá lembrar: antes já não era assim? Era, mas não tão escancarado. Hoje acabou a hipocrisia. Estamos chegando ao fim das relações por amor e paixão e fazendo somente negócios e contratos. Enquanto isso, a ladroagem, a gatunagem virou algo corriqueiro que, não enxergamos mais crimes onde só existem crimes.

No texto “Criar e Educar”, toquei de leve no tema, mas o mal social está na intolerância. Estamos cada vez mais intolerantes uns com os outros e com quem deveríamos reivindicar, omitimos. As nossas relações interpessoais estão por se esfacelar. Está claro como não há tolerância, cada vez mais nos encurralamos num mundo solitário, como um fone no ouvido. E quando querem nos ensinar como agir contra o mal, ao contrário, somos induzidos a não tolerar mais ainda as pessoas, por suas opções religiosas, sexuais e políticas. Que tal pregar o amor ao próximo?

Como caminhamos, no futuro, a sociedade e a família estarão cada vez mais minguadas — seres isolados. Não por que teremos menos dinheiro para criar filhos e formar famílias, mas para que esses filhos nãos caiam nas mãos de governantes que, pensa que possam criá-los por nós. Querem dizer como devo me dirigir ao ser humano que tropeço na rua, ou que sejamos politicamente corretos, ao se dirigir a quem quer que seja. Sejamos só respeitosos uns com os outros — ponto final.

Contra qualquer intolerância, prego a tolerância zero! É insuportável esta miscigenação; o sangue que corre na veia tem a mesma cor em qualquer ser humano. Tratar com acinte um grupo organizado, ou agredir um único indivíduo comum tem o mesmo teor da intolerância a ser extirpada. Mas, longe com a censura em meu pensamento.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2011.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O avião azul


Tarso e o avião

Cronistas leem outros cronistas para poder se inspirar, ou tirar água da pedra, quando a fonte seca – dar ânimo. Não dá para viver de inspiração a todo o momento; muitas vezes vamos buscar no cotidiano, nos livros, nos filmes e na vida alheia; ou simplesmente nos deparamos com algo em nosso caminho que nos faz pensar mais profundamente na vida. Os objetos, os retratos, as lembranças, em tudo podemos encontrar almas desgarradas e assim desfragmentar as palavras ocultas. Aquelas que só o coração sabe entender.

Perdi um irmão recentemente. Foi dolorido, da lembrança da convivência e agora sem sua presença abriu-se um vazio. Algo que não se preenche com mais nada, só a saudade, ainda doída. Aquela pessoa que nos dávamos e por muitas vezes conversámos tolices cotidianas, agora partiu. Não haverá mais a conversa dos olhos; tudo virou oração.

Minha diferença de idade para ele era 08 anos. Quando era eu criança ele me levava para todos os lados que podia. Lembro-me de uma cena quando ele pediu para minha mãe deixar andar com ele num brinquedo em um parque de diversões; o brinquedo não era para minha idade, mas ele me colocaria no colo, me protegeria. Acho que minha mãe não deixou, pois não me vem a cena dele me segurando. Era caridoso, tinha alma boa, alternando entre o semblante fechado e o riso fácil quando queria.

Tive a primeira experiência de trabalho por intermédio dele. Era ele quem me pagava um pequeno salário, para manter nosso quarto de dormir arrumado e limpo - para mesada não sair de graça. Eu fazia isso todos os dias quando chegava da escola, e quando terminava ia ouvir os discos que tínhamos em casa. Todo final de mês ele me pagava uma quantia, que dava para o lanche na padaria.

Foi nesta época que ele comprou um chevette azul – outro dia me confundi e disse que era verde. Ele vivia lustrando o carro, lavando e encerando - seu primeiro patrimônio. Não sei por que, mas o carro era apelidado carinhosamente por ele de “avião”. Presumo que seja, porque não havia limites em seus rumos e viagens. Com ele íamos para roça pescar, íamos ao estádio ver jogo de futebol e para onde quisesse. Tenho uma lembrança nítida, dele lavando o carro todo final de semana em frente ao nosso portão. A lembrança desse carro me veio nesses dias após sua partida e trouxe-me aqui a saudade que descrevo nessas curtas palavras que lhe rendo. Estas que brotam do coração.

Nesses dias, ainda tragado pela dor, entre muitos abraços que recebi, veio uma frase que guardei, e de certa forma, abreviou um pouco meu sofrimento e de todos os seus queridos que ficaram: “As pessoas não morrem, elas apenas vão à nossa frente, abrindo o caminho”. O avião azul, agora encontrou o seu dono, num voo infinito, no mais longínquo céu...
(*) Para Natália, Filipe e Thiago

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / julho de 2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A hora de o trem passar



Tramo ferroviário de Semmering

Enquanto ateava fogo à lareira, o bondoso corretor de imóveis narrava uma pequena história à Frances:
“Senhora, entre a Áustria e a Itália há uma parte nos Alpes chamada Semmering. É uma região de montanhas muito íngreme e alta. Assentaram os trilhos nessa parte dos Alpes para ligar Viena e Veneza. Assentaram os trilhos antes mesmo que houvesse trem para percorrer o trajeto. Construíram porque sabiam que um dia o trem chegaria”.
De Viena à Veneza são 420 quilômetros, Semmering está no meio do caminho, com suas montanhas quase intransponíveis e belas paisagens – uma estância turística. O tramo ferroviário de Semmering possui 41 quilômetros de longitude e foi declarado patrimônio da humanidade pela UNESCO, em 1998. De fato, era ousado desbravar esta região montanhosa. Aquele corretor sabia o que estava dizendo ou ele tinha boas razões para afirmar que não devemos nos preocupar com a vida e seus “porquês”; tenham sonhos e assentem os trilhos, o trem um dia vai chegar.

O universo conspira com nossos pensamentos, aspirações e ações; abrindo trincheiras, construindo pontes e caminhos. Chegará o dia em que iremos atravessar por eles e perceber que nada foi em vão, valeu ter lutado. Perguntas sem respostas, distâncias percorridas, vidas doadas — tenhamos paciência e deixemo-nos seguir. Pode ser que tudo mude no meio do caminho, mas haverá sempre uma vida a nos esperar. Apontemos o horizonte como uma seta; conheçamos bem a região, as matas e as montanhas que iremos desbravar; carreguemos chulipas nos ombros e as assentemos; depois sobre elas, os trilhos — bem fixos. Um dia chegará a hora de o trem passar.

Na minha profissão, sou encarregado em planejar. Poucos administradores públicos dão importância a essa questão; não há resultado imediato em curto prazo, há que se debruçar sobre os mapas, sonhar e acreditar. Vivemos a planejar a cidade que queremos no futuro. Aqui haverá uma ponte, um viaduto, uma estrada, uma estação, uma praça para descansar... Não sei quando, mas terá. Talvez não viva o suficiente para ver, mas gosto de imaginar as coisas longínquas, futuras. A quem servirá minhas ideias? Difícil dizer. Eu também me beneficio de um mundo onde meus antepassados também traçaram. Eles também pensaram em mim.

Vasculhando minha infância, no caminho da escola, eu avistava todos os dias uma casa exótica de três andares. Cada metro de fachada era uma miscelânea de peças estampadas — sem arquitetura. Meus coleguinhas da época, diziam que o proprietário, construía essa casa há mais de 20 anos, sozinho. Ficava curioso com o que deveria haver lá dentro; ao mesmo tempo, entender da sua paciência em assentar tijolo por tijolo. Ele não teve pressa, sabia esperar a hora, um dia entraria na casa.

No meu primeiro dia, pela janela do ônibus, via a luz do dia ser sugada pela noite que caía naquela serra de luar. Algo me sufocou, era outra cidade, era um desafio nos meus 20 e poucos anos. Pensei: hoje é só o primeiro dia de cinco anos que tenho que cumprir; viajar, aprender, recomeçar, fazer novas amizades, me relacionar; um sacrifício, como se toda a vida findasse ali. E depois? Será que vou suportar? Será compensador? É isso que quero para minha vida? Perguntas e perguntas, enquanto olhava a estrada. Na primeira aula de introdução à arquitetura, o professor também nos encurralou: Vocês querem mesmo a arquitetura, sabendo que terão que ralar muito osso para serem bem remunerados? Houve um silêncio sepulcral na sala de aula. Não me abati e enfrentei. Os cinco anos se passaram como um vendaval que se aplacou; e já faz 20 anos da minha graduação na faculdade de arquitetura. Amizades construídas, obras projetadas. Tudo passou como tudo também ficou guardado.

Há dias em que acordamos inquirindo à vida. O que estou fazendo aqui? Como vim parar nessa cidade? O que me trouxe aqui? O que farei daqui em diante? Onde me levará essa estrada? Por não encontrarmos a resposta imediata (is blowing in the wind), achamos que estamos diante de um abismo e o fim será a sua queda; e viver será a angústia pelo desconhecido, ou sua grande aventura. E com isso vem o medo de viver, de pisar. Ou devemos voltar ao ponto inicial? Não dá mais.

Há mistérios demais na vida e quase todas as respostas estão pairando no vento, como já disse Bob Dylan. Vale, então, o olhar da paciência, da esperança e da fé; compreender e aceitar os caminhos que iremos percorrer e viver sem ter muitos questionamentos quando as portas se abrem (ou se fecham). Há momentos únicos e de encontros; onde os sonhos se concretizam; onde as vidas se juntam e ruas se cruzam; a noite vira dia, o mar encontra a terra; onde os enigmas se decifram (sentem) de uma forma ou outra. Faz-se luz, onde parecia haver só o breu. Ou, como disse a mulher árabe: maktub — está tudo escrito; está tudo traçado na palma da mão, ou nas estrelas...

O que buscamos? Por que caminhamos? Se for felicidade o que ansiamos, não tenhamos dúvidas quando encontrar. Se for o amor, saibamos reconhecer suas nuances, feições e sinais. Pode ser que ele já esteja ao nosso lado, e o desprezemos. Se não soubermos o que almejamos, quando encontrar, também não reconheceremos. Não há busca sem razão. Se não soubermos o que buscamos, poderemos nos deparar também com o que deveríamos desprezar.

Semmering era um obstáculo natural e o trecho dos trilhos tinha muitas razões para existir: ligar duas cidades, dois países, duas culturas, dois povos. Não havia um sentido qualquer, desprezível. Era justificável, que se fizesse os trilhos antes da chegada dos trens. Quem planejou, foi alvissareiro, um visionário, sem medo do erro e do futuro. Na hora certa, o trem chegou e tornou aquela paisagem à vista dos olhares e contemplativa por muitos turistas. Viena se ligou à Veneza pelos trilhos das montanhas quase intransponíveis. Isso é louvável.

Ah, a história inicial do corretor de imóveis é do livro/filme “Sob o sol da Toscana” (Under the Tuscan Sun) — 2003. No filme, dá para fazer uma viagem pela Toscana, com toda sua exuberância; ainda há a graciosidade de Diane Lane. Mas, agora eu fiquei com vontade mesmo de deslizar pelos trilhos de Semmering — as montanhas. A que horas passará o trem?

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / junho de 2011.