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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Desapego


Você é desapegado? Muitas pessoas dificilmente irão responder a esta pergunta de prontidão. Pensarão e sairão pela tangente, ou devolverão a mesma pergunta. Uns irão lembrar-se das roupas velhas e puídas que já não usavam e doaram a um bazar e justificarão: sou desapegado por isso. Quase nenhuma dirá que doou uma roupa nova, que custou muito cara, de uma grife famosa. Desapegar é difícil, eu sei. Tem que praticar diariamente. É um ato, antes de tudo, de amor ao próximo.

Tenho isso comigo: se o mal fosse maior no mundo, a humanidade já não existiria mais. Por um fio do equilíbrio dessas forças, o bem ainda controla o mal, ainda é maior; ou eles se compensam. Acredito também, que todos nós nascemos com um chip que vem como um código moral, de ética e conduta. Uns perderão pelo caminho; outros irão buscar mais do que a moralidade imbuída no Ser humano. A benevolência ainda é grandiosa no mundo, isso também se deve aos desapegos e doações de almas, de pessoas que nunca imaginamos existirem. Uma voz que não se ouve, mas que se manifesta no silêncio.

Toda vez que vejo o mundo à beira de conflitos vem à lembrança aquelas pequenas missionárias que vivem na clausura. Optaram por essa vida e só sairão de lá com a morte. Vivem numa entrega de oração pela humanidade, pela paz de pessoas que elas nem conhecem e vidas que nem frequentam. A mente ocupada, sempre. O que muito se explica que elas vivem até depois dos 100 anos. Isso também é uma forma de desapego. Suas indumentárias não têm grife; não andam em carros de luxo; comem comidas que elas mesmas preparam, se purificam e santificam diariamente. Depois oram sem parar, com fé e amor. Tudo para manter o mundo em constante equilíbrio, contraponto às forças daqueles que se agarram aos bens terrenos, e por isso lutam, brigam, guerreiam, se matam. Se há o mal; há muitos querendo o bem da humanidade, e por ela renunciam a própria vida.

Peregrinos que fizeram a primeira vez o percurso de Santiago de Compostela testemunham que no início do caminho, o preparo é como se estivessem que carregar a vida nas costas, como assim dizer: preciso levar tudo para a minha jornada. Ao longo do caminho, a vida vai se desprendendo, se soltando das mãos; pertences são deixados pelos caminhos, sem pena, nem valor. Caminhar é preciso, carregar não é preciso. Enquanto se caminha, se ora e não se pensa em nada, somente cumprir o caminho, com a roupa do corpo e nada mais.

Outro dia, um político local escreveu em seu mural do Facebook: “devemos praticar o desapego...” A mensagem veio de um celular direto de uma igreja, presumo; a mesma que aderiu e resolveu frequentar de um tempo para cá – estava no meio do culto e se empolgou. Ele é político e seres dessa espécie não merecem muito crédito, adoram fazer proselitismo, dizer frases feitas do óbvio da vida e assim ser “curtido” por seus eleitores. Tudo dito, mas sem tirar um centavo do bolso; sem tirar a camisa para vestir àquele descamisado na rua; sem nenhuma forma de desapego em cuidado ao próximo. Algumas pessoas sobem em púlpitos e tribunas, para pregar em seus discursos, que o bom da vida é praticar o desapego. No mundo, há aqueles poucos que se doam sem nada receber. Esses são desapegados até dos discursos hipócritas.

Dentro das igrejas há outros missionários pregando aos fiéis palavras de fé e que a vida não vale pelo apego às coisas terrenas. Alguns desses continuam humildes na vida fora do templo, tentando praticar e viver tudo; outros ostentam riquezas (essas que as traças corroem), numa vida que não condiz com o que dizem acreditar.

Ontem fui dormir pensando nela. Estou pensando nela ainda... Não pensando em sua beleza, mas sobre a pessoa que ela é. Vi no canal GNT um programa sobre a vida fora das telas de Angelina Jolie; de como ela tem-se empenhado nas causas humanitárias pelo mundo: Paquistão, Haiti, Congo... Onde há gente sofrendo, lá está Angelina. Ela e Pitt, seu marido, doaram vários cachês milionários para ajudar povos pelo mundo. Criaram uma fundação por essa causa. Malgrado, alguém veio me dizer: ela faz doações para abater no seu imposto... Discordei. Não é com esse objetivo, ela visita e acompanha muito de perto esses povos, estando nos lugares, pondo o dedo nas feridas e procurando diminuir as dores das pessoas. Há amor no que faz. Se pudesse adotaria todas as crianças órfãs no mundo — creio. Um dos filhos adotivos veio do Vietnã. Que linda mulher!

Depois me indaguei: ela não faz e não fala em nome de nenhuma religião, age em nome dos seus instintos — os mais nobres —, seguindo os passos do Cristo, que as igrejas pregam pelos evangelhos. Perguntei. Quem merece mais o céu? Um padre cantor? Um político bravateiro? Uma apresentadora de programas infantis que odeia crianças? Um pastor que ficou rico com sua igreja? Ou Angelina, que ficou rica com seu talento e depois, por ser bela por todos os lados que se vê e não se vê? Na minha conta, essa já virou santa.

Não vejo o desapegar somente naquilo que nos servia e hoje não mais; dos objetos do passado que guardamos e da vida que tínhamos. Há algumas histórias reais de desapego, ou mais do que isso, de altruísmo. Aquele que doa, em vida, seus órgãos, suas vestes, seu tempo, seus bens; aquele que, além da caridade, oferece o colo, o ombro, o abraço, o amor que tantas pessoas necessitam. Desapegar é preciso; carregar tralhas, rancores é desprezível para o caminhar. E só com a leveza na alma que teremos a paz; e nada mais será importante.

“Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira”. (Pratique o desapego - Fernando Pessoa)
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No coração de todos


Terminei o ano de 2011 sem concluir um texto sobre futebol. Queria escrever sobre o Barcelona; enaltecendo o seu belo futebol. Isso tudo sem saber do resultado final do mundial interclubes contra o Santos. Mas, prevendo o óbvio, já havia comentado por aí que todos os times jogam futebol; o Barcelona joga o “mais futebol”. Estava certo. O Santos – o futebol brasileiro – passaram vergonha; foram 90 minutos de uma aula de como se joga o “mais futebol”. Será que aprendemos? Alguns cronistas esportivos disseram depois: está na hora do Brasil se reciclar, e se render ao futebol de equipe, voltando a fazer o que fez do Brasil cinco vezes campeão mundial. Copiar a si é fácil.

Neymar e o Santos chegaram ao Japão bem antes da competição. Entrevistas humildes, mas atitudes nem um pouco. Na coletiva com a imprensa mundial, Neymar disse que Messi era o melhor e o Barcelona era o favorito. Tudo que podia se dizer e ouvir. Na saída do local, Neymar foi cercado por seguranças com a camiseta do Santos protegendo-o do assédio. Mas, assedio de quem? Não havia ninguém lá que quisesse agarrar o craque nacional, nem mesmo para arrancar um autógrafo. Essa imagem ficou marcada para mim: como a imprensa esportiva brasileira idolatra nossos pseudo ídolos, elevando-os à décima potência e o resto o do mundo nem aí com eles.

Enquanto isso, o Barcelona, ainda em gramados espanhóis, goleava o arquirrival Real Madrid por 3 x 1, no estádio do Real. Só depois da partida viajaram para o Japão. Chegando lá, não houve mudanças de hábitos e nem seguranças para seus ídolos. Eles foram dispensados para passear com suas mulheres e fazer turismos sozinhos pela cidade. Pensei, o futebol tem que ter disso também: humildade. Jogar sem a arrogância, e tudo isso que vem com os salários milionários. Não fosse isso, muitos estariam morando em condições ruins e viveriam pobres por toda a vida.

Não sei precisar qual jogador – há muitas notícias em pencas sobre futebol -, mas um jogador do Botafogo Campeão Mundial da Copa de 1958, no dia seguinte após as comemorações, quando a vida voltou ao normal, continuou pegando seu trem no subúrbio do Rio de janeiro para ir treinar. Naquela época o dinheiro não estava no futebol, mandando. Jogava-se por amor.

Comecei o ano de 2012 com uma notícia um tanto triste. Meu atual ídolo do futebol abandonou os gramados. Marcos, goleiro do Palmeiras, anunciou a aposentadoria. São Marcos, já foi canonizado por todos e se fez indulgente pelos anos de carreira e tudo que seu futebol nos deu. Ao Palmeiras e à Seleção Brasileira. Houve uma comoção geral, até de outros torcedores. Descobri com isso, que ele está no coração de todos. Uns irão justificar que ele foi o goleiro do pentacampeonato de 2002; para não se render que ele envergou a camisa do Palmeiras e hoje é mais um jogador palestrino se despedindo dos gramados.

O que faz Marcos ser diferenciado? Ele nunca esqueceu suas origens; agiu sempre como homem, dentro e fora de campo; na derrota soube perder; nas vitórias soube comemorar. Sem aspereza na voz. Cortês, franco, humorado e feliz pela vida que a bola lhe deu.

Em tudo que fazemos na vida, a humildade deve estar presente. Até mesmo no futebol. Marcos é um dos jogadores mais humildes que já vi dentro e fora de campo.

Quando o time do Palmeiras estava mal no campeonato, com os jogadores fugindo a imprensa, Marcos era quem falava com, sem medo de represálias, sem medo de dizer a verdade.

Na Copa de 2002, Marcos foi um dos maiores personagens daquela conquista – o pentacampeonato. Na partida final contra a Alemanha, onde vencemos por 2 x 0, ousei dizer depois: o Brasil venceu por 4 x 0. Duas defesas de Marcos foram consideradas por mim, um gol de goleiro. A primeira, quando ainda estava zero a zero, foi escolhida como a defesa da Copa. Aos 3min: 44seg do segundo tempo, o jogador alemão Neuville bateu uma falta, de longe, daquelas quase indefensáveis. Marcos pulou, se esticou todo para pôr a ponta dos dedos na bola, e ela bater na trave e sair. Se a Alemanha fizesse aquele gol, a história daquela Copa poderia ter sido outra. Depois, Ronaldo fez dois gols e salvou a pátria. Aos 37min: 40seg, Marcos fez outra defesa num chute queima-roupa, dentro da área, de Bierhoff. O futebol brasileiro também deve a ele aquela conquista. A FIFA deu o prêmio consolador de melhor jogador da Copa para Oliver Khan (goleiro alemão), mas Marcos foi naquela manhã, o São Marcos de todos os milagres. E por essas e outras, ele já virou mito no futebol, e que agora reina no coração de todos nós.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Veículos mais modernos; ruas nem tanto


Henry Ford (1863-1947) — fundador da Ford Motor Company — foi o grande visionário da indústria automobilística; o primeiro empreendedor a fabricar automóveis em série. Ele achava que o consumismo era a chave para humanidade. Numa de suas célebres frases, disse: "o dinheiro é a coisa mais inútil do mundo; não estou interessado nele, mas sim no que posso fazer pelo mundo com ele".

Nunca a indústria automobilística despejou tantos veículos novos nas ruas das cidades brasileiras, como nos últimos anos; nunca o usuário/consumidor comprou tanto, ou trocou tanto de veículo, como nos últimos anos. Economia estabilizada e crédito fácil, um convite irrecusável. Sair do “velhinho” e poder ter um zero quilômetro, agora é sonho possível.

Parece que só vemos vantagens nessa progressão, nessa nova era; onde os veículos, definitivamente, tomaram conta dos espaços das ruas; onde uma nova classe social surge: o consumidor compulsivo. As cidades acanhadas, despreparadas e sem planejamento, ainda suportam aos problemas diários — isso é fato —, mas com ninguém se movendo da cadeira. E com tudo isso, o futuro que se projeta não é o melhor. Falo adiante.

Primeiro vamos aos automóveis. Há no mercado uma quantidade infinita de marcas e modelos; populares e de luxo; nacionais e importados. Estão muito mais seguros que na década de 80, para comparar. Atendem a todo tipo de conforto e segurança aos motoristas e passageiros. Cintos de três pontos para todos; encosto de cabeça em todos os lugares; air bag para todos os lados; freios ABS; bancos e direções ajustáveis na vertical também; GPS no painel; ar-condicionado e direção hidráulica.

Olhando por esse ângulo, vemos que as indústrias evoluíram muito nos últimos anos e isso também é um chamariz para o comprador. Os automóveis nos dão status de poder, ascensão social e ostentação. Ficamos mais felizes com eles. Quem não tinha um, passou a ter; quem possuía um, agora tem dois, ou tem um melhor... Andar de automóvel é o meio de transporte mais eficiente e confortável para quem pode ter. Ninguém ousará dizer o contrário.

Se a indústria dos veículos está no sentido vertical da modernidade e segurança, o mesmo não se pode dizer das vias por onde circulam. Os municípios, onde existe corpo técnico para cuidar das vias, ainda há um pensamento ultrapassado no modo de enxergar o sistema viário, no que se concerne à mobilidade e acessibilidade, em comunhão com a vida na urbe. A visão é caolha e retrógrada. Como venho dizendo, isso não pode ser relevante à vida de morar na cidade. Antes de tudo, vem o viver a cidade, habitar a cidade; vem o ser feliz na cidade. Os deslocamentos são consequências ao modo de vida que buscamos. Por onde passam, os veículos estão abrindo mais faixas e espremendo as construções; em meio a eles está o sujeito a pé; esse que escolheu o meio de transporte mais primitivo para se deslocar. E os técnicos ainda querendo espremê-lo mais contra o muro.

Nos seminários e fóruns de transporte e trânsito (já fui a vários), a retórica é sempre a mesma; fala-se em mobilidade, acessibilidade, calçadas seguras, ciclovias, transportes públicos e a repugnância aos automóveis que entopem as ruas e poluem. Parece que todos enxergaram o futuro, ou reinventaram a roda. Mas, quando voltam para suas cidades — nas ações de planejamento das obras, ou naquilo que deveria mudar —, tudo continua na mesma. Continua-se em tratar com galhardia os veículos (que hoje são mais seguros) dando-lhes mais fluidez na pista; em detrimento à segurança de quem está vulnerável e desprotegido na calçada; esquece-se também de preservar parte das vias para outros meios de transporte, com um objetivo claro: devolver a qualidade que se perdeu no tempo.

Quanto mais faixa para tráfego de veículos se abre, mais veículos irão aparecer. É a lógica do trânsito das cidades. Isso não tem fim. Ou teremos a cidade só para circular e não para habitar? O “quanto mais, mais” serviria — numa forma mais segura, qualitativa e acessível — se pensasse assim para as calçadas e ciclovias também. As calçadas captam ainda a grande massa que trafega nos centros urbanos. Depois vem o transporte público. Há dados sobre isso. Os discursos são cidadãos, mas a prática nem um pouco.

Detesto algumas frases feitas. Esta é uma delas: “esse é o preço do progresso...”. Como urbanista devo abominar essa teoria torta.

A cidade de São Paulo — já na UTI — é um mau exemplo de como não se deve cuidar do transporte e trânsito, onde a engenharia de tráfego já não tem mais eficiência. A frota, estimada em 7 milhões de veículos, cresceu 40% em uma década — com as ruas agonizando. O projeto do metrô está atrasado pelo menos uns 30 anos. E quantas obras paliativas nesse tempo foram feitas para minimizar os impactos? Quanto de dinheiro público se investiu em tais obras, para durarem até o primeiro engarrafamento?

O relator do Código de Trânsito Brasileiro poderia ter grifado o artigo primeiro. Ou, muito dos que pensam nessa coisa diariamente — só consultam os artigos das infrações —, deveriam voltar-se para o que diz esse artigo: “§ 1º Considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas...”. Eu grifei. Sendo movimentação de pessoas, por que não zelar dos que andam a pé nas calçadas? Por que não cuidar, ampliar, sinalizar os espaços das calçadas? Tudo que está para fora do lote privado, faz parte da via — é público. Calçada faz parte da via; e a via é de responsabilidade do órgão de trânsito. Está nesse código também.

Em quase todos os municípios do Brasil, a construção e manutenção das calçadas não ficam na conta das Prefeituras; é de responsabilidade do morador ou proprietário do imóvel. Isso não funciona — todos sabem, mas a prática é teimosa. Em contrapartida, com o crescimento absurdo da frota de veículos nos grandes centros, as calçadas estão minguando, ficando obsoletas esburacadas e intransitáveis. Os municípios e seu corpo técnico deveriam assumir a responsabilidade de construir, ampliar, conservar e sinalizar o caminho dos pedestres também. Dentro de um automóvel, seus ocupantes estão bem mais seguros que o cidadão que anda a pé. Por culpa dos órgãos públicos, quem anda a pé ou de bicicleta estão mais sujeitos aos acidentes que o ocupante de veículos. As estatísticas mostram que mais se morre no trânsito por atropelamento. Quem está cuidando disso?

Na minha cidade, desde 2007, há uma Lei em vigor, se atentando às calçadas. Fora a cidade que está aí — onde há calçadas que não terão mais conserto, já morreram —, a questão se volta ao espírito da “calçada segura” que se pode fazer, mas isso não alcançou as almas necessárias, e está muito longe do cidadão comum. Com a devida vênia, não vemos calçadas sendo construídas de forma acessível. E quando ela se contrapõe às entradas e saídas de veículos, são interrompidas para passagem desses (pensamento primitivo). E não é o que diz a Lei! Como já falei aos colegas, a Lei deveria mudar para Lei da “Calçada Acessível”; assim, quem sabe, haveria mais entendimento o que seja transitar sobre um piso livre de barreiras; onde eu e qualquer pessoa, dentro do seu grau de dificuldade de locomoção, consigamos trafegar por esforço próprio. Simples.

Gostaria de falar só desses conceitos, mas há uns números bons para simplificar essa tese. Uma pessoa trafegando a pé na rua, em passo de passeio, ocupa 0,86m² (Neufert, Ernst); esta mesma pessoa, solitariamente dentro de um automóvel, irá ocupar 11,00m² do sistema viário. E não precisa da física para provar que, ninguém irá conseguir colocar 12 pessoas dentro de um automóvel. Para o transporte público de massa — o ônibus padrão —, considera-se 42,00m² dessa ocupação; esse irá transportar o mesmo número de passageiros sentados, que sua área. Rapidez, conforto e menos poluição do ar. A foto acima do texto, que recolhi da internet, ilustra o que seja essa ocupação das vias pelas pessoas nos diferentes tipos de modais de transportes.

Se diminuirmos os espaços das vias para os automóveis com prioridade às calçadas, ciclovias e transporte público será uma alavanca propulsora para uma mudança de conceito e quebra de uma regra viciada. Devolver ao cidadão, a cidade que vive. Em consequência, as indústrias passarão a fabricar automóveis com dimensões reduzidas, para o máximo 02 ocupantes — os smart cars. Como já ocorre em alguns países europeus. Veículos de carga também poderão ser menores. Na outra ponta, para os grandes deslocamentos, os governantes iriam colocar os seus projetos de transporte de massa nas ruas, funcionando. Mais calçadas; mais ciclovias; mais transporte de massa e automóveis menores em quantidade e tamanho. E assim voltar a respirar a vida na urbe.

Outro dia alguém me perguntou: se você defende tanto esse seu ponto de vista, por que você anda de automóvel? Não sou nenhum ativista levantando bandeira; sou um urbanista teorizando conceitos. Neste momento que escrevo essas linhas, é óbvio, ando porque não tem nada mais seguro, confiável, confortável, eficiente, prático, rápido (ainda) para se deslocar. Nem é pelo status. O dia que adotarem políticas claras de transportes na minha cidade; transferindo todos esses itens para um transporte de massa; ainda, dificultar o tráfego de automóveis e valorizar outros modais, fatalmente deixarei o automóvel na garagem, como muitos também farão. Por encontrar facilidade e dificuldade na mesma conjunção.

Os brasileiros que vão à Europa, acham chique poder se deslocar em Paris por metrô; acham maravilhoso poder alugar uma bike e sair pedalando; ficam felizes sentar em cadeiras na calçada dos bistrôs, para tomar um café e ler jornal. Outro mundo? Não, apenas mudança de método. As cidades europeias, seculares, não foram projetadas para automóveis. No entanto, menos densas, seus governantes foram buscar outros caminhos e soluções. Em Paris, a cada 400 metros tem-se uma estação de metrô.


Mapa das linhas de metrô de Paris

Para a realidade brasileira, o senso comum, daqueles que cuidam da área técnica e os gestores públicos, é as ruas sejam construídas para os automóveis em prioridade, sem ater-se com o restante que circula por elas. Vale lembrar, no sistema viário, uma pessoa dentro de um veículo moderno e novo, está mais seguro — e por isso comete mais abusos — do que a pessoa que caminha pela calçada. Essa está totalmente desprotegida e continuará, pois o senso comum herdado é do conceito: rua para o automóvel e automóvel para a rua.

A indústria automobilística, a indústria do petróleo, a especulação imobiliária; são muitas as forças ocultas  interessadas em ganhar com o caos urbano. Esses tomaram as cidades das mãos do poder público; tudo em troca do progresso (urgh!). Do outro lado, o morador/consumidor é voraz e débil. Em tudo está o dinheiro, que Ford dizia ser inútil e não interessar. O resultado é uma qualidade de vida descendo ladeira.

Ford foi um inovador em fabricar automóveis em série, pensando na humanidade. Queria o bem das pessoas. Nunca imaginou que o futuro reservaria muitos enleios: das cidades, das ruas, da urbanização sem planejamento, da emissão de gases, do meio ambiente, dos congestionamentos... Não imaginou os caminhos e rumos tortos que seu invento alcançaria. Ele sabia muito dos automóveis, pena que não entendia nada de ruas.

Quando penso em ir à praia no verão e imagino as estradas lotadas, com as cidades praianas mais ainda, reflito: como deveria ser bom o tempo das carruagens, a praia parecia mais perto, de tão gostoso que era viver.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / janeiro de 2012.