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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Nada será melhor como antes

Deparei com um vídeo de 1984, no crepuscular militarismo. Elba Ramalho cantando "Banho de Cheiro" no Maracanãzinho, no Chacrinha. Aquela sopa tropical, suculenta de felicidade brega com buzinadas e liberdade febril; com uma câmera passeando, grudada nas bundas daquelas deliciosas chacretras. Tudo temperado com muito calor humano de uma plateia periférica; de gente plebe, deslacrada, desmartuphonizada, sem medo e sem máscara. Um mundo real que não veremos jamais. Ah, como eram doces aqueles já velhos e pueris anos. Empalideceu e desmanchou no ar. Até para ser feliz, hoje, você deve satisfação às redes sociais do seu falso mundo.

O texto inicial foi capturado de uma postagem que fiz nas redes sociais. Escrevi já pensando que ele seria um apêndice de uma conversa longa. Ela chegou.

A falta de liberdade me dói. Sim, é dolorosa e quase febril. É uma dor sentida, diária. Abro a janela e vejo as ruas controladas, cheio de cartazes "não toque", "mantenha o distanciamento", "use máscara". Pergunto na minha alma: Cadê o meu mundo? Cadê os meus sonhos de moço? Os lugares restritos, os protocolos ridículos e o direito de ir e vir sendo sobrepujados por um ditador qualquer. Esse é o retrato dos novos dias. Vai voltar ao normal? Não sei dizer.

A entrada dos EUA na segunda guerra é uma das coisas mais emblemáticas para mim. Talvez seja o ponto culminante daquela guerra. E aqui falo, claro, daquele que seria considerando o "dia D".

Convido a quem ainda não acompanha os documentários da Brasil Paralelo, acesse o YouTube, seja membro, ajude essa plataforma a continuar fazendo e exibindo conteúdos para nossas vidas. Digo que é como um oxigênio para nossa existência num mundo tão cheio de falta de ar.

No último documentário, A Primeira Arte, eles nos presentearam não só do conhecimentos dos grandes compositores da história da música, mas nos levaram a emoção. A música é aquilo que emociona e não aquilo que faz nosso corpo se mexer. Eu ouço música parado, ela, mesmo que harmonicamente e ritmicamente nos leve a querer dançar, antes de tudo ela nos faz dançar na alma. E de onde eles vieram? De um tempo onde não se tinha rádio, televisão e muito menos Spotify.

E como quase tudo que aqui em converso, volto ao passado. (Sobre o futuro eu não sei; o presente não precisa dizer, ele está aí. Mas o passado faz todas a pontes de ligações com a linha do tempo).

Ainda que superemos essa fase pandêmica; ainda que superemos o contágio; ainda que superemos o tempo nos hospitais com respiradores; ainda que voltemos a ouvir nossos LPs; ainda que abrimos nossos antigos romances; ainda que tudo isso, nada será melhor como antes.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Abril de 2021.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Eu Queria Ser Chico Buarque

Pode soar estranho às pessoas de hoje, mas na minha adolescência — mocidade, como se dizia — eu queria ser Chico Buarque. Tocar como ele, compor como ele e cantar também como ele. (Ele canta mal, eu sei...). Talvez eu seja um dos poucos da minha geração que compreendia aquela relação profunda, poética, prosaica, cotidiana, harmoniosa: letra, música, corpo e alma. Justapostas, sabe? Fragrância lírica das ruas descalças, dos balões, das moças. Espreitado por alguém debruçado sobre a janela alta da casa burguesa.

Já faz alguns anos, assisti a um vídeo de Chico com João Pedro Stédile, o chefão do MST. Depois de uma partida de futebol, no seu campo particular, Stédile pediu-lhe que fizesse uma dedicatória num box de DVDs. Disse-lhe que entregaria o ilustre presente, pessoalmente, a Nicolás Maduro.

Aos 80 anos, o grande compositor nem tem mais pernas para correr atrás de bola. Depois de aplaudir, de plateia, seu mentor político ser transformado em presidente de novo, pela terceira vez, partiu em definitivo com sua mulher novinha para Paris. Uma morada dos deuses, no metro quadrado mais caro da cidade, bem longe das mazelas brasileiras.

Súbito, pensei no campo de futebol particular. Virou assentamento do MST? Seria lógico, e é o que sempre se espera de socialistas: repartir, dividir e partilhar seus bens. (Stédile não teve essa ideia?). Nos tenros 20 anos, o jovem Chico escreveu "é a terra que querias ver dividida", versos da canção Funeral de um Lavrador. Noves fora, o Google Earth me contou que o campo ainda está lá, inteirinho no caríssimo Recreio dos Bandeirantes. Sem nenhum sinal de invasão dos sem-terra fluminenses.

Minha profecia, no entanto, me diz, ao pé do ouvido, que os herdeiros já esfregam as mãos. Logo darão um destino provável e financeiro ao terreno: o mercado imobiliário. Faz jus, era a terra que querias ser dividida... Porque a narrativa da justiça social (do pivete, do guri, do malandro, do sem moradia) é atemporal e não pode morrer: e tudo que serve de esteio ao discurso dos velhos burgueses e poetas hipócritas. (Millôr já disse de quem lucra com seu ideal).

Mas para que essa crônica não acabe assim, eu prefiro dedicar-me, cavando na memória, à história bem rimada do Juca, aquele dos anos 60. O pobre seresteiro autuado em flagrante, como meliante, que foi parar numa delegacia, pois sambava bem diante da janela de Maria.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / novembro de 2024